MANDU

Quando eu era garoto, eu me lembro de ter me divertido muito no velho galamarte; é bem verdade que ele já estava em ruínas, minha mãe dizia que ele era do tempo do meu avô. Eu não gostava muito de sua estrutura, feito de madeira de sabiá continha muitos espinhos e além de girar em círculo, ele atuava também como uma gangorra levantando poeira por todos os lados. Os indivíduos que ficavam em cima, sentado nas extremidades frente para o anterior, raramente mantinham o equilíbrio. Mas era uma disputa de garoto daquela época para ver quem era mais homem. Os adultos também praticavam esse esporte, só que o período era mais longo, e os perdedores sempre se digladiavam com outros grupos no terreiro de capoeira, a sombra dos mulungus. Certo dia nós brincávamos no velho galamarte, Deassis caiu errado e quebrou o braço direito em duas partes, ele chorava como uma criança é claro, com a dor no braço e também porque seus pais já o haviam proibido de brincar naquela coisa arcaico, cultura trazido da África pelos escravos, o velho prometeu dar-lhes uma surra. “Jurou”, da próxima vez colocá-lo no tronco. Eu estava com o Deassis quando seu João me perguntou se realmente ele caiu do galamarte. Menti pro pai d’ele! Não seu João! Ele caiu do alto da goiabeira. Mesmo doente ele ficou cinco dias de castigo sem sair do quarto numa casinha feita de barro coberta com palhas; a casa possuía alguns cômodos e uma de suas janelas dava acesso para o açude do mirim, próximo da grota-do-cedro. Durante o período em que ele estava doente, eu sempre passava lá para visitá-lo e caçar na periferia, eu adorava o mato. Meu pai também foi um grande caçador, e por muitas vezes nos aventuramos muito desbravando matas e sertões.

O interessante de tudo isso, é que eu ainda me lembro desse tal tronco, esteio fincado no solo com correntes fixadas na base e na parte superior, as pessoas eram presas pelos tornozelos e punhos, depois, submetidas a chicoteadas. Meu avô era um homem baixo, tranqüilo, tinha olhos azuis e todos gostavam muito d’ele. Nunca colocou ninguém no tronco, e sempre respeitou quem estava sob sua guarda. Foi grande proprietário de terras, um latifundiário. E naquela época ele criava muitos negros que trabalhavam no canavial e na lavoura. Existia um sítio em cima da serra, curioso! Eu e meu primo Raul íamos até esse lugar chamado “Mandu”. Entrávamos nas ruínas onde um dia teria sido o que se chamavam de Senzalas.

Ainda existiam descendentes de escravos naquela região, moravam no topo das montanhas, viviam da agricultura e as pessoas que ali os visitavam, sempre eram bem recebidas. É tanto que o Deassis fazia parte dessa comunidade e eu estava sempre lá caçando passarinho com ele. Porém, os mais velhos não comentavam nada, e nem falavam do passado quando perguntávamos alguma coisa. Alguns revoltados mencionavam algo com ar de bravura e xingavam todos os brancos, principalmente o prefeito e o padre da cidade. Entretanto, eram castigados severamente pelos mais velhos do kilombo, e eu não entendia o porquê de tamanha punição. Colocados nesse tal tronco, apanhavam e choravam a noite toda. Certo dia eu fui questionar o assunto com minha mãe, ela simplesmente largou seus afazeres e rumou em direção ao trabalho do meu pai, ficava situado no centro da cidade, meu pai trabalhava com exportação e importação, era um micro-empresário, dono de uma pequena fábrica de descaroçar algodão na praça da Estação. Todavia, comprava peles de animais, oiticica, mamona e outros grãos para extração de azeite. Minha mãe falou com meu pai que eu estava freqüentando o kilombo. Aquele povo já foi escravo há muito tempo, disse minha mãe. Hoje eles freqüentam a cidade sempre que precisam comprar mantimentos. O que tem isso Lina? Murmurou meu pai! Por outro lado eu conheço muito bem o Preto Velho, é sem dúvida um homem humilde e bom. O que tem os meninos caçarem lá, afinal as terras são do avô d’eles, Ora! Quantas vezes o Chagas já foi lá! Eles são amigos. Alberto tu esqueceste que lá morreram muitos castigados pelo meu avô Dedé, isso foi há muitos anos Lina. Além do mais não é verdade que o Dedé os castigava. Muitos adoeciam e os recursos eram poucos. Os que morreram não queriam trabalhar e tinham sérios problemas de saúde. Eram desordeiros e fugitivos, então o Dedé colocava os Capitães-do-Mato no encalce deles, no intuito de capturá-los e traze-los para seu lugar de origem. As terras do Mandu são do teu pai mulher! Tem muito gado, ovelhas, caças e nunca esse povo abateu qualquer animal, sempre se comportaram muito bem, exceto a minoria. Não é à toa que o velho Esmeraldo os emprega e dá o que eles necessitam. Ao chegar em casa meu pai me perguntou, meu filho, como foi lá no kilombo velho? Ah! Foi bom pai. Eles me tratam muito bem, me dão comida, frutas, agente conversa bastante, e depois eu saio pra caçar com o Deassis. Armamos um monte de arapucas e algumas gangorras, pegamos muitos preás. O seu João me deu uma baladeira de câmara de ar de avião, disse que na hora que eu quisesse poderia voltar lá. Mandou um abraço pro senhor e disse pra não se preocupar.

Dona Maroca mulher de seu João manda perguntar se o senhor me deixa passar o fim de semana lá. Eu gostaria de assistir as festas tradicionais da terra de seus ancestrais, e olhar os mestres jogarem capoeira angola típica. Replicou meu velho! Isso eu vou pensar, agora traz teus cadernos que eu quero ver como você está na escola. O engraçado de tudo isso, é que naquela época eu cheguei a brigar com colegas da minha escola, porque eles não admitiam que eu tivesse amigos negros. Um absurdo, mas o importante é que eu vivenciei um pouco da história e até me diverti caçando com armas primitivas como: arco e flechas, baladeiras, besta e funda. Hoje, não existe mais ninguém morando lá, muitos morreram ao longo dos anos e os outros se evadiram com o passar dos tempos. Outrossim, a cultura e a tradição desapareceram. Porém, a casa da sede e outras ruínas, ainda existe.

fcemourao
Enviado por fcemourao em 14/09/2010
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