O Osso que ri

A chuva começou lá pelas duas da tarde e, pelo jeito, não ia parar tão cedo. Resolveu estacionar a moto debaixo de um viaduto. Um pouco de sossego caia bem. Puxou o descanso lateral e ficou sentado em cima dela, pensando na vida. Não exatamente na vida dele, mas na vida que sonhava para ele. Preferia fazer esse tipo de coisa no sofá da sala, da sua casa. Sala? Casa? Começou a rir dos termos que usava para definir o lugar que morava. "Eu não moro", pensou, "eu me escondo", pensou de novo, mas desta vez rindo.

Tirou a jaqueta e olhou para o braço. A ferida do último tombo até que estava cicatrizando bem. Tinha parado de doer a dois dias. Agora era só questão de tempo e a pele ia ficar novinha em folha. "Mais duas entregas e termino o dia", pensou. "Se eu apressar esses dois pacotes, vai dar para ver a Dulce ainda hoje", pensou de novo, mas agora rindo. Vestiu a jaqueta como um raio, deu a partida e saltou do meio fio para a rua numa fração de segundos. Rápido, rápido demais, mas não o suficiente para escapar de um Opala que vinha logo atrás. O carro os pegou em cheio, ele e a moto.

- Na moto deu perda total. Disse um guarda, olhando de cima, para o corpo dele estatelado no chão.

- Você está quebrado, companheiro, mas vivo. Não deu perda total. Brincou o segundo guarda.

"Perda total? Eu?" Pensou. "Eu nunca tive tanto para perder", pensou de novo, mas agora rindo.

Dulce foi visitá-lo no hospital no dia seguinte.

- Beto, você tem muita sorte de não ter morrido ainda. Muda de emprego, benhê, por favor. Lembra da proposta do Seu Chico do supermercado? Por que você não aceita?

"Passar o dia inteiro numa registradora? Nem morto", pensou. "Ganhando bem para comprar uma Harley? Aí sim", pensou de novo, mas agora rindo.

Dulce era, ao mesmo tempo, um pouco romântica e prática. Fazia seus voos, mas não ia muito além dos acanhados limites da sua pobreza. Beto era, para ela, um cara legal. Meio maluco, mas legal. Seria, provavelmente, um bom marido e, talvez, um bom pai. Um dia disseram a ela que amor é algo que ninguém sabe explicar e só entende quando sente. Ela não sabia se o amava e, por não saber, julgava não amá-lo. Mas gostava muito dele e isso lhe bastava. Ela não tinha um mundo, mas um mundinho. Sua rotina e seu ir e vir eram muito frágeis, como um papel de seda. "Qualquer ventinho mais forte pode mudar o meu futuro", dizia para as amigas. "Uma chuva, então, ia acabar com ele", disse de novo, sem rir. Caso Beto se fosse, chuva ou vento, não importa, seu futuro mudaria. E sua juventude, amadurecida na pobreza, tinha lhe ensinado a se apegar ao papel de seda, que mesmo frágil, era seu. E, talvez, mais alguns anos, ela pudesse vir a fazer de sua vida uma folha de sulfite ou, quem diria, uma cartolina. Para isso, tinha que partir de algo e o seu papel de seda era um bom começo. Beto era uma de suas fibras.

Após alguns dias, ele foi liberado. Dulce foi buscá-lo de táxi. Pagou com o dinheiro das duas últimas faxinas. Uma na casa da Dna. Marilia e a outra na da Dna. Mirtes.

"Ia ser tão bom ter um dinheirinho sobrando", pensou ela. "Mas ele merece um táxi", pensou de novo e sem rir.

Cinco anos depois, Beto ainda mancava um pouco com a perna esquerda, quebrada no acidente. Mas estava melhor, bem melhor. Não era mais motoboy, agora estava "internado", com paletó, gravata e tudo mais. Bendito o dia que ele cedeu aos apelos da Dulce e resolveu fazer um curso técnico de informática. Descobriu que levava jeito para a coisa e fez outro, e outro e outro. Virou especialista e, hoje, presta assessoria na instalação de programas. Resolveu até marcar o casamento para o final do ano. Dulce tinha o hábito de pressioná-lo nesse sentido.

"Ela está doida para me amarrar de vez", pensou ele ". E, no que depender de mim, eu dou até a corda", pensou de novo, mas agora rindo, e muito, muito mesmo. Foi assim que, gargalhando e atravessando a rua, não viu o ônibus que o arremessou a cinco metros de onde estava. Foi uma pancada seca e rápida, tal e qual a do Opala, há cinco anos. Depois de meia hora, chegaram os paramédicos.

- Pisque o olho uma vez para sim e duas para não, disse um deles. Você está sentindo alguma dor?

A pergunta não surtiu efeito. Seus olhos continuavam arregalados, mas o estrago feito nada tinha a ver com isso. Ele havia parado no tempo, segundos antes do choque. Sequer sentiu a fratura no fêmur direito, tão pouco a ruptura de parte da orelha, também direita. Eventos estes patrocinados pelo para choque e grade frontal do ônibus, respectivamente. Isso porque, conforme eu disse, ele havia parado no tempo, segundos antes, no momento exato em que se deu conta do quanto Dulce lhe era importante. "Eu dou até a corda", pensou ele, com os olhos arregalados e fixos no paramédico. "Eu dou, juro que dou", pensou de novo, mas agora rindo. Por dentro, é claro, pois sequer conseguia mover um músculo.

- Seu namorado é muito forte, garota – disse o médico à Dulce, na sala de espera do hospital.

- Ele vai ficar bom, não é, Doutor?

- Vai, vai sim. Ele já se acidentou antes, não é?

- Já, Doutor, há cinco anos.

- Pois bem, tomando como base a boa calcificação do fêmur esquerdo, que eu vi no raio x, o direito vai pelo mesmo caminho. Fique tranqüila que, mais alguns dias, e ele estará novo. É bem humorado, vive rindo e o importante é isso, ossos gostam de rir. Facilita a recuperação.

Dulce seguiu seu conselho e ficou tranqüila, embora, simplória que era, tivesse achado estranha aquela história de osso dar risada.. Mas não foi a profecia do médico que a acalmou. O mundo está cheio de mistérios e ela sabia disso. Beto era um deles, alguém que a vida parecia não ser capaz de quebrar.

A festa estava animada. Crianças surgiam do nada, correndo entre os adultos como se não existissem. Uma delas esbarrou no Beto, que deixou cair o copo de cerveja no momento exato em que contava para todos a história do ônibus, que lhe arrancou um pedaço da orelha. Depois de dez anos, o passado era motivo de muito riso e rir, seguramente, era uma das suas maiores especialidades.

- Amor, disse-lhe Dulce, está na hora de apagar as velinhas.

Era aniversário do Felipe, filho dele – alguém que a vida parecia não ser capaz de quebrar- com ela –uma mulher romântica, mas prática. Completava cinco anos e era muito querido. Todos parentes viam nele alguma coisa de especial e os vizinhos idem. Olha o filho do Beto, diziam uns. Olha o filho da Dulce, comentavam outros. Famílias disputavam o privilégio de cuidar dele. Vocês precisam sair mais, diziam à Dulce. Vão namorar, pegar um cineminha. Deixa que a gente cuida do Fê. E, com tanta insistência, Beto e Dulce se acostumaram a sair, uma noite ou outra, sem qualquer preocupação com o filho. Felipe adorava sua casa, mas seu coração de criança abrigava "tios" e "tias" só encontrados nos limites do bairro, seu verdadeiro lar.

Um dia desses, encontrei com ele, já com seus trinta anos.

- E aí, Fê, tudo bem?

- Oi, como vai o senhor? E a coleção? Deve estar uma beleza. Disse ele, referindo-se à minha mania de montar miniaturas de aviões.

- Voar é preciso, viver não é preciso. Respondi brincando.

Ele me disse que ia buscar o carro no conserto e depois dar um pulo no hospital, pois o pai estava lá.

- O que aconteceu com o Beto? Perguntei agoniado.

Respondeu que o pai havia quebrado o braço e duas costelas, num acidente de carro, na volta de Santos. Quando lhe perguntei sobre Dulce, disse-me que ela não foi na viagem, pois tinha que ficar com o neto nas noites que a nora ia à faculdade.

- Nossa! Você já casou? E ainda por cima já é pai. Parabéns!- e dei-lhe um abraço.

- É, nós queimamos algumas etapas, disse com ar malicioso. Mas o casamento já era certo, com ou sem filho.

Não me despedi sem antes procurar saber sobre o hospital e o quarto que o Beto estava. Disse que iria visitá-lo. Felipe me deixou claro o quanto seria bom. Que o pai iria gostar muito. Fui lá no dia seguinte.

- Como é que vai, companheiro. Disse do leito em que estava, quando me viu.

Ficamos algumas horas conversando naquele dia. Voltei no seguinte e no outro, não só para lhe fazer companhia, mas também para ouvir suas confidências. Falou muito sobre as coisas de sua vida e da vida que julgava ver em certas coisas. Alternei minhas visitas com as de Dulce, dando-lhe chance de vencer o tédio hospitalar.

Depois de sua liberação no hospital, muitos foram os dias que nos reunimos para jogar conversa fora. Afinal, depois da aposentadoria, não havia muito que fazer. Não gostávamos de dominó, nem de cartas. Escolhemos a pescaria. Pescando e falando, falando e pescando. Assim foi por muito tempo até hoje. E, por falar nisso, é o que estamos fazendo nesse exato momento, aqui em Pirassununga.

Compramos um pesqueiro á beira do rio, meio a meio, para nossa velhice. As casas são geminadas e, de frente para elas, a da esquerda é minha e a direita é dele. O terreno é nosso, como também os peixes que pegamos. Henrique, seu neto, caiu da árvore ontem e deslocou a clavícula. Nós o levamos à cidade e ele não deu um piu.

- Forte esse garoto, ein? Disse o médico depois de enfaixá-lo.

Voltamos ao sítio e aos peixes. Já com o anzol na água, olhei para trás e vi a Dulce ajudando o Henrique a comer com uma mão só. Com ele no colo e numa dessas cadeiras dobráveis, ela lhe dava pedaços de torta de frango. Felipe espreguiçava na rede da varanda direita, enquanto sua esposa lia numa cadeira igual à da sogra. Minha mulher acenou pela janela da cozinha da esquerda. Preparava o tempero para os peixes que ainda viriam. Beto, à minha direita e compenetrado no anzol, já havia perdido três iscas. Ele ria e as recolocava, ria e as recolocava e acabava pegando alguma coisa.

Olhei para o céu com aquele azul uniforme de outono e me senti profundamente feliz.

-Peguei, Beto, peguei. Disse a ele.

- Puxa devagar, que lambari é arisco –comentou. Não inventa de puxar de vez, que pode ser mandi e se o ferrão dele encostar em você, nossa, dói pra burro -disse, rindo muito, bastante, como só ele sabia.

Dassault Breguet
Enviado por Dassault Breguet em 24/09/2010
Código do texto: T2518002