Faz pena de avistar, comadre. Faz pena espiar no modo daquela menina, sabe? O coração da coitada empanou. Emurcheceu de tal maneira, comadre, que não dá pra desamarrotar mais não. Está de uma maneira enrugadinho, que nem maracujá vence dela. E eu fico pensando aqui no sangue pisado que deve de ficar lá, no meio das dobraduras, só vertendo dor. Eu é que nunca pensei que ela fosse sentida desse jeito. Boa, todo mundo sabia. Uma criatura de uma bondade que ninguém punha desconfiança. Os vizinhos que digam lá, pois que não desencostava daquele muro com oferecimento de ovo a banha de porco. Sem falar nos quitutes do dia a dia que não deixava faltar. Era broa, goiabada, biscoitinho de mel, de polvilho. Não sabia fazer pouca coisa não. Era de fazer as receitas tudo em dobro. Nas obras de caridade da igreja, só vendo! As compotas, de ninguém botar defeito, dava um dinheirão. Acabava tudo, rapidinho! Todo mundo queria! Ah, mas eu fico chovendo no molhado. A senhora sabe disso.

Ficou doente? Lá ia ela se plantar na cabeceira do tal. Se alguém morria, varava noite adentro com os parentes do morto, sempre confortando. Ninguém podia imaginar que essa queda ia deixar a pobrezinha tão esfiapada. Deus que cuide, porque desse jeito vai é morrer qualquer hora! Tá fininha que nem agulha, comadre! Olha que essa menina, desde que a finada Santinha se foi, vive debaixo dos dengos do pai. Só teve ela, né? Foi é bem cuidada que só. Se desse um espirro o pai lhe acudia na horinha. Também, do feitio que ela é, né? Fez foi sacrifício para ficar com a mãe até na hora da passagem. Nem estudar foi mais. Ficou ali, com tudo a tempo e a hora para a finada, durante uns dez anos. Doença dos ossos, o médico disse. Boa filha!

O safado veio foi na certeira, comadre. Pareceu até pau mandado. Mas também, ele que não apareça nunca mais por aqui, porque está até confessado de morte, sabe? Moço bonito daquele jeito, comadre, quem havera de dizer que era tão malfazejo, não é mesmo? Veio parar por aqui junto com o filho de dona Bentinha, que todo mundo conheceu molecote. Mas esse não teve culpa no cartório não. Capitão do exército. Mais que polícia, né não? E alguém vai dizer que um capitão do exército podia de ser desembaraçado desse jeito? Educado! Todo barbeado, com aquela farda cheia de medalha... Cheiroso! Nossa senhora! Mas o homem tinha e que tinha um cheiro que ia longe!

Então, eles se conheceram na festa da padroeira. O padre Inácio foi que apresentou os dois, você acredita? Depois desse dia, a sexta-feira virou passagem certo dele. Chegava de trem, todo de farda, chapéu do exército debaixo do braço, sapato preto que era brilho puro, chegava até espelhar a luz. Ia diretinho para a casa dela que já estava na espera com bolo, pão fresquinho... Você precisava de ver. Ela iluminada de sorriso de canto a canto. Saiam por aí passeando de mão dada, tudo no maior respeito. Eles bem que formavam um casalzinho bem apanhado! Moço que não bebia, não jogava, não fumava... Como tia eu ficava pensando que Marianinha tinha era tirado à sorte grande. Ia mudar pro Rio de Janeiro com o capitão e largar essa roça empoeirada aqui. Foi dois anos esperando trem chegar e vendo trem partir.

Foi que um dia ele parou de vir. De repente nunca mais apareceu. No comecinho ela achou que estava adoentado. Correu para saber se dona Bentinha podia perguntar ao filho, mas o menino disse que ele tinha mudado de corporação. Eu nem sei bem que é isso e também não perguntei. Depois ela achou que era casado, que tinha mesmo enganado ela. Ela falava isso, mas ouvia o trem apitar, lá ia pra janela. E foi assim, esperando o trem, que foi ressequindo.

Um dia assentou aquele xale nas costas que nunca mais tirou. Até parece que vestiu as asas e ficou lá mudinha, mudinha e arrupiada que nem passarinho doente. Os bracinhos parecem que vão quebrar. As mãozinhas cruzadas no colo, os dedinhos bulindo um com outro, sabe? E agora deixou de comer. Tem que dar comida na boca, comida que ela nem sabe o que é. Não repara nadinha. Às vezes ela respira tão fraquinho que parece até que não é gente. Eu acho que não tem remédio, mais não. Quando o pai se foi, nem ligou. Que desgosto que foi aquilo! O médico diz que ela tem depressão. Só sei dizer que ninguém consegue acordar ela de dentro dela. Pode tentar o que for que não adianta nadinha!

Esses dias, até fiquei meio cismada, com os olhinhos dela. Todo domingo o padre vai lá levar o Santíssimo pra ela sabe? Ela ia todo domingo a missa, cantava no coro, então... E eu cochichei de longe com o padre: “ Coitadinha, tá morrendo de amor né padre?” Mas, ele não gostou não. Retrucou, dizendo que aquilo era falta de Deus e que a gente tinha era que rezar muito para ela sair desse desapego. Que amor assim Deus não abençoa não. Nesse tempo todo nunca vi e acho que não vou ver mais, mas notei que os olhinhos dela se levantaram pro padre de jeito que estava zangada, sabe? Não sei se foi só impressão... Mas ó, está um algodão de levinha, definhando que nem folha esturricada de falta d’água.

Tive que levar ela lá pra casa, porque como que ela havera de viver, né? Mas num dá um tiquinho de trabalho não. Mas, como se diz, amor sem retorno é castigo sem pecado, né? Se a senhora quiser ir, pode ir! Vai lá sim, comadre! Vai lá! Pode levar as benzeduras, sim senhora. Leva sim, pode levar! Tudo o que o pessoal leva para ela melhorar, eu recebo de bom grado. Será que tem alguma erva, comadre, pra dor de amor deslembrado? Tem?
 
Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 25/09/2010
Reeditado em 12/07/2011
Código do texto: T2520129
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