Mas é o que eu digo pro senhor. Tá vendo esse banco aqui? Banco não, que isso nem banco é – não passa de umas achas tiradas do mato e cravadas nesse chão vermelho – pois é que essa bancada já tá por aqui, na solina e na chuvisca, mas faz é tempo. Não passa de uma lenho rachado, mal ajambrado, mas os castigos do tempo cuidaram de contornar seus espigões, escavacar suas farpas e até brunir seu dorso tosco. Tá vendo?
Eu me assento aqui, o senhor sabe, desde sempre. Às vezes fico buscando o andamento do tempo aqui, dentro da cabeça, relando meus pensamentos, e vejo que ele é feito uma herança de meu pai, sabe? Me assento aqui desde da barriga de minha mãe. Depois molecota, depois embarrigada. Não muda nadinha nessa terra empoeirada. Uma casinha que varia de azul pra verde, umas telhinhas trocadas por outras abiscoitadas por aí, a horta de seu Nelsinho, as roupas penduradas no varal da casa de dona Norminha balangando na ponta do bambu, querendo voar sem poder. Nadinha muda! Assim, de ver ao olho comprido, gordo – como dizia meu pai – tudo parece que é a mesma coisa. Que nem esse banco aqui.
Mas é o que eu digo pro senhor. Da vida que passa pelo lado de dentro da gente, do lado da afeição, do agrado, que a gente nem repara, cada coisa dessa aí tem seu castigo próprio, não sabe? Ah, tem! Cada coisa tem seus arredondados, suas escavadas, seus amanhos do tempo. Eu fico aqui com meu cigarrinho, olhando minhas pernas finas que já andaram muito por aí, secas, arrostadas pelo sol; minha viuvez que nunca sarou, lembrando meus meninos, hoje tudo de barba na cara. E eu digo pro senhor: tudo tem seu castigo nessa vida.
Não é castigo de castigo punição não. Não, que Deus sempre foi muito bom comigo. E com toda essa gente que vive aqui. Castigo de natureza mesmo. Que nem esse banco, esse madeiro que veio do mato, ostentoso e verde. Teve que ceder, teve que definhar da própria posse, murchar, secar. Teve que ser domado, esturricar no fogo do sol, distorcer na força dos ventos, pra se deleitar com esse luzeiro dos céus.
Castigo é um nome feio, né? Dá ideia de coisa ruim. Mas, não. A gente precisa ser padecida, como eu digo pro senhor. E é o tempo, não sabe? É o tempo que curte os espinhos, apruma as raízes, engraxa as folhas, mesmo secas.
Me assento aqui todo santo dia. Fico aqui repetindo minhas histórias. Eu mais o Marujo, que nem nunca viu o mar, que muito mal já latiu pra alguém. A vida fica sempre assim, parecida que não muda nunca, que não mudou. Mas é engano, ilusão da purinha! Como eu digo pro senhor, só o que não muda é a luz. Nem das estrelas lá de cima, que só troca de lugar, nem a de dentro, não sabe, que cada dia clareia mais. Só não sei se pra gente avistar de mais ou de menos.
É isso que agora eu quero entender. Olho pra mim, fico tocaiando a lisura desse banco velho que nem a vida dessa gente, palpitando aqui sozinha sobre esse mundo de Deus, imaginado quanto de estrela deve de ter solta aí pela noite. É como eu digo pro senhor...
Se a gente arreparar direitinho, a luzinha da gente começa que nem uma velinha, dessas de bolo, sabe. Alumia pouquinho! Não dá pra ver quase nada. Nem do lado de fora, nem do lado de dentro. Mas, depois, vai clareando, parece até que começa a raiar um sol de dentro e a gente vai vendo mais e mais... às vezes é tanta luz que até cega, não sabe?
E aí é que eu digo, que enxergar demais atrapalha. A gente vê coisas que nem quer ver. Como pensar que nada muda. Eu cismo com umas coisas esquisitas. Eu sei. Quer mais esquisito que isso? Entender esse clareamento? É... Mas, eu digo pro senhor, nem o tempo, nem o vento, pode com a luz não, viu? Não tem jeito. E eu acredito, acredito mesmo, que ela, depois que nasce, não morre mais não, pois que vem desse padecimento da vida. Que nem o banco. Daqui uns tempos pode voltar aqui e o senhor vai ver, ele vai estar mais lustroso que hoje. Pode contar.
Eu digo pro senhor, que isso eu até entendo, mas o que me embatuca é se isso é bom ou ruim, se é pra avistar de mais ou de menos. Sei lá, é como eu digo pro senhor...