Minha lua é Lisa.

"Minha nostalgia é crônica, mas não vivo no passado. Ninguém vive nele, vegeta-se apenas. Tento usá-lo como aprendizado, só isso. Dizem que santo de casa não faz milagre, mas no meu caso faz. Quanto mais estudo minha própria história, mais aprendo com ela. Detesto repetir erros e não entender os por quês daquilo que já fui, pois se fui, tinha motivos. Estudo o meu passado para entender esses motivos, meus motivos, ok?"

Essa frase é do Zé, um amigo meu. Parte dela encabeçava o início de um livro parado há muitos anos. Ele gostava de escrever, mas havia prometido a si mesmo que só voltaria a fazê-lo caso se apaixonasse novamente. Eu ria, dizendo a ele que essa era uma boa desculpa para não terminar a tal da obra e, sempre que possível, procurava convencê-lo de que terminá-la lhe faria bem. A idéia da publicação me acalentava. Sempre fui um profundo admirador seu. Não havia nada que ele escrevesse que não me tocasse de alguma forma. Seus textos me faziam pensar sobre essas coisas, milhões delas, às quais deixamos de dar atenção por serem comuns. Coisas diárias, rotineiras, que precisam ser faladas, discutidas e sentidas. Tal qual aquela música do Phil Collins chamada "Do you remember?", com um trecho que diz "We never talked to about it (nós nunca conversamos sobre isso), but I hear the blame is mine." (e ouvi dizer que a culpa foi minha). O Zé era assim, gostava de escrever e falar sobre coisas comuns e se sentia culpado, quando não o fazia. Era o jeito que ele tinha de cristalizar detalhes do dia a dia que, para a maioria de nós, passaria despercebido ou notado e desdenhado. Eu, por exemplo, às vezes vejo poesia em certas coisas, mas disfarço, finjo frieza. O Zé não, ele não se constrangia com nada. Caso se interessasse por algo aparentemente banal, a sinceridade do seu interesse sempre me mostrava o lado incomum que o corriqueiro carrega. Suponha as coisas como icebergs, dos quais só vemos as pontas que emergem fora d’água. Pois é, ele gostava de escrever sobre as partes submersas, que nunca são iguais.

Com o Zé eu aprendi a conhecer novas e melhores emoções. Criei novas sensibilidades, adaptações, coisas assim. Fiquei, como ouvi de um garoto um dia, mais plugado no mundo. A parte oculta dos icebergs era o meu novo interesse. Nem por isso passei a levar uma vida submersa, encapsulada, introspectiva. Pelo contrário, passei a sair mais para ter o que observar. Mas o fazia com prazer e sem ares obsessivos. Isso, diziam, me dava certo charme, características de brilho próprio, autenticidade e por aí vai.

Um dia fomos pegar sua moto na concessionária, pois avisaram que a revisão já tinha sido feita. Imagine um ambiente cheio de motocicletas grandes como a dele, dessas do tipo estradeira. Uma delas chamava a atenção pelo excesso de cromados. Ele brincou com o mecânico, dizendo que dava para fazer a barba olhando para ela, pois parecia um espelho. O mecânico comentou que também achava aquilo um exagero, mas tinha gosto para tudo. Logo depois o dono chegou para levá-la. Tinha um jeito humilde e pacato e foi fácil perceber, pelo seu olhar, o quanto ele gostava da sua máquina. O Zé olhou para ele e disse: "Bonita a sua moto. Você está de parabéns." O dono agradeceu com sinceridade, pois não viu escárnio no elogio e saiu com ela para a rua todo orgulhoso. Quem não conhece o Zé, como eu conheço, poderia ver cinismo no seu comentário, mas cínico ele nunca foi. É claro que ele jamais teria uma moto como aquela, mas seu respeito pelo sentimento dos outros, sempre e invariavelmente, se sobrepunha a qualquer comentário anterior. Ele até se anularia para não ter nunca que magoar ninguém. "Nunca me permitirei ser consumido por escárnio, ciúme, ódio ou medo. Essas coisas me dão uma horrível sensação de perda de tempo." – dizia.

O Zé vinha passando por um momento difícil. Não saia nem se comunicava há cerca de três meses. Não via graça em quase nada. Faltava-lhe estímulo para tudo. E como era claro que seu entusiasmo me fazia bem, em igual medida seu desânimo me fazia mal. Era como uma dessas gripes fortes, contra a qual eu não tinha resistência. Fiquei deprimido, como se tivesse que sofrer com ele ou por ele. Tentei descobrir o que o teria abalado tanto. Essa história de atrelar um novo romance ao reinicio da vontade de escrever me parecia um disfarce. Escondia o verdadeiro motivo do desencanto com o seu dia a dia. Mesmo porque apaixonado ele sempre foi. Não só por pessoas, mas também por coisas, situações, momentos e etc. Acabo de me lembrar de uma de suas frases prediletas. Trata-se de uma citação de Confúcio: "Se o mestre lhe apontar a lua, olhe para a lua e não para o dedo do mestre." Olha só, lembrei de outra: "A verdadeira explicação para um fato ocorrido é sempre a mais simples." Essa é de um filósofo do século XIV, creio eu. Chamava-se Ockhan, segundo o Zé. Usei essas duas frases para agilizar a solução do problema. Resolvi aceitar como verdadeiro o motivo por ele alegado, pois aceitar é sempre mais simples do que duvidar. Caso eu duvidasse, teria que criar novos e hipotéticos motivos para, depois, testá-los. Isso ia levar tempo e o estado dele pedia socorro imediato. Se o problema era a falta de um novo amor, eu iria aumentar a probabilidade disso ocorrer. Apresentaria a ele o maior número possível de garotas com um perfil adequado, é claro, às suas expectativas. Expectativas? Mas quais? Não me lembro de nenhuma namorada sua para usar como referência. Mas, se a tristeza começou após algum rompimento, eu tinha que fazer algo. E esse algo teria que estar além dele, transcendê-lo, como a lua, por mais que eu gostasse do seu dedo.

Foi com esforço que consegui arrancá-lo de casa um dia para dar um passeio no Conjunto Nacional, lá na Av. Paulista. Olhar as lojas, cds, livros e coisas assim. Jogar um pouco de conversa fora, sem grandes pretensões. Lá ele me disse, quase sussurrando, como seria bom conhecer uma garota que lhe fizesse diferença. Falou pausadamente e com muita discrição, pois detestava ver seus comentários atraírem olhares de estranhos. Aliás, isso quase sempre acontecia. Mas eu tinha uma tática que o relaxava. Eu fingia ignorar os olhares e dava de ombros para eles. Logo depois, ele acabava fazendo o mesmo e prosseguia falando sobre suas perspectivas.

"Eu quero um romance vivido e real. Desses que nos tomam por inteiro e vão além, bem além daquela pequena parte que nos tomou por inteiro. Um grande romance, companheiro, que não caiba num ser humano só e, mesmo assim, vingue. Isso porque, sendo assim tão grande e fértil, não nos contentaríamos em comunicar ao ser amado apenas a parte dele que, por ser pequena, conseguimos guardar. A parte de um amor assim que não cabe em nós é, portanto, quase todo ele, já que somos pequenos demais para esse tipo de amor, o tipo verdadeiro. Por isso, quando ele nos toma, tentamos crescer para merecê-lo. Caso não consigamos acompanhar sua grandeza, sentimos com severidade o quanto somos medíocres, insignificantes e limitados. Estamos pré-adaptados a esse sentimento, mas o tememos muito, pois ele fortifica apenas aqueles que, de fato, estão dispostos a acompanhá-lo. Por isso mesmo, muitos não querem nem ouvir falar dele. É fácil perceber, meu amigo, que tê-lo não é garantia de felicidade, do mesmo modo que o relógio não garante a hora e esse livro, que você me cobra, não garantirá leitor."

O arrebatamento que o tomou durante todo esse discurso me convenceu definitivamente: o Zé precisava e muito de um grande amor. Ofereci minha ajuda mais por amizade que praticidade. Era uma dor da alma e bem profunda, dessas que só o dono da própria sabe lidar. Disse-lhe que eu ficaria por perto para o caso dele precisar. "Fique perto, se quiser, mas não muito, por favor. Não há nada que você possa fazer."

Com essa frase, ele selou nosso último encontro. Tentei revê-lo mais tarde, mas não consegui. Sumiu, simplesmente sumiu. Passei o resto daquelas férias sem qualquer contato com o meu guru e essa ausência se estendeu por quase um ano. Fiquei muito confuso e desorientado. O Zé era o único amigo que eu tinha e o vazio deixado me abalou demais. Veio uma depressão como conseqüência e, logo depois, uma internação. Um telefonema anônimo acionou uma ambulância até minha casa e eu, já muito fraco, fui levado até um hospital psiquiátrico. Fiquei meio ofendido, quando me dei conta disso. Droga, eu não era maluco, só vinha passando um momento ruim. Meu estilo irônico, no entanto, fez pouco caso da situação. Procurei algum proveito positivo naquilo tudo e ele aconteceu após cerca de uma semana no leito. Lisa era o nome desse proveito. Uma enfermeira incrivelmente atenciosa e educada, que parecia realmente preocupada com a minha recuperação. Sua delicadeza e atenção foram aos poucos ocupando minha mente, do mesmo modo que as lembranças do Zé iam sumindo, até se tornarem quase nulas. Lisa ia crescendo e me tomando. E isso me assustava. Sempre que ela entrava no quarto, dava-lhe toda atenção do mundo. Não havia nada que eu fizesse a ela que me bastasse. Queria lhe deixar claro como água o quanto ela vinha me fazendo bem. Dissimulava os efeitos colaterais da medicação e beliscava minhas bochechas para parecer mais corado. Tudo era válido para diminuir sua preocupação comigo e, talvez, fazê-la me tratar como um cara normal, não um paciente. Foi então que, numa dessas madrugadas, por volta do sétimo dia, eu a vi entrar no quarto. Fingi estar dormindo para não assustá-la. Com esmero e atenção, ela estendeu o cobertor sobre os ombros do seu Mariano, que dormia no leito à minha esquerda e foi até a Dna. Alaíde, à minha direita, para agasalhar seus pés, que sempre ficavam de fora. Por último, veio a mim. Parou de pé ao lado da cama e ficou me olhando. Petrificado, pensei, poxa, ela não vai me tocar, me cobrir como fez com os outros, qualquer coisa, sei lá. Faz alguma coisa, pelo amor de Deus, gritei silenciosamente na penumbra do quarto. Não, ela permaneceu imóvel ao lado da minha cama, me olhando. Eu não a via , pois simulava sono, mas como em Ana Karenina, sentia na pele o seu olhar.

"O que eu vou fazer não é nem um pouco profissional," disse ela quase sussurrando para não me "acordar", "mas farei assim mesmo. Eu lhe conheço há sete dias e fiz inúmeras horas extras voluntárias para acompanhar o seu caso. Você não tem consciência disso, mas em todas suas madrugadas de delírio, nas quais repetia incansavelmente que queria ver a lua, eu o levei até a janela para que a visse. Você se acalmava e não queria mais morrer. Não entendo como alguém tão bom possa querer se matar, mas embora não entenda, nunca permitirei que o faça. Farei tudo que estiver ao meu alcance para lhe ver, um dia, esboçar um sorriso sincero. E se esse Zé, que sua alma forjou, continuar insistindo no amor como única saída, lhe darei o meu, aquele que foi crescendo desde que você chegou e já não cabe mais em mim. Quero vê-lo curado, pois amado você já é." Conforme me falava, sem saber que eu a ouvia, ela foi tão natural quanto possível e, sem querer, repousou sua mão sobre a minha. Quase reagi em vários momentos, mas não o fiz. Elisa parecia ser muito corajosa, mas não quis testá-la a esse ponto. Sequer tive intenção ou malícia para fazê-lo, pois estava atordoado com a constatação de minha dupla personalidade e, também, profundamente lisonjeado com o que ela havia acabado de fazer. Passei a amá-la ainda mais e de modo desinibido, pois a recíproca era verdadeira. Usei seus sentimentos como um sagrado remédio para a cura, a minha cura. Essa mulher me devolveu a mim mesmo. Se isso não for amor, o que é então?

Depois de algumas semanas, a alta estava próxima. Sabia disso porque o Dr. Travassos havia me dito. "O homem que entrou aqui," comentou ele naquela noite de dezembro, "nada tem a ver com o senhor. Sua recuperação foi espetacular. Seu ânimo se mostrou estável após a suspensão das medicações e, principalmente, as alucinações cessaram já há um bom tempo. Creio que o senhor já possa ir para casa. Terá apenas que ligar uma vez por semana para nos informar de seu estado e, caso não o faça, entenderemos como problema e iremos atrás do senhor. Portanto, não deixe de nos ligar, pois ficará durante algum tempo sob observação, ok?. Gostaria também de informá-lo que a única medicação que lhe foi dada era de natureza sedativa e não corretiva. Quero dizer que durante essas várias semanas o senhor descansou profundamente sob o patrocínio da bioquímica moderna, a qual lhe será receitada no caso de reincidência. Daí a necessidade das ligações semanais. O senhor, portanto, precisava descansar e muito. E, por último, gostaria de lhe dizer que a reversão do quadro, com a conseqüente recuperação, se deu a partir do sétimo dia. Talvez valha a pena, como uma espécie de exercício mental, que o senhor tente se lembrar o que houve de especial nesse sétimo dia. O senhor sairá daqui a três dias, só por precaução. É só, parabéns e felicidades," disse apertando minha mão num comprimento.

Aproveitei aqueles três dias para me aproximar ainda mais de Lisa. Conversamos muito, madrugada adentro, em suas horas extras que insistiu em manter. Creio que vivia mais no hospital comigo, que em sua casa. Soube que foi casada e não deu certo. Não teve filhos e tentou a vida em Portugal, mas também não deu certo. Perguntei-lhe se ela faria de novo. "O quê? Sair do país?" Disse ela. Não, casar, disse eu.

Naquela noite eu a pedi em casamento e ela aceitou. Sei que nossas vidas não mudam só porque casamos. Seria muita ingenuidade a minha acreditar nisso. O que nos leva a ele é o que conta. Estar motivado para algo grande, hoje em dia, é coisa difícil. Fazer parte disso, então, nem diga.

Hoje, sempre que Ockhan me convida a simplificar, na busca da verdade, eu simplifico. Mais cedo ou mais tarde, acabo achando a causa ancestral pra tudo que me aflige. E quando Confúncio me aponta a Lua, sempre evito o seu dedo, e olho pra ela com satisfação. Talvez eu até venha a deixar o mestre curioso com esse meu comentário, mas, nas minhas fantasias mentais, ele sempre me aponta uma Lua sem crateras, diferente da original. Lisa, assim é a Lua que ele me aponta. Ela é lisa.

Dassault Breguet
Enviado por Dassault Breguet em 26/09/2010
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