202

Duzentos e dois nasceu num vão entre dois telhados, justamente aqueles que cobriam o canil desocupado. Temporariamente, vale dizer. E esse era todo o problema, pois tanto ela como os irmãos caberiam ao mesmo tempo na boca da fera que morava lá e, mais alguns dias, talvez voltasse.

Filha de mãe vesga, portadora de algum mal genético que desfigurou seu rosto, ela passou seus primeiros dias entre os três irmãos. Quando contava com cerca de duas semanas de vida, o lar foi desfeito. Não por predadores, com morte, sangue e gritos de dor. Pelo contrário, Paulo era zeloso com animais. Percebeu movimentos naquele vão e tratou de ver o que era. Descobriu os filhotes, eram quatro, e por pouco não caiu da escada que usou para chegar até eles. A mãe surgiu de repente e quase o pegou com as unhas. Dez, das bem afiadas. Sem contar o grande susto em vê-la, que foi um único e suficiente. O animal tinha um dos olhos atrofiados, mas ainda eram dois. Contrastava com o outro, maior e quase na mesma altura do nariz. Era um bicho feio, impactante e dividido, pois conflitou fuga com volta, ela ou os filhotes. Foi e retornou por várias vezes. Até que um zero se deu e ela sumiu de vez, deixando o homem destelhar parte do canil em paz. Foram dezoito telhas, uma a uma, retiradas com vagar e cuidado, minimizando danos aos pequenos.

Desde que soube de Rebeca e do derrame, ele se ocupava com tudo. Salvar quatro gatos em um telhado e alimentar uma coruja faminta com uma asa quebrada era paliativo. Poderia ter feito mais por sua mulher. Por isso mesmo não parava. Seguia sempre se ocupando, como quem compensa um "você não fez mais quando podia" com um "farei tudo que puder", antes que algum juízo final imaginário viesse.

"Pai, pelo amor de Deus, me ajuda a cuidar da mamãe. Deixá-la quase o dia todo com a enfermeira e eu com essa falta de tempo. Por que você não vem só mais uma vez aqui? Talvez ela reaja melhor". As palavras da filha fortificavam os efeitos do seu desassossego. E sua cabeça, latejando, só se aquietava quando agia assim, cuidando de gatos, corujas e qualquer bicho que viesse. Morando no sítio, depois da aposentadoria, ele não só tinha o tempo todo para isso, como muitos "issos" para esse seu tempo todo. Animais que não ousavam aparecer, agora, na ausência do cão e farta oferta de alimento e atenção, não saiam dali. Dedicava a eles tudo o que quis fazer pela esposa, quando pode, e ela não quis. "Não precisava daquilo", dizia a mulher. A culpa o beliscava, mas não mordia. Mesmo depois de sua morte, Rebeca não lhe deixou nada que ele quisesse, mas apenas alguns "e se". "E se" ela não fosse tão orgulhosa e cínica? "E se" ele fosse menos compreensivo e mais violento? Comentários danosos do tipo "ele não fez mais por ela quando podia", também não vieram à tona. Todos o perdoavam. Afinal, não eram amigos dela, mas dele. Deu-lhe uma filha quase como conseqüência de um estupro, quando num dia, após trinta e sete tentativas anteriores, tomado por alguns drinks, ele enfiou à força seu membro naquela muralha. E a muralha se abriu, finalmente, e se deixou penetrar, desabando sobre ele, o único capaz de suportar seus escombros, esses sim, incontáveis. Ela até quis mais e ele notou, pelo seu constrangimento. Disfarçou o prazer que sentiu ao ser forçada, com um providencial toque de vulgaridade. Convidou-o a uns bis na cozinha, debruçada na pia, enquanto ele a penetrava por trás, no estilo dos cães. Concluiu provocando-o a um coito anal. De pé, encostou a barriga e os peitos no batente da porta, ao mesmo tempo em que, com movimentos sensuais, abria as duas nádegas com as mãos. Olhou para ele, que ainda tomava fôlego junto a pia, e esperou. Desde há muito, Paulo escondia esse desejo. Entrar naquela bunda, volumosa, arrebitada e macia. Não teve dúvidas, passou o indicador sobre o pote de manteiga, no estilo Marlon Brando, e foi até lá. No princípio, ela soltou alguns gritos abafados, misturando dor manifesta com prazer contido, mas depois ficou em silêncio, gostando de sentir a mão direita do marido em seu clitóris, enquanto a esquerda massageava um de seus seios e a manteiga garantia um fluxo livre daquele membro em seu ânus. Começou a chorar, sem que ele percebesse. Lacrimejou bastante, mas nada que ele pudesse notar, estando nas suas costas, absorvendo todo prazer que sua bunda lhe pudesse dar. Isso foi há 21 anos e culminou com uma gravidez cercada de cuidados e o início da reconstrução de uma muralha tida como perdida. Porém, antes da restauração completa, o derrame veio. Vera já estava com 20. Sua mãe parece ter se segurado aquele tempo todo, como quem afasta qualquer doença para bem depois do prazer de ver a filha educada. Ficou quase completamente imóvel, a não ser pelos espasmos e gritos que a presença de Paulo ocasionava. Ele resolveu mudar para o sítio, sublimando em todo bicho que passava por lá, a atenção com a esposa, que a própria nunca quis. Sítio e trabalho, trabalho e sítio, todos os dias úteis do ano. Não pensava em férias. O assunto lhe causava pânico e a proximidade da aposentadoria era uma perspectiva que lhe virava o estômago. Aos poucos, foi se adaptando à idéia. Adotou vários hobbie autistas, traduzidos em coleções de objetos, e outros altruístas, como trabalhos voluntários e o apreço franciscano pelos animais. A aposentadoria, enfim, veio, e a morte de Rebeca também. Teve um receio insano de ir ao enterro da mulher e vê-la vencer a morte, com contorções e gritos, comuns à presença dele.

A mãe dos filhotes do telhado apareceu por lá algumas vezes. Paulo aproveitou o fato e deixou-os bem visíveis e próximos do local. Talvez ela os levasse a um novo lugar, mas isso se deu apenas com dois. Por algum motivo a gata não quis os outros. Ele começou a pensar em alguém que os quisesse e saiu pelas redondezas, pesquisando prováveis novos donos. A garota que trabalha como caixa da padaria ficou com o tigrado. Restou apenas aquela fêmea, com vários tons de marrom e patas brancas, a Duzentos e Dois. Mais pesquisas e nada. Ninguém a queria. O tempo foi passando e o bicho se apegando. Paulo teve que aprender a andar sempre olhando para baixo, para não pisar no animal, que insistia em seguir seus pés. Suportou também o novo hábito de usar calça e camisa em dias de calor, pois o filhote gostava de escalá-lo pelas pernas até seus ombros e ficava um bom tempo lá em cima, ronronando junto a sua orelha e admirando a vista. De Duzentos e Dois, passou a Dois, fruto da rotina, que sempre traz um apelido para tudo. A filha costumava visitá-lo e levava a gata para a sua casa de vez em quando, prometendo devolvê-la no máximo em uma semana. Quanto ao cão de guarda que tinham, tiveram que sacrificá-lo. Durante bom tempo no veterinário, confinado para tratamento, só piorava de um tumor nos rins.

Virou um bicho abusado a Duzentos e Dois. Não abria mão ou, melhor dizendo, pata, de qualquer coisa que Paulo viesse a comer. Trocava a ração mais sofisticada por um pedaço que fosse daquilo que ele engolia, mas ficava louca mesmo com a sua omelete. Paulo, sem dúvida, não estava mais só. Redundante, eu sei, mas todos diziam formar um belo par com Dois. Essa gata lhe foi muito útil. De fato, foi mesmo, pois ocupou sua atenção tempo suficiente para a chegada de Ana, uma mulher especial e amiga antiga. Pensei até em falar mais sobre ela: Ana. Mas isso não iria somar ou acrescentar mais nada à situação, que um bom "se dar bem dos dois" já não bastasse.

Paulo vem se dando muito bem com Ana e Ana adora se dar a Paulo. Dois apenas observa, mas com um interesse que os faz rir, pois sugere cumplicidade. E talvez seja, já que ela, Dois, veio antes dos dois.

PS: 202, a gata, de fato existe. Seu nome eu tirei de um avião italiano da 2a. guerra (Machi Folgore-202), pelo fato da cor da sua pelagem ser quase idêntica à camuflagem do aparelho

Dassault Breguet
Enviado por Dassault Breguet em 24/09/2010
Reeditado em 24/09/2010
Código do texto: T2517577