E AGORA, DOUTOR?
E AGORA, DOUTOR?
"Hoje não, Nassau. Hoje só quero beber." Dispensei até o tira-gosto de filé no palito, deixando o atencioso garçom abismado com a minha decisão.
Era uma sexta-feira. Eu me sentia um "trapo". Estava mais pra baixo do que sola de sapato. E sem ter com quem desabafar, fui direto pro "Media Luna", pra mesma mesa daquele bar, em que costumava freqüentar com Aline nos finais-de-semana. E ali fiquei enchendo a cara, olhando, como um babaca, para o líquido da bebida, com o copo suspenso na mão, como que vendo alguma coisa nas bolhinhas de gás. Na verdade, eu via naquilo era o rosto de Aline. Não conseguia esquecê-la.
O exagero das três cervejas, que me levaram ao mictório algumas vezes, não me tirou do normal. Os rins estavam ótimos, funcionando numa boa. Eu, sim, era que, emocionalmente, estava podre.
"Que bom que amanhã é sábado e você pode dormir à vontade. Pode deixar que os serviços da casa ficam por minha conta. Até o almoço. Certo, benzinho?", "Se você quiser, podemos ir àquele self-service italiano, daquelas massas que você tanto gostou."
Eu me preocupava demais com o bem-estar de Aline. E recordei aquilo que eu sempre lhe falava naquele lugar, onde tomávamos chopes com pedaços de pizza, sempre às sextas-feiras. Estávamos casados há quase três anos, mas eu fazia questão que aquela convivência continuasse como no tempo de namoro e noivado. Dedicava-me por inteiro às vontades de Aline. Além disso, ainda escolhia nomes carinhosos para tratá-la. As tarefas que lhe competiam, eu procurava assumir, deixando-a muitas vezes constrangida, pois se sentia sem liberdade para as ocupações domésticas. Acho que até inútil, pois, vez por outra me jogava na cara: "Pelo que vejo, eu só sirvo aqui pra trabalhar na cama de noite, oh cara? Assim não dá!... Porra!"
Com a minha atitude, eu só queria poupá-la de cansaço; simplesmente para agradá-la. Julgava seu trabalho exaustivo na Escola de excepcionais, onde ministrava orientação psicológica e pedagógica.
Ainda não pensávamos num filho. Ela, principalmente, que nunca aventou essa hipótese. Era um assunto por que sempre passou indiferente. Até com frieza, quando, de leve, eu tocava neste ponto. Parecia-me que ainda não lhe havia despertado o instinto maternal, tão inerente à mulher, embora feita de gestos femininos, aparentemente, o que conclui depois. Muitas vezes fui astucioso: "... você notou como a Ângela está bonitona depois que engravidou? hem, paixão (como também a tratava)?" Interroguei-a um dia, quando descíamos o elevador do prédio, onde residíamos até bem pouco. Ângela era a nossa vizinha do 14º andar. E as suas respostas eram as mesmas, ríspidas, sempre curtas e... grossas. "Não! Não observei. E sabe do mais, não tenho nenhuma inveja. Por favor, arranje outro papo. Combinado?" Contrariava-me assim, bruscamente, saturada por certo das minhas insinuações.
Nassau, o bom garçom, atendeu-me outra vez quando estalei o dedo médio no polegar, e me serviu, abismado, a quarta cerveja. "O que o doutor está comemorando hoje?" Na verdade, não era o meu normal, comparando com o que consumia noutras ocasiões. "Fica na tua e serve logo essa porra, sem colarinho!" Estupidamente irritei-me com o pobre homem, que, humilhado, disse apenas "tudo bem, doutor. Tudo bem. Desculpe, doutor..." E deu meia-volta rápida, como um recruta humilhado no quartel, e se misturou aos fregueses que começavam a encher as mesas, naquele entardecer, para a comemoração do "dia nacional da cerveja", porque era uma sexta-feira. É assim que os pinguços denominaram esse dia.
Suspendi mais uma vez o copo cheio, fitei-o por alguns segundos e, lentamente, pus na mesa e comecei a alisá-lo, lembrando-me das carícias que fazia em Aline.
- Como a sua pele é macia, querida...
- Você acha?
- Não era para achar?
- Sei lá!
- E se eu tivesse barba?
- Você acha que eu sou homossexual para alisar cara de homem?
- Não! Eu sei que você é macho até demais.
- Mas tem homem que parece machão e gosta de fazer isso com outro homem; como tem mulher que se sente bem fazendo isso com outra mulher. E daí...?
- Daí? Daí é que eu acho que isso se chama sodomia.
- Sodomia? Que é isso? Nunca ouvi falar.
- Sodomia, chuchuzinho, é esse tipo de relação sexual fora dos padrões normais. Este termo vem de uma cidade de nome Sodoma, conforme está na Bíblia. Lá se praticava sexo de todo jeito: normal e anormal, como anal, oral; homens transavam com homens, mulheres com mulheres. Era uma putaria que você não faz idéia. A sacanagem rolava adoidado, solta, desde aquele tempo.
- Pô, meu! Como você sabe das coisas, cara?
- Que nada... É porque já li muito. Desde o meu tempo do ginásio que sou vidrado em História Antiga. Olha aqui! Talvez não acredite, mas até o Velho Testamento - o 1º Livro da Bíblia - eu li muitas vezes. Mesmo sem professar qualquer credo.
- Caramba! Então, como você é o doutor sabe-tudo, me explica por que mulher que gosta de mulher é tachada de lésbica? Um nome que acho esquisito pra caralho...?
- Olha aqui, benzinho! Na Antiguidade, no início mais ou menos do século VI, antes do cristianismo, na ilha de Lesbos, na Grécia, viveu uma poetisa de nome Safo, e ali, refugiada, fundou uma espécie de escola de poesia lírica. Mas, nessa sua instituição só era permitido o ingresso de mulheres. Ela assim determinou. Homem lá, nem pra remédio. E, assim, por falta do "bicho-homem", elas se amavam mutuamente. Praticavam, entre si, toda espécie de anomalias sexuais.
- Era mesmo? Devia ser uma barato, quero dizer..., não havia homens para encher o saco, pra dar pitaco, aquela de machão, de superior, de durão!
- Não! Não havia homens. Não sei se era um "barato", como você diz...
- Desculpa, ta?
- OK. Tudo faz crer que uma delas, alguma preferida, não correspondia aos anseios de Safo, ao seu grande amor, e, frustrada, sem dúvida, terminou por se suicidar, precipitando-se de um rochedo, que tem mo nome de Lêucade e sumiu nas ondas do mar bravio daquela região. Como viviam naquela Ilha - Lesbos - receberam, assim, a denominação de "lésbicas". Deu pra entender?
- Caramba! Nunca pensei que tivesse casado com um professor de História... O que eu sei é que você ensina Química. Mas...
- Mas o quê?
- Nada! Deixa pra lá... Esquece.
Lembrava-me, olhando o copo, deste diálogo que tivemos uma vez, naquele bar da zona sul do Rio, e resmunguei comigo mesmo: "êta vidinha complicada do caralho!".
Não sabia com que cara iria enfrentar meus alunos na aula de segunda-feira, embora tivesse o sábado e o domingo para refletir um pouco, para botar as idéias no lugar. Estava receoso de ter um "branco", de faltar argumento na sala de aula, diante daquelas moças e rapazes, os quais, muitos deles mesmo, admiravam-me, não só como professor, mas como amigo e confidente. Muitos já conheciam Aline, que, muitas vezes, quando ficava com o automóvel, ia me apanhar no Colégio, onde eu lecionava e de onde saíamos, depois da última aula das 21 horas, geralmente para casa ou para um barzinho qualquer, na Barra da Tijuca.
"Quando chegar em casa vou arrebentar aquele computador filho da puta!" Foi o que me veio à cabeça, quando deixei o "Media Luna". Pensei bem alto dentro de mim, trincando os dentes, quase possesso de uma ira incontrolável, como se a máquina fosse culpada do péssimo estado emocional em que me encontrava.
Contudo, controlei-me. Por quê fazer isso? Seria uma atitude irracional. Não! Estou precisando mesmo é de um analista. Disso é que estou precisando. E uma luz, vinda não sei de onde, tocou-me e então me lembrei do meu velho amigo Dr. Penna, de quem já fui cliente em outras circunstâncias.
Permaneci pensativo por mais uns instantes. A cabeça já estava meio pesada da contínua ingestão de álcool. Não tinha com quem conversar. Tampouco procurei alguém para isso. Bebia sem fazer pausa, o que nunca aconteceu quando de outras vezes que ali estivemos - Aline e eu.
"Hei! Nassau! Traz a conta. Rápido!" Resolvi ir embora, dando passadas irregulares para alcançar o meu carro, estacionado à frente do "Media Luna", chamando a atenção de algumas pessoas e, principalmente do garçom, que, gentilmente, ofereceu-me ajuda.
"Foda-se!" foi a minha resposta entre os dentes, arrancando rápido do estacionamento, como um adolescente irresponsável. Não sei como cheguei na Barra. Com dificuldade deixei o carro na garagem e peguei o elevador de serviço, evitando encontrar-me com algum morador do prédio. Eu já era bem conhecido no Condomínio, não só pela minha popularidade, como pela minha conduta, modéstia à parte. Já se comentava até no meu nome para síndico na próxima eleição.
De olhos fixos no computador, que ficava em frente ao sofá, ali mesmo adormeci, depois daquela bebedeira idiota. Acordei bem cedo, no dia seguinte, com a cabeça rodando e o estômago vazio, dando-me um gosto amargo na boca ressecada que, com vários bochechos, procurei me aliviar. Abri a geladeira e peguei um copo de leite, antes de tomar uma espirina para abortar uma provável dor de cabeça que já se prenunciava. Caminhei, desorientado, pelo apartamento desarrumado, indo até à porta da nossa suíte. E feito um idiota, quase não saí de um pranto que me descontrolou por uns instantes, olhando a nossa cama do mesmo jeito, com os lençóis e travesseiros espalhados, desde a última transa que tivemos.
O telefone tocou naquele momento. "Puta merda! Será aquela cadela?" Interroguei-me acovardado, esfregando as mãos, acuado na parede como um animal indefeso, ameaçado por seu algoz. Num esforço supremo, arranquei o telefone e esperei que do outro lado alguém se manifestasse. Era meu pai, felizmente. E suspirei aliviado.
"Marcos! Alô! Marcos! Como você está!"
Já por muito tempo, meu pais haviam se mudado para Curitiba, onde desejavam que eu também fosse viver.
"Estou no fundo do poço... Arrasado mesmo, meu pai..". Respondi afogado num choro convulsivo, amparado pelas palavras amigas e conselheiras do meu velho, que também sofria por mim. E despediu-se amargurado.
Liguei o meu home-theater no máximo de volume, como nunca escutara antes, na estupidez de nem pensar que estava molestando a vizinhança e, principalmente a amiga Ângela, gestante de oito meses, cuja barriga me causou inveja, no desejo de uma igualzinha para Aline, que sempre me demoveu da idéia. Enquanto ouvia os acordes estrepitosos do Concerto nº 2, Allegro Vivace, de Chopin, meus olhos estavam cravados num porta-retrato em que aparecia ao lado de Aline, por ocasião de um passeio que fizemos na nossa lua-de-mel pelo litoral santista. Súbito, com um ódio mortal que me tomou, espatifei o quadro atirando-o contra a parede, jogando os cacos pela janela, nem me lembrando dessa infração às normas gerais do Condomínio. Odiei naquele instante tudo que lembrasse Aline.
Ainda era sábado e tinha a eternidade das horas para chegar domingo e a 2ª feira para ir ao Cartório. A certidão do nosso divórcio foi prometida para aquele primeiro dia útil da semana, de céu sombrio, prometendo chuva, que muito contribuíu para o meu desolamento. Consultei o relógio e vi que tinha tempo suficiente para dar uma geral na fisionomia, que estava mais para acompanhante de enterro do que para outra coisa. Uma ducha fria no corpo amarrotado de mágoas, desilusões, revolta e traição seria o remédio certo.
Peguei um copo de leite na geladeira e tentei relaxar por uns minutos na poltrona. Mas logo, não me contendo, liguei o computador e, mais uma vez, li o e-mail carinhoso de Aline para outra lésbica, daqui mesmo de São Paulo, com quem mantinha um romance, por mais de um ano, como, descaradamente, me confessou.
"... eu te amo, Valeska, acredite! Nada neste mundo vai nos separar!..."
Desliguei o micro e, fechando a porta do apartamento com força, saí enxugando as minhas lágrimas inúteis, de dor-de-corno, em direção ao Cartório.
O meu analista me ouviu pacientemente, sem uma pergunta sequer. Talvez sem qualquer alternativa. Restou-me, então, o interrogar: "... E agora, doutor?"
E AGORA, DOUTOR?
"Hoje não, Nassau. Hoje só quero beber." Dispensei até o tira-gosto de filé no palito, deixando o atencioso garçom abismado com a minha decisão.
Era uma sexta-feira. Eu me sentia um "trapo". Estava mais pra baixo do que sola de sapato. E sem ter com quem desabafar, fui direto pro "Media Luna", pra mesma mesa daquele bar, em que costumava freqüentar com Aline nos finais-de-semana. E ali fiquei enchendo a cara, olhando, como um babaca, para o líquido da bebida, com o copo suspenso na mão, como que vendo alguma coisa nas bolhinhas de gás. Na verdade, eu via naquilo era o rosto de Aline. Não conseguia esquecê-la.
O exagero das três cervejas, que me levaram ao mictório algumas vezes, não me tirou do normal. Os rins estavam ótimos, funcionando numa boa. Eu, sim, era que, emocionalmente, estava podre.
"Que bom que amanhã é sábado e você pode dormir à vontade. Pode deixar que os serviços da casa ficam por minha conta. Até o almoço. Certo, benzinho?", "Se você quiser, podemos ir àquele self-service italiano, daquelas massas que você tanto gostou."
Eu me preocupava demais com o bem-estar de Aline. E recordei aquilo que eu sempre lhe falava naquele lugar, onde tomávamos chopes com pedaços de pizza, sempre às sextas-feiras. Estávamos casados há quase três anos, mas eu fazia questão que aquela convivência continuasse como no tempo de namoro e noivado. Dedicava-me por inteiro às vontades de Aline. Além disso, ainda escolhia nomes carinhosos para tratá-la. As tarefas que lhe competiam, eu procurava assumir, deixando-a muitas vezes constrangida, pois se sentia sem liberdade para as ocupações domésticas. Acho que até inútil, pois, vez por outra me jogava na cara: "Pelo que vejo, eu só sirvo aqui pra trabalhar na cama de noite, oh cara? Assim não dá!... Porra!"
Com a minha atitude, eu só queria poupá-la de cansaço; simplesmente para agradá-la. Julgava seu trabalho exaustivo na Escola de excepcionais, onde ministrava orientação psicológica e pedagógica.
Ainda não pensávamos num filho. Ela, principalmente, que nunca aventou essa hipótese. Era um assunto por que sempre passou indiferente. Até com frieza, quando, de leve, eu tocava neste ponto. Parecia-me que ainda não lhe havia despertado o instinto maternal, tão inerente à mulher, embora feita de gestos femininos, aparentemente, o que conclui depois. Muitas vezes fui astucioso: "... você notou como a Ângela está bonitona depois que engravidou? hem, paixão (como também a tratava)?" Interroguei-a um dia, quando descíamos o elevador do prédio, onde residíamos até bem pouco. Ângela era a nossa vizinha do 14º andar. E as suas respostas eram as mesmas, ríspidas, sempre curtas e... grossas. "Não! Não observei. E sabe do mais, não tenho nenhuma inveja. Por favor, arranje outro papo. Combinado?" Contrariava-me assim, bruscamente, saturada por certo das minhas insinuações.
Nassau, o bom garçom, atendeu-me outra vez quando estalei o dedo médio no polegar, e me serviu, abismado, a quarta cerveja. "O que o doutor está comemorando hoje?" Na verdade, não era o meu normal, comparando com o que consumia noutras ocasiões. "Fica na tua e serve logo essa porra, sem colarinho!" Estupidamente irritei-me com o pobre homem, que, humilhado, disse apenas "tudo bem, doutor. Tudo bem. Desculpe, doutor..." E deu meia-volta rápida, como um recruta humilhado no quartel, e se misturou aos fregueses que começavam a encher as mesas, naquele entardecer, para a comemoração do "dia nacional da cerveja", porque era uma sexta-feira. É assim que os pinguços denominaram esse dia.
Suspendi mais uma vez o copo cheio, fitei-o por alguns segundos e, lentamente, pus na mesa e comecei a alisá-lo, lembrando-me das carícias que fazia em Aline.
- Como a sua pele é macia, querida...
- Você acha?
- Não era para achar?
- Sei lá!
- E se eu tivesse barba?
- Você acha que eu sou homossexual para alisar cara de homem?
- Não! Eu sei que você é macho até demais.
- Mas tem homem que parece machão e gosta de fazer isso com outro homem; como tem mulher que se sente bem fazendo isso com outra mulher. E daí...?
- Daí? Daí é que eu acho que isso se chama sodomia.
- Sodomia? Que é isso? Nunca ouvi falar.
- Sodomia, chuchuzinho, é esse tipo de relação sexual fora dos padrões normais. Este termo vem de uma cidade de nome Sodoma, conforme está na Bíblia. Lá se praticava sexo de todo jeito: normal e anormal, como anal, oral; homens transavam com homens, mulheres com mulheres. Era uma putaria que você não faz idéia. A sacanagem rolava adoidado, solta, desde aquele tempo.
- Pô, meu! Como você sabe das coisas, cara?
- Que nada... É porque já li muito. Desde o meu tempo do ginásio que sou vidrado em História Antiga. Olha aqui! Talvez não acredite, mas até o Velho Testamento - o 1º Livro da Bíblia - eu li muitas vezes. Mesmo sem professar qualquer credo.
- Caramba! Então, como você é o doutor sabe-tudo, me explica por que mulher que gosta de mulher é tachada de lésbica? Um nome que acho esquisito pra caralho...?
- Olha aqui, benzinho! Na Antiguidade, no início mais ou menos do século VI, antes do cristianismo, na ilha de Lesbos, na Grécia, viveu uma poetisa de nome Safo, e ali, refugiada, fundou uma espécie de escola de poesia lírica. Mas, nessa sua instituição só era permitido o ingresso de mulheres. Ela assim determinou. Homem lá, nem pra remédio. E, assim, por falta do "bicho-homem", elas se amavam mutuamente. Praticavam, entre si, toda espécie de anomalias sexuais.
- Era mesmo? Devia ser uma barato, quero dizer..., não havia homens para encher o saco, pra dar pitaco, aquela de machão, de superior, de durão!
- Não! Não havia homens. Não sei se era um "barato", como você diz...
- Desculpa, ta?
- OK. Tudo faz crer que uma delas, alguma preferida, não correspondia aos anseios de Safo, ao seu grande amor, e, frustrada, sem dúvida, terminou por se suicidar, precipitando-se de um rochedo, que tem mo nome de Lêucade e sumiu nas ondas do mar bravio daquela região. Como viviam naquela Ilha - Lesbos - receberam, assim, a denominação de "lésbicas". Deu pra entender?
- Caramba! Nunca pensei que tivesse casado com um professor de História... O que eu sei é que você ensina Química. Mas...
- Mas o quê?
- Nada! Deixa pra lá... Esquece.
Lembrava-me, olhando o copo, deste diálogo que tivemos uma vez, naquele bar da zona sul do Rio, e resmunguei comigo mesmo: "êta vidinha complicada do caralho!".
Não sabia com que cara iria enfrentar meus alunos na aula de segunda-feira, embora tivesse o sábado e o domingo para refletir um pouco, para botar as idéias no lugar. Estava receoso de ter um "branco", de faltar argumento na sala de aula, diante daquelas moças e rapazes, os quais, muitos deles mesmo, admiravam-me, não só como professor, mas como amigo e confidente. Muitos já conheciam Aline, que, muitas vezes, quando ficava com o automóvel, ia me apanhar no Colégio, onde eu lecionava e de onde saíamos, depois da última aula das 21 horas, geralmente para casa ou para um barzinho qualquer, na Barra da Tijuca.
"Quando chegar em casa vou arrebentar aquele computador filho da puta!" Foi o que me veio à cabeça, quando deixei o "Media Luna". Pensei bem alto dentro de mim, trincando os dentes, quase possesso de uma ira incontrolável, como se a máquina fosse culpada do péssimo estado emocional em que me encontrava.
Contudo, controlei-me. Por quê fazer isso? Seria uma atitude irracional. Não! Estou precisando mesmo é de um analista. Disso é que estou precisando. E uma luz, vinda não sei de onde, tocou-me e então me lembrei do meu velho amigo Dr. Penna, de quem já fui cliente em outras circunstâncias.
Permaneci pensativo por mais uns instantes. A cabeça já estava meio pesada da contínua ingestão de álcool. Não tinha com quem conversar. Tampouco procurei alguém para isso. Bebia sem fazer pausa, o que nunca aconteceu quando de outras vezes que ali estivemos - Aline e eu.
"Hei! Nassau! Traz a conta. Rápido!" Resolvi ir embora, dando passadas irregulares para alcançar o meu carro, estacionado à frente do "Media Luna", chamando a atenção de algumas pessoas e, principalmente do garçom, que, gentilmente, ofereceu-me ajuda.
"Foda-se!" foi a minha resposta entre os dentes, arrancando rápido do estacionamento, como um adolescente irresponsável. Não sei como cheguei na Barra. Com dificuldade deixei o carro na garagem e peguei o elevador de serviço, evitando encontrar-me com algum morador do prédio. Eu já era bem conhecido no Condomínio, não só pela minha popularidade, como pela minha conduta, modéstia à parte. Já se comentava até no meu nome para síndico na próxima eleição.
De olhos fixos no computador, que ficava em frente ao sofá, ali mesmo adormeci, depois daquela bebedeira idiota. Acordei bem cedo, no dia seguinte, com a cabeça rodando e o estômago vazio, dando-me um gosto amargo na boca ressecada que, com vários bochechos, procurei me aliviar. Abri a geladeira e peguei um copo de leite, antes de tomar uma espirina para abortar uma provável dor de cabeça que já se prenunciava. Caminhei, desorientado, pelo apartamento desarrumado, indo até à porta da nossa suíte. E feito um idiota, quase não saí de um pranto que me descontrolou por uns instantes, olhando a nossa cama do mesmo jeito, com os lençóis e travesseiros espalhados, desde a última transa que tivemos.
O telefone tocou naquele momento. "Puta merda! Será aquela cadela?" Interroguei-me acovardado, esfregando as mãos, acuado na parede como um animal indefeso, ameaçado por seu algoz. Num esforço supremo, arranquei o telefone e esperei que do outro lado alguém se manifestasse. Era meu pai, felizmente. E suspirei aliviado.
"Marcos! Alô! Marcos! Como você está!"
Já por muito tempo, meu pais haviam se mudado para Curitiba, onde desejavam que eu também fosse viver.
"Estou no fundo do poço... Arrasado mesmo, meu pai..". Respondi afogado num choro convulsivo, amparado pelas palavras amigas e conselheiras do meu velho, que também sofria por mim. E despediu-se amargurado.
Liguei o meu home-theater no máximo de volume, como nunca escutara antes, na estupidez de nem pensar que estava molestando a vizinhança e, principalmente a amiga Ângela, gestante de oito meses, cuja barriga me causou inveja, no desejo de uma igualzinha para Aline, que sempre me demoveu da idéia. Enquanto ouvia os acordes estrepitosos do Concerto nº 2, Allegro Vivace, de Chopin, meus olhos estavam cravados num porta-retrato em que aparecia ao lado de Aline, por ocasião de um passeio que fizemos na nossa lua-de-mel pelo litoral santista. Súbito, com um ódio mortal que me tomou, espatifei o quadro atirando-o contra a parede, jogando os cacos pela janela, nem me lembrando dessa infração às normas gerais do Condomínio. Odiei naquele instante tudo que lembrasse Aline.
Ainda era sábado e tinha a eternidade das horas para chegar domingo e a 2ª feira para ir ao Cartório. A certidão do nosso divórcio foi prometida para aquele primeiro dia útil da semana, de céu sombrio, prometendo chuva, que muito contribuíu para o meu desolamento. Consultei o relógio e vi que tinha tempo suficiente para dar uma geral na fisionomia, que estava mais para acompanhante de enterro do que para outra coisa. Uma ducha fria no corpo amarrotado de mágoas, desilusões, revolta e traição seria o remédio certo.
Peguei um copo de leite na geladeira e tentei relaxar por uns minutos na poltrona. Mas logo, não me contendo, liguei o computador e, mais uma vez, li o e-mail carinhoso de Aline para outra lésbica, daqui mesmo de São Paulo, com quem mantinha um romance, por mais de um ano, como, descaradamente, me confessou.
"... eu te amo, Valeska, acredite! Nada neste mundo vai nos separar!..."
Desliguei o micro e, fechando a porta do apartamento com força, saí enxugando as minhas lágrimas inúteis, de dor-de-corno, em direção ao Cartório.
O meu analista me ouviu pacientemente, sem uma pergunta sequer. Talvez sem qualquer alternativa. Restou-me, então, o interrogar: "... E agora, doutor?"