AUDITORIA II

(Continuação de Auditoria I e de Moema)

A distância entre o hotel e a sucursal não chegava a quinhentos metros conforme me dissera o rapaz da recepção, enquanto rabiscava um mapinha no verso da folha do bloco de sugestões.

Sem sair da calçada, segui pela esquerda contornando a praça até a rua lateral da pequena igreja pintada de branco com detalhes marrom. Espremida entre o templo e o casario antigo, essa passagem recebeu da Câmara de vereadores o nome pomposo de Almirante Peixoto, mas apesar de constar nas quatro placas indicativas, a tradição popular e também para fazer jus ao seu aspecto sanitário, continuou sendo chamada de “Beco da Bosta”.

Para não sujar os pés nos muitos montinhos que justificavam o nome e a fama do beco, segui pelo calçamento feito com pedras negras, pequenas e redondas, conhecido como cabeça de negro. Felizmente a Praça João Lisboa está logo à frente e podemos nos ver livres daquele cheiro nauseabundo do beco mais conhecido de São Luis.

A praça, muito bem cuidada, ostenta no meio do canteiro central a estátua do jornalista famoso, cuja merecida homenagem lhe foi prestada pelos conterrâneos. A brisa matutina varria a praça e o sol nascente ressaltava as cores das vestimentas das vendedoras ambulantes de camarão, farinha e hortaliças. Cestos enormes repletos de camarões secos e ao lado de cada um deles o paneiro com a farinha de mandioca cujos grãos grandes são tratados com algo que lhes dá o tom de enxofre e sabor inigualável.

- Senhora! Que mercado fazes deste camarão?

- Uma quarta!

- E qual o preço que tu cobras por ela?

- Vinte e cinco centavos, senhora.

- Em levando uma libra, poder-te-ia pagar oitenta?

- Far-te-ei por noventa!

- Que seja! Far-me-ias a gentileza de não colocar os grandes?

Depois de acertado o preço, a vendedora utilizando um escorredor fabricado de chifre de boi, colocou quatro medidas do camarão numa cestinha trançada com palha de buriti e entregou à compradora.

- Cá está senhora. Muito obrigada.

- Cabe-me agradecer-te pela gentileza.

Parado, perto das duas, fingindo examinar os camarões eu acompanhava embevecido esse diálogo espontâneo entre duas pessoas do povo, talvez analfabetas, onde fora utilizado o português castiço que o restante dos brasileiros esqueceu.

Segui pela Rua Duque de Caxias e bem antes do horário normal de expediente estava na portaria do prédio. Pedi ao porteiro que indicasse quando chegasse alguém da companhia.

Antes de qualquer atitude, procurei desfazer o mal estar que a carta da Matriz me autorizando a tomar todas as providências para esclarecer o sumiço do dinheiro poderia provocar. Pedi ao Raimundo que abrisse o cofre e contamos todo dinheiro em espécie e os cheques de terceiros ali guardados. Fizemos os levantamentos até o final do expediente e fomos jantar com os funcionários neste primeiro dia e nos dois seguintes até concluirmos o trabalho.

- Como você explica esse desfalque?

- Não tenho nada a esconder. Simplesmente usei o dinheiro como o pessoal da Diretoria faz. Fiz meu pé de meia para garantir o futuro. Comprei fazenda de gado em Codó e tenho outra em vista Pinheiros. Se você não fez nada para se garantir, devemos fazer agora porque quanto tempo mais você acha que essa companhia vai durar, um mês, dois, três?

A fiscalização está desde ontem na Matriz. As contas estão bloqueadas. Tem muita gente graúda do governo federal querendo tomar conta disso.

Enquanto Raimundo falava recebi ligação da sucursal São Paulo. Yoko estava apreensiva e recomendou que eu desse fim a todos os papeis capazes de nos comprometer.

- Deixa a bomba estourar só na Matriz. Eles têm costas quentes, aguentam o aperto. Estou com saudades meu amor. Quando é que você vem me ver?

Raimundo acompanhava nossa conversa pelo viva voz e fez um gesto de aprovação e disse:

- Eu tenho uma proposta para você. Vamos ser sócios. Pegamos esse dinheiro mais o que está no banco e compramos gado de corte. Tem uma fazenda de quinze mil hectares em Codó que o dono está com câncer e podemos comprar por preço de banana madura. Você muda para cá...

- Mas eu tenho família.

- Mude para cá com a mulher e as crianças. Se não quiserem vir, constitua nova família com Moema. Ela é prima de minha mulher e Heloisa pode facilitar as coisas. Você também pode ficar com uma dessas meninas do escritório que você experimentou.

- Quem lhe falou isso?

- Aqui tudo se sabe. A Graça me contou como você sabe tratar uma mulher. Virgínia também só lhe fez elogios. Rapaz, você é dos meus!

Nesses dias de convívio direto, pude conhecer melhor o amigo Raimundo, sua maneira gentil de tratar a todos, a forma franca e direta com que expunha as suas opiniões, a convicção com que defendia suas ideias e principalmente o acerto de suas colocações.

Ainda no escritório liguei para minha casa. A festinha de aniversário de meu filho menor ia animada e Marta me deu o número do telefone residencial de Yoko, a gerente da Sucursal São Paulo e o recado de que eu deveria ligar imediatamente.

Quando me identifiquei, Keiko irmã de Yoko, fez as perguntas código para identificação que só eu e Yoko sabíamos.

- O recado é o seguinte: A superintendência decretou intervenção. O sedex vai entregar na casa de Raimundo um milhão e meio de dólares para você transformar em algo que ninguém desconfie nem possa tomar. Chegarei ao Recife amanhã no vôo do meio dia.

- Você tem a voz linda menina. Dá até arrepio.

- Sua voz também é muito bonita. Lembra locutor de rádio FM.

- Preciso conhecer a dona de voz tão macia.

- Se Yoko me levar. Eu adoraria conhecer o nordeste.

- Está feito. Você virá para São Luis no mesmo vôo de Yoko. Ela desce no Recife e você continua. Estarei lhe esperando no aeroporto sem falta. Chegue cedinho em Congonhas e pegue sua passagem no balcão da VASP. Seu nome é Keiko Yamamoto?

- Sim.

- Vou desligar para providenciar tudo. Estarei no portão de desembarque com a plaqueta com seu nome. OK? Um beijo querida. Até amanhã.

- Vais comer japonesa, hein?

- Que é isso rapaz! Só vou tentar. (risos)

São dez horas da noite e o aeroporto de Guarulhos está fervendo. Parece que tem mais pessoas do que na Rua 25 de Março às vésperas do natal. Ainda bem que estou longe do burburinho, numa poltrona reclinável da sala VIP. Essa é uma das vantagens da passagem de primeira classe. Meu vôo para Paris está programado para zero hora e vinte e cinco minutos.

Nesses últimos doze anos, perdi a conta de quantas vezes fui à Europa negociar exportação de carne. Hoje não. Nessa viagem vou assistir à colação de grau de José, meu filho do primeiro casamento, na Universidade de Montpellier e conhecer o meu genro, Jean Pierre, com quem José se casou numa cerimônia coletiva do movimento gay na França e tentar controlar os gastos do cartão de crédito de Marta.

Na próxima semana, Keiko, Yoko e eu, iremos a Tóquio fechar um negócio de exportação do gengibre que estamos produzindo na fazenda em Altamira. Raimundo que foi assistir a formatura do filho em Harvard, vai nos encontrar lá.

Nesses momentos de folga dá para relembrar como nossa vida mudou em tão curto espaço de tempo.

Depois do telefonema de Keiko, entrei em contato com os colegas das demais sucursais e recolhi todo dinheiro destinado à remessa para a Matriz, mandei que fizessem os recibos no nome do Diretor Tesoureiro e arranjassem alguém estranho para assinar como mensageiro.

Durante uns trinta dias estivemos no vórtice do furacão, mas tínhamos recibos devidamente assinados pelos mensageiros. A historinha que foi passada para os auditores independentes foi de que ordem expressa da Matriz para todas as filiais mandava entregar os malotes, contendo dinheiro em espécie, aos mensageiros nos aeroportos. Os valores dos recibos batiam com os valores arrecadados pelas filiais, de forma que nenhuma responsabilidade pelo desaparecimento do dinheiro pode ser atribuída a nós, “funcionários honestos e eficientes”.

Marta, minha primeira esposa, e Yoko, começaram um relacionamento homossexual no mesmo dia em que ela chegou lá em casa. É um relacionamento cheio de conflitos, crises de ciúmes, com separações e reconciliações sem fim.

Em sociedade com Raimundo me tornei criador de gado de corte e, talvez inspirado pelos belos reprodutores, acertei minha vida amorosa com Moema que depois de formada, tornou-se Diretora Administrativa no resort Ponta d’Areia Beach.

Temos dois filhos. Omoro, com onze anos e Anastácia, minha bonequinha de ébano com os olhos azuis iguais aos meus, que vai completar dois anos no mês que vem. Moramos numa casa bem grande na Praia do Calhau.

Na fazenda de Codó, vivem minha mulher Graça com meu filho Leonardo, que está com oito anos.

Na fazenda de Imperatriz, vivem minha mulher Virgínia e as minhas filhas gêmeas Vanessa e Vanusa, que estão com seis anos.

Quando voltarmos do Japão, a nova casa da Praia do Araçaji deverá estar pronta e Keiko virá morar definitivamente no Maranhão com nosso filho Hiroshi, que está com quatro anos.

Todo final de ano, do natal até depois do reveillon, nos reunimos na casa da praia do Araçaji.

É um tempo de harmonia e descontração quando as crianças têm contato com os meio irmãos e madrastas e onde eu posso comprovar que o coração de homem tem a capacidade ilimitada para amar mulheres e filhos indiscriminadamente.

A reunião deste ano terá mais uma atração. Judite, minha filha com Marta, está grávida e o nascimento está previsto para depois do dia vinte de dezembro.

Eu estou pensando em comprar um Cessna da Embraer para dar de presente ao meu neto, afinal ele vai ter meu nome e qualquer dia desses estará pilotando por aí.