Então, tem coisa que não dá para conformar, não. Mas, eu dizia pra mim mesma: tem que conformar. Eu acho que eu parei de ficar me vigiando de tanto que eu alertava. Por exemplo: as pintas pretas nas mãos. Nas mãos, maneira de dizer, porque o corpo todo fica que nem casca de banana madura. A gente nem vê chegar. Um dia você repara. Aí! Você sabe que esse foi o primeiro medo que senti na vida? Medo, medo de verdade. Não é medinho não, bobo desses que dizem que a gente que é mulher sente. Quando percebi as pintas nos braços e nas mãos, minha nossa senhora! Que medo de ficar velha, Daquelas velhas de doer! É, porque, não sei se você já reparou, a velhice é muito feia! E dói, dói! A velhice é um monte de dor... Dói de lembrança, dói de saudade, dói de sonho morto, dói de tempo que não teve tempo e dói de preocupação.
Meu pai dizia que tem duas palavras que encurtam a vida: a míngua e a mágoa. Porque tem gente que pensa que a vida é curta. Não é não, a vida é larga. Larga demais da conta. Não dá pra vigiar tudo e nem dá pra fazer e andar tudo. Então a gente vai vivendo deixando as coisas de lado, deixando as coisas pra trás, querendo enxergar lá na frente e por causa disso a gente míngua: resseca aqui, baixa mais ali, cai aqui, falta lá. E a mágoa?Nem precisa de dizer,né?
Tem gente que não gosta de falar da velhice. Besteira! Falar de velhice é a mesma coisa que falar de arroz com feijão. Desses dois, todo mundo come e a outra, todo mundo vai experimentar um dia. Então é coisa de natureza mesmo. Mais dia, menos dia... É que nem morte.
O Martim sempre foi um homem muito arrostado. Não tinha medo de nadinha dessa vida. Encarava as coisas de frente mesmo. Era um homem de afeição contida e dura. Tanto comigo quanto com o nosso menino. Pras outras eu não sei, porque mulher nunca havera de perguntar isso pro marido. Naquele tempo não se tocava nesse assunto. Quando falo isso todo mundo arregala olho. Mas os homens de antigamente tinha era filho espalhado. Se fosse casado não podia fazer registro, né? Eu tinha comadre que nem saia na rua por causa do marido. Elas não diziam, mas a gente sabia. Então, o Martim era homem assim. Eu fazia a janta e esperava. Às vezes me apoiava na mesa e ficava ali de mão no queixo esperando. Apesar do tempo, ainda sinto cheiro de cebola e alho nas mãos. Depois eu cansava e, enquanto isso desculpe o termo, ele se esfregava lá com as outras. Chegava da rua, resmungava até a hora de dormir. Reclamava do cheiro do cachorro, do cheiro de comida, do cheiro do quarto. Ele devia de trazer nas narinas os perfumes lá das bandas que ele andava, aí chegava a casa, estranhava. Quieta eu estava, quieta eu ficava. Nesse tempo eu ainda era moça vistosa, sabe?
Mas quando eu conheci ele, já era assim, sisudo. Então veio o meu menino. Ele arranjou uma raparigazinha para ajudar e eu ficava era na lida com o Zequinha. Aí é que a vida enlargueceu de vez. O Zequinha era chegado a uma pneumonia e dava um trabalho que só. Era chá de alho, canforeira, lei com mel, durante a madrugada toda quando ele ficava mal. Mas depois que fez cinco anos, pronto. Aí vingou de vez. Depois não deu mais trabalho. Foi embora estudar e agora mora lá fora. Olha a vida enlarguecendo de novo. Foi o tempo que eu mais minguei. Meu coração de mãe ficou ressecadinhozinho. Mas eu sei que ele ficou bem.
Depois que o Zequinha foi eu mais o Martim foi se separando, separando. Até que ele foi dormir no outro quarto. Do outro quarto ele pediu a casinha que a gente tinha alugado e foi morar lá. Eu até pensei que ele queria morar com outra pessoa. Mas, não. Acho que ele não suportava a velhice de nós dois junto. Ficava horas e horas sentado no sol, olhando para o nada. Daqui da janela eu via. Na frente da casa tinha um banco de madeira.
Era ali que ele sentava para tomar sol. Quando dava a hora do almoço ele vinha. Tirava o chapéu, pendurava no chapeleiro e sentava, sem dar uma palavra. Comia no maior silêncio. Eu perguntava se ele estava bem, ele dizia que sim. Aí, eu fazia um café, que eu sabia que ele gostava de um cafezinho quente, ele tomava, levantava, dava até logo e voltava para casa. Uma vez por semana a menina ia lá, trocava a roupa de cama, e levava roupa limpa para ele. A roupa suja ele mesmo trazia na hora do almoço e janta. Eu ficava aqui mais a Cidinha, nos serviços da casa. Fazia meus doces pra mandar pro Zequinha, me distraia com meus bordados, meus tricôs. E ficava com dó dele lá sozinho. É aquilo que falei: tem coisa que a gente não se conforma, mas tem que conformar, senão não dá certo.
Você não precisava trazer convite pra mim não, sabe filha? E quando eu ia deixar de ir ao casório da filha da Comadre Zezinha? Eu fico feliz por vocês dois, viu? Seu noivo é um rapaz muito bom e muito bonito! Conheço ele, ele só não, conheço vocês dois desde pitititinho assim. Devia de agradecer, e fico aqui falando essas coisas bobas que já passaram... Deus vai ajudar que vocês encontrem a felicidade. Mas, casamento, filha, é assim mesmo: tem coisa que a gente não se conforma, mas tem que conformar. Você mais o outro lá cuidem disso, viu? Pra evitar mágoa. E evitar minguar, antes da hora...