Dez

O desespero da narrativa carrega o ranço de uma ilusão. Não sabendo escrever como convém, pensei que a vontade de dizer algo que valesse a pena já bastasse. Todos sabemos que as coisas não são bem assim, pois tanto o dito como o não dito, possui muitas maneiras de ser dito. Algumas tão ruins a ponto de ser melhor não dizê-lo. Porém, outras carregam tanta qualidade e pertinência, que mesmo o não dito só um surdo não ouviria, enquanto os normais conseguissem no máximo dissimular, não dando o braço a torcer, diante da flagrante profundidade de um silêncio capaz de estourar os tímpanos da consciência. Esta narrativa, é claro, deve ser inclusa no primeiro caso: aquele das ilusões rançosas. Mas eu vou fazê-la mesmo assim.

Um dia desses eu resolvi bater numa tecla, num ponto: aquele que fala o que seria melhor calar. Mas chegar nesse ponto não significa lá grande coisa. Chegar num ponto não é sinônimo de ponto de chegada, pois ele pode ser o de partida e, sendo assim, a história estaria apenas começando. Proponho, então, que o ponto alegado seja um desses a partir dos quais as histórias se iniciam, partem, se dão. Vale também lembrar que o ponto, uma vez entendido como o de chegada, tornaria a história reversa, caso eu dele partisse. Eu o estaria usando como gatilho de memória para momentos passados, o que não era verdade, pois o tal ponto que me refiro trouxe momentos inteiramente novos, mesmo que alguns ainda mantivessem os velhos como disfarce. Caminhei entre os dois pontos dessa história. Se é que uma história possa caminhar entre dois pontos. Quanto a vocês, não sei, mas eu creio que possa. Elas, as histórias, são as únicas capazes de preencher o espaço entre dois pontos, afastando-os sem desuni-los, já que sem ela, isolados e flutuando no vazio, não fariam qualquer sentido. Que o ponto seja, portanto, o de partida. Dei um título a esse ponto: Pitágoras. Eu o narrarei como quem, ao contrário de em cada conto aumentar um ponto, na verdade os diminua num sentido mais unificado, como aqueles que observamos nas variações que têm um mesmo tema como pano de fundo.

Foi na capa de uma revista, numa banca de jornais de São Paulo, que eu o vi pela primeira vez. Claro, evidente e escancarado ali na capa daquela revista. Era o ponto, o ponto de partida. Devo ter olhado para ele uma dezena de vezes, pois era comum eu visitar aquela banca. Mas vê-lo, realmente, não. Isso eu ainda não havia feito. Creio que todos façam uma boa idéia do que digo. Olhar é uma coisa e ver, ora, ver é bem diferente. Ver implica envolvimento, cumplicidade, identificação e todas essas coisas que tornam o visto uma espécie de extensão de quem vê. Resolvi chamar de "um" aquilo que eu vi. Parodiei Pitágoras, já que para ele um ponto tem como identidade o número um. A reta seria dois, a superfície três e o almejado volume quatro. Pois bem, "um", esse era o nome do meu ponto. O de partida, é claro.

Toda revista tem um leitor alvo e eu fazia parte do daquela. Sendo assim, eu a comprei. A capa, só pela capa. Joguei fora o resto e saí à procura de alguém que fizesse molduras. Na própria banca me deram o telefone de um sujeito. Liguei, marquei seu endereço e fui até lá. Depois de dois dias ficou pronto. Ele fez um bom trabalho e, orgulhoso com o meu "um", reservei um lugar de destaque para ele no meu quarto: na parede, logo acima da televisão, em frente à minha cama. É um desses lugares quase impossíveis de não serem vistos depois que me deito. Assim, sempre que ia dormir, eu invariavelmente olhava para o meu "um". Sempre que o fazia, me vinha uma vontade louca de pensar. Em quê? Ora, em tudo, ou quase tudo. Desde as coisas mais simples e banais até aquelas outras, mais complexas, que estão por trás das mais simples e banais. Pensamentos estranhos me tomavam, tentando me levar a algum lugar, como uma reta. Lembrei de Pitágoras e passei a chamar esses momentos de "dois". Inúmeras foram as vezes em que, cedendo aos impulsos de "dois", eu pulava da cama e ia até a estante da sala recheada com os livros, já lidos ou não, nos quais eu busquei respostas ou pistas para muitas dessas dúvidas que "dois" me impunha. Buscava senso, lógica e união para todos aqueles pontos que, juntos, dão sentido e direção às trajetórias que tomamos na vida, transformando-as em belas e imponentes retas. Seria algo como, de dentro de uma caixa cheia de contas que representassem meus momentos, eu tirasse uma a uma aquelas unidas por um senso maior, bem maior, que as transcendessem. Você talvez, como eu, unindo essas contas em colares, iria perceber uma certa sobra. Contas que não faziam sentido naquele colar. E começando um colar novo, sustentado por um fio lógico diferente, você fosse aos poucos dando sentido a essas contas restantes. Talvez você viesse a descobrir vários colares com as contas de sua vida e estendendo todos sobre uma grande superfície, como uma dessas mesas enormes, você viesse a descobrir que eles nunca deixam de se tocar de algum modo, seja direta ou indiretamente. O toque direto, mais fácil de se ver, traduz duas condutas ou colares unidos por uma conta comum. O toque indireto, mais difícil de se perceber, define planos de vida ou condutas relacionadas de forma bem mais sutil, já que um colar toca no outro que, por sua vez, tocou em outro e mais outro. O último toque tem relação com o primeiro, embora às vezes precisemos de um binóculo para enxergá-lo, dada a sua distância.

Suponha que, só por curiosidade, você paire sobre esses colares e contas como um helicóptero faria. Perda de tempo? Talvez, mas temos que imaginar que você optou por estar lá no alto, parado sobre seus colares e contas, por um bom motivo que não é outro senão o de se conhecer melhor ou, como dizem por aí, saber onde estão os seus calos e por que doem. Você percebe que o colar um toca o dois, por exemplo. Outros colares, você também percebe, pois está sobre eles, se tocam indiretamente. O dois toca o três que toca o quatro que toca o cinco e aí vai para, finalmente, tocar o colar n. A relação de toque entre os dois, o n e o um, é bem mais difícil de ser notada e, antes de tudo, compreendida. A distância exagerada vai comprometer qualquer tentativa de entendimento. Alguns dizem que a distância dos toques deve ser diretamente proporcional à grandeza de seu significado. Grandes significados, portanto, estariam compreendidos entre toques muito distantes. A idéia é a de que só um bom motivo, mesmo indireto e aparentemente aleatório, seria capaz de provocar essa reação em cadeia de toques entre o colar um e o n. Dizem, inclusive, que só nosso verdadeiro eu entenderia esse motivo e que a pista para achá-lo seria a de descobrir, por mais remoto e distante que possa parecer, algo comum a todos esses toques. Talvez ínfimo e aparentemente banal, mas comum a todos eles. Seria o estágio três: a superfície da alma.

Passar do plano três para o quatro, o volume, exigiria um certo grau de desapego para com três, a superfície. Embora não seja necessariamente superficial, a alma tem superfície, mas só terá conteúdo ou volume, se ao menos uma de suas contas de um de seus colares, tocar uma outra conta de um outro colar completamente estranho aos seus, pois faz parte de um outro plano que toca levemente o seu em pouquíssimas e quase imperceptíveis contas. Esse toque, conforme sua importância, irá ou não resultar em volume. Suponha que tais contas, daqueles colares estranhos aos seus, tenham, após o seu toque, despertado em você uma vontade muito grande de conhecer as outras. Como seriam as outras contas? Dariam em toques tão bons como o da primeira? Você percebe que sim e, mais desinibido, acaba gostando daquele colar. Ocorre, no entanto, que ele possui uma conta em comum com outros dois, por sua vez, ligados a mais outros. Estes outros a mais outros e outros. Suponha que você goste dos outros colares e suas inúmeras intersecções. Eles também, juntos, fazem um plano, tal qual os seus. Você aceita esse plano e passa, inclusive, a depender dele. Para seu espanto, esse plano, outrora estranho, parece dar mais sentido ao seu. Você já se sente bem melhor do que antes: ainda não tem um volume, mas está a meio caminho dele. Duas superfícies ou planos ainda não fazem esse volume, mas estimulam e alimentam a idéia de fazê-lo. Mesmo que você não o faça, passará boa parte de sua vida, senão toda, inspirado por essa idéia. Desde que, é claro, o outro plano que você adotou lhe adote também, só para garantir a continuidade da busca.

Talvez todos nós, um dia, venhamos a adotar regras geométricas que orientem nossas rotinas. Eu poderia até usar na minha esse tipo de filosofia, lembrando que Pitágoras comparou Deus ao número dez. Por quê? Bem, um ser superior seria a somatória da precisão de um ponto (um), com a retidão de uma linha (dois), o horizonte de uma superfície (três) e o rico conteúdo de um volume (quatro). Um mais dois, mais três, mais quatro é igual a dez. Mas será que nós, pobres humanos mortais, desejamos isso? Um volume? Não, seria ridiculamente pretensioso e improdutivo. O truque do volume não é sê-lo, mas buscá-lo. Madre Tereza, Gandhi, Luther King e tantos outros chegaram perto. E é isso o que conta: chegar perto, ir até as suas proximidades.

Não por resignação, mas por pura e honesta sensibilidade, eu consigo ver volume em certos pontos. Foi o caso daquela revista, cuja foto da capa me impressionou. Retratava um momento vivido por um soldado no final da segunda grande guerra. Sentado ao lado de uma criança, suja e praticamente nua, ele a alimentava com a sua lata de ração. Como estava sem capacete, foi fácil perceber em seu rosto a expressão de dor e angustia. O simples fato dela aceitar sua comida parecia comovê-lo. Seu exercito havia destruído toda a sua aldeia e ele alimentava aquela criança com, no mínimo, o mesmo afeto e dedicação que um zeloso pai faria. A criança era japonesa e o soldado era um mariner norte-americano, mas isso não importa, pois ela poderia ser russa e ele alemão, ou croata e ele sérvio, ou palestina e ele judeu, ou um ponto e ele uma angustiosa tentativa de volume. Talvez ele, alimentando aquela criança numa espécie de pausa entre os combates, estivesse sentindo o mesmo que eu, quando vi sua foto na capa daquela revista, mais de 60 anos depois. Talvez ele, dando ração a ela, estivesse na verdade alimentando a si mesmo, justificando sua vida até ali, aquele ponto. Como se aquele ato de amor fosse perdoá-lo de toda selvageria que o precedeu. Como se, dali em diante, tudo passasse a valer a pena e carregar aquela criança consigo e protegê-la fosse a sua missão. Talvez ele nunca tivesse ouvido falar de Pitágoras, mas isso não importa, pois embora Deus seja igual a dez, alguns pontos são tão grandiosos em sua singeleza e tão eloqüentes em seu silêncio, que me custa a crer que Ele, caso exista, não esteja ali miniaturizado. Quanto a esses pontos, cabe a mim colecioná-los, sempre que possível, como essa capa de revista, só para lembrar os que eu já tive, bem como, ficar atento aos que virão. Talvez a vida seja isso mesmo, colecionar pontos ou momentos que, de algum modo, nos libertem dos pecados praticados em nome do egoísmo, do desamor e da mediocridade. Quando tenho a oportunidade de vê-los, eu os guardo. Um dia eu os mostrarei aos meus netos, pois sei que, mais que eu e meu pai, irão precisar, já que conforme o tempo passa, nossos erros se somam e pontos como esses são cada vez mais raros.

É isso aí, eu acredito em pontos, mesmo que não gerem retas, superfícies ou volumes. Afinal, eles são os primeiros, não são? É com eles que tudo começa e isso lhes dá um grande poder: o da esperança. Volumes quase não existem e superfícies, hoje, são difíceis de se ver. As retas são cada vez menores, mas os pontos ainda persistem e, com um pouco de treino, conseguimos vê-los. Esse da capa da revista é um dos meus favoritos, mas há um outro ainda mais especial, que mostra a mesma cena alguns minutos depois. Neste, já satisfeita, a menina pega com cuidado a lata de ração e começa a alimentar o soldado, hábito de sobrevivência compartilhada, comum em famílias próximas da exaustão. Ele, penso eu, deve ter sentido no ato da criança, bem como no alimento, todos pontos, retas, superfícies e volumes ali resumidos e não resistiu, chorou compulsivamente. Claro, pois não deve ser fácil ver Deus assim, tão de perto.

Dassault Breguet
Enviado por Dassault Breguet em 30/09/2010
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