ALMA SECRETA

Sentado de frente para ela passo os olhos ao redor. Varanda ampla, rabo de pato, chão de tijolos, brancos e frescos, telhado de madeira a vista, negra de antiguidade, telha calha, tipo coxa, feita com barro branco, acinzentado pelo tempo.

Pendurados nos beirais de madeira, flores de maio, em xaxins marrons. Estão floridas, lindas, todas vermelhas e lilases. Rente ao muro,construído com tijolos sem reboco, primaveras floridas, de variadas cores, intercaladas e entrelaçadas, umas nas outras, brancas, vermelhas, amarelas, e, pelo quintal de terra, até o pequeno pomar, plantas vadias em vasos improvisados nas latas velhas.

O céu, obstruído ao fundo por enorme mangueira verde, tem azul fantástico, salpicado por espargidas nuvens brancas.

Ela passa a minha camisa sobre um cobertor velho, recoberto por lençol, estendidos sobre a mesa de madeira, pintada com cor indefinida, mas que fora, um dia, verde clara.

Fico observando tudo sem pressa.

Derramo meu olhar outra vez sobre ela, sua face, vincada por suaves rugas, seus cabelos brancos e suas mãos habilidosas.

É uma mulher bonita que, na juventude, deve ter encantado.

Ela continua a passar a camisa, na qual, de vez em quando, com um sifão improvisado, borrifa um pouco de água.

Nestes momentos, o ferro quente, libera vapores que ficam alguns instantes suspensos no ar, envolvendo-lhe as mãos.

Aguardo.

Minha atenção volta-se novamente para o quintal, aonde dois velhos movimentam-se, vem e vão animados.

O marido e o amigo.

Preparam as traias para pescaria.

Esparramam varas pelo chão e as medem com o olhar, discutem se têm o tamanho certo para a pesca.

Depois, sobre uma bancada rústica disposta em um canto, separam chumbadas, anzóis, giradores e pequenas bóias de cortiça.

Velhos amigos, velhos camaradas, carne e unha, dois irmãos levando a vida.

O vento, que invade a varanda, que levanta o pó, que muda de lugar as folhas secas pelo chão, que dá sonoridade ao ambiente, acaricia minha face.

Tudo palpita.

Tudo tem cheiro, cor e textura.

Também o ruído amortecido de um rádio ao longe, do carro que passa na rua e dos pássaros nas árvores.

A visão, o tato, o olfato, a audição, atentos, captam os pequenos sentimentos e os transformam em grandes vivencias.

De todo lado o mundo ressoa.

Acompanho seu olhar que, por instante, é lançado aos dois, afetuoso como de uma mãe a agasalhar os filhos.

Como explorador que se aventura por território desconhecido, faço a pergunta:

____ Compartilham tudo?

Neste momento, dois colibris cruzam o ar, trinando e chispando, intercalando posições de avanço e retaguarda, para disputarem o mesmo pistilo da flor de maio, o mesmo espaço e o mesmo néctar.

O ambiente, que estivera quase mudo, começa a expressar-se em linguagem significativa.

Ela entrega-me num cabide, a camisa que confeccionou e passou:

____ Roupa sob medida sempre veste melhor.

Olho novamente sua face, os dois velhos alegres, as flores e o quintal.

Agradeço, saio e levo a certeza de que tudo tem uma alma secreta que guarda silêncio com mais freqüência do que se revela.

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30/09/2006