"Os Ipês"

Os imensos ipês floridos emolduravam perfeitamente a velha calçada de petit-pavé naquela ensolarada manhã de primavera.

Enfastiado, apesar do belo dia e do extraordinário espetáculo de cores proporcionado pelas árvores, ele caminhava com passos largos e um tanto apressados, enfiado em um caro terno azul marinho, vez ou outra parava para ajeitar a camisa que teimava em escapar fora da calça por causa da pressa excessiva.

Jovem advogado de sucesso fazia esse trajeto toda manhã em direção ao seu escritório que ficava a algumas quadras do confortável apartamento.

No caminho, incrustada no meio do quarteirão, erguia-se uma antiga construção, ainda com seus rococós e protuberâncias típicas da arquitetura de época.

Uma imponente escadaria dava para a porta principal não menos rebuscada do que o restante da obra.

As folhas da janela de cedro abriam-se diretamente para a rua, realçando o leve som que vinha do interior de uma das muitas salas da renomada escola de música da cidade.

Era um canto suave, acompanhado por um instrumento de cordas, que ao uníssono transformavam-se em uma delicada melodia.

Sempre sisudo e de mal com a vida, obrigava-se a passar diariamente pelo mesmo caminho e ouvir a “maldita cantoria”, como costumava chamar o som proveniente do interior da escola.

Apesar de jovem e belo não permitia divertir-se, vivia para o trabalho, enfurnado em sua sala, rodeado de processos, petições, entre outros documentos, sentia-se só e sem ânimo.

Aquele dia prometia ser cheio. Eram tantos os problemas para resolver que as horas voaram, quando olhou pela janela que dava para a praça, percebeu que já era noite, levantou-se num ímpeto e abriu a porta rapidamente no intuito de encontrar algum funcionário pelos corredores, mas nada, todos já haviam saído.

Consultou o relógio, passava das nove.

– Droga! Resmungou sozinho na sala despencando de cansaço sobre a cadeira. Esfregou o rosto com as mãos, livrou-se dos óculos que atirou em cima da mesa de madeira maciça e pôs-se a assoviar.

Era um som familiar que vez ou outra lhe ocupava a mente, e por mais estranho que parecesse, aquela música trazia-lhe uma certa calma. Fechou os olhos por um instante e ficou ali consigo mesmo.

Apagou as luzes do escritório e saiu ainda a assoviar pela rua escura.

* * *

Os grandes olhos castanhos abriram-se assustados, dormira mais do que de costume, mas, não se importou, afinal, pensou: – O escritório é meu, posso me dar ao luxo de chegar mais tarde uma vez na vida, e sorriu com uma ponta de culpa.

Caminhava com a mesma pressa habitual. Ao passar pela velha calçada da escola uma estranha ventania espalhou os papéis de sua mão, obrigado a parar para recolhê-los ouviu a mesma cantoria de outrora que desta vez não lhe pareceu tão irritante.

– Então vem daqui! Pensou baixinho. E ficou ali parado enquanto a música penetrava em seus ouvidos, desejou entrar pra ver de quem era à voz, mas, conteve-se, afinal, uma audiência esperava-o no fórum aquela manhã.

Recolheu o pé que já estava sobre o primeiro degrau da escada e saiu com as mãos enfiadas nos bolsos assoviando a canção.

* * *

– Ah! Droga! Hoje não! Praguejou enquanto consultava as horas no dispendioso relógio de pulso deixado sobre o criado.

– Hoje não podia estar atrasado! Sussurrou com voz rouca ao esfregar os olhos, ainda sonolento.

– Preciso voar senão não chego a tempo para a reunião. Isso estava marcado há dias! Resmungava sozinho enquanto a lâmina de barbear deslizava pela face jovem.

Ajeitou a gravata mais uma vez em frente ao espelho e saiu esbaforido. Aquela reunião significava o futuro do escritório para ele.

Apertou o passo, olhou para o relógio novamente. – Meu Deus! Não vai dar tempo, preciso correr! E disparou rua afora. Atravessou na frente dos carros que buzinaram impacientes.

Ela vinha caminhando devagar pela calçada da escola, usando um delicado vestido floral, segurava algumas partituras e o instrumento de cordas, estava completamente absorta a admirar a beleza das flores de ipê quando sentiu um esbarrão violento que a arremessou ao chão.

Ainda atordoada tentava entender o que havia acontecido.

– Ai meu Deus! O que eu fiz! Resmungava baixinho o jovem advogado ao observar a menina no chão e os papéis espalhados pela calçada. Pensou em ajudar, mas diante da hora avançada arrancou em disparada tomado de remorso.

Alguns transeuntes pararam para ajudar a menina que estava aos prantos.

A reunião transcorrera como esperado, um tremendo sucesso, mas, o corpo delicado da menina estendido no chão não lhe saía da mente, sentiu-se mal e o arrependimento esmagava-lhe o peito.

– Puxa! Devia ter parado para ajudar! Eu sou um monstro! Dizia para si mesmo a perambular pela sala vazia.

Não conseguira dormir aquela noite.

* * *

Levantou-se cedo e caminhou para o trabalho cabisbaixo, olhou para a antiga construção e tentou prestar atenção nos sons que vinham do seu interior, mas a canção... , aquela que lhe trazia calma, não ouvira. Entristeceu-se e pensou em entrar, mas, conteve-se mais uma vez.

Dias se passaram e a música simplesmente desapareceu. Só o que conseguia ouvir era o som de alguns instrumentos sendo afinados e o burburinho dos funcionários a conversar.

Preocupou-se e resolveu entrar na escola mesmo sem saber o que procurava ao certo.

Recebeu-lhe a faxineira que reclamou do piso molhado.

– Cuidado! Hoje não estamos abertos! De segunda é só faxina, e os professores ficam ensaiando, o que o senhor quer? Perguntou impaciente.

– Nada, nada, já estou indo... Virou-se, mas, não pôde conter a curiosidade e resolveu arriscar:

– Melhor..., na verdade, preciso de ajuda, será que você pode me dar uma informação? Eu pago!

– Guarde seu dinheiro, moço, eu não preciso dele, tenho meu trabalho, não quero esmola, o que o senhor quer? Perguntou a menina já um tanto irritada.

– Desculpe, não quis lhe ofender, é que preciso descobrir quem é uma pessoa!

– Por quê?

– Você é curiosa não?

– Bom..., quem precisa de ajuda não sou eu, e se você não quer me dizer, estou indo. E virou-se levando o balde e o esfregão.

– Não! Ai Droga! Olha, vou lhe explicar..., eu sou advogado e estou procurando uma professora que toca nesta sala é que fiquei de entregar alguns documentos para ela. Mentiu.

– Bom, eu não me lembro de ter visto você por aqui, mas já que está dizendo. Suspirou impaciente. – Eu ajudo vai.

– Na verdade, muitos professores dão aula nesta sala, eles revezam. Vou lhe mostrar cada um deles e talvez você a reconheça. Engraçado... , conversou com ela e não sabe nem o nome?

– Pra você ver, não é? O caso é que sou muito ocupado, desculpe.

– Hum, sei. Respondeu receosa. – Mas, vamos lá.

Mostrou-lhe todas as salas com seus respectivos professores.

– E então?

– Não. Respondeu balançando a cabeça negativamente. – Definitivamente ela não está aqui.

– E se ela for aluna? Pensou mas não disse.

– Tudo bem, obrigado por enquanto. Apertou sua mão encoberta pela luva de plástico e ela gemeu de dor.

– Que foi? O que eu fiz?

– Nada não moço, não foi você quem fez, foi um maluco que me atropelou semana passada!

Ele gelou.

– Como assim te atropelou?

– Veio correndo pela calçada, saiu de não sei onde e esbarrou em mim, nem tive tempo de ver quem era só sei que me machuquei toda! Mas o pior de tudo é que meu violão quebrou e agora não posso mais tocar... Resmungou com tristeza. Ele engoliu seco coberto de remorso.

– Mas, você não é faxineira? Perguntou confuso.

– Trabalho aqui pra pagar as aulas, elas são muito caras, minha vida é a música sabe e essa é a melhor escola do país, vim de longe pra estudar aqui, agora preciso dar um jeito porque sem meu violão não sei o que vou fazer e preciso ensaiar para o festival de música.

– Bom, mas, isso não é assunto seu não é? Um burguesinho metido feito você não vai se interessar pela vida da faxineira do colégio. Falou com despeito.

– Você é esquentadinha não? E bonita também. Sussurrou entre um sorriso maroto notando a beleza delicada da moça escondida debaixo do boné do uniforme.

– Não sou esquentadinha! Só não tenho tempo a perder com você, se me dá licença, preciso terminar esse corredor até a hora do almoço e bateu o esfregão com força no chão fazendo espirrar a água no sapato do rapaz que deu um pulo, tentando escapar da fúria da menina.

– Tá, já estou saindo! Disse descendo o último degrau da escada achando graça da situação.

Chegou em casa exausto, jogou o paletó sobre a confortável poltrona e folgou a gravata... Sentiu-se péssimo, tinha um nó na garganta.

Não conseguia esquecer a tristeza estampada no rosto angelical da menina e também o fato de que ele era culpado por tudo aquilo.

– Droga! Alisou o rosto com a mão enquanto andava de um lado para o outro pela casa.

– O que eu faço agora? Uma profusão de sentimentos tomava conta de seu corpo esbelto, sentia-se estranho, era um misto de pena, admiração e até um certo contentamento.

Ele sorriu maroto apoiado na bancada do banheiro a olhar-se no espelho. Foi quando teve uma ótima idéia.

– Já sei! E sorriu satisfeito! Batendo no mármore da pia.

* * *

– Hum... Não sabia que você tinha um admirador!?!

– Admirador? Tá doida? De onde você tirou isso? Respondeu a menina sem entender a pergunta maliciosa da amiga da faxina.

– Olha lá dentro da sala de música... , deixaram na portaria para você.

Ela abriu a porta com receio e pode ver no pedestal um lindo violão envolto com um esfuziante laçarote vermelho.

Os olhos brilharam e ela sorriu de contentamento.

– Puxa! É lindo! Disse tocando a madeira de leve.

– Mas, quem disse que isso é pra mim? Perguntou como que saindo dum transe.

– Ah, foi um moço que deixou...

– E como era esse moço? Ele disse meu nome? Você o viu?

– Ele estava bem vestido, usava um terno que parecia caro pra caramba! Respondeu a moça fazendo bico. Ele não disse o “seu” nome, mas, me deu sua descrição perfeita.

– Como assim?

– Ele disse: – Entregue para a loirinha esquentadinha.

Ela sorriu incrédula.

– Não pode ser ele, não pode ser, dizia baixinho enquanto lembrava-se da conversa que teve com o advogado.

Sorriu tristonha.

– Não posso aceitar isso amiga.

– Como não? Tá louca? Respondeu a amiga impaciente.

– A vida está te dando uma oportunidade! Você tem que agarrar!

– Tem um cartão preso aqui.

– Lê!

– Diz assim: “Esse é um presente para nós dois” P.S. O Burguesinho metido.

Ela sorriu com carinho ao lembrar-se de seu sorriso maroto e do rosto faceiro.

– Vou ficar com ele... respondeu decidida apertando o cartão contra o peito.

– Isso garota! Comemorou a amiga.

* * *

Aquela manhã de primavera parecia convidativa, o céu estava completamente azul e as flores dos ipês pareciam querer cair dos cachos de tão cheios que estavam. Uma brisa suave corria pelo quarteirão espalhando um delicado perfume.

Ela tocava com destreza sem perceber que era observada de longe pelo belo jovem recostado no batente da porta entreaberta. O sol iluminava-lhe o colo pálido e os cabelos loiros realçavam o rosto delicado. Ele olhava a cena maravilhado enquanto a voz da menina fazia cócegas em seus ouvidos.

Aplaudiu de leve e ela assustou levantando os olhos na direção da porta.

– É você? Faz tempo que está aí?

– O suficiente pra te ouvir... Essa música é sua?

– Sim, eu fiz para o festival, chama-se “Doce ilusão”.

– É linda!

– Obrigada, mas... Ele interrompeu:

– Desculpe aparecer assim e te assustar é que a porta estava entreaberta e não quis atrapalhar seu ensaio. Pelo que vejo está fazendo bom uso do “nosso” presente.

– Foi bom você ter vindo. E caminhou na direção do menino.

– Preciso lhe devolver isso e apontou o violão.

– Não posso aceitar e não “quero” aceitar!

– Você é muito orgulhosa e esquentadinha! Disse sorrindo.

– Ela corou, mas não baixou a guarda.

– Você tem que aceitar! Afinal, não fiz mais do que minha obrigação.

– Como assim? Sua obrigação?

– Fui eu que quebrei o outro.

– Como assim? Quer parar com a brincadeira? E pare de rir, não tem graça nenhuma!

Ele gargalhava divertindo-se com a petulância da menina que lhe conferia um charme todo especial.

– Recompôs-se e respondeu:

– Se você aceitar tomar um sorvete comigo eu lhe explico.

– Perscrutou-o com desconfiança.

– Vem... E estendeu a mão firme para ela.

– Ela corou, mas não conseguiu conter-se e entregou-lhe a delicada mão que ele segurou com força enquanto desciam a imponente escadaria da velha escola de música.

– Olha! Uma flor de Ipê... espere! Pediu ele enquanto ajeitava a flor no cabelo da menina.

- Perfeito! Disse ele.

Os dois sorriram enquanto caminhavam pela velha calçada entre os Ipês...

P.S. A música “Doce Ilusão”citada neste conto pode ser ouvida nesta página através do link abaixo:

http://www.recantodasletras.com.br/audios/cancoes/34305

Karina Volpi
Enviado por Karina Volpi em 14/09/2010
Código do texto: T2497029
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.