COMPENSAÇÕES
"Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão
Olheio-o com quem olha
Grãos de areia ou uma folha"
Olheio-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;
Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida"
("Dobre", Fernando Pessoa,1913)
Não é então que aquele garoto, que tanto mijei no seu ouvido, é agora mestre doutor, chefe de departamento?
Encontrei-o meio por acaso. Indaguei o seu nome na administração e eis que ele, braços abertos, em espontânea alegria, recebe-me e leva-me, não!, melhor dizer obriga-me!, a hospedar-se em sua casa. Muitos anos, muitos anos, separados, mas guardamos nas lembranças do dia-a-dia a união de irmãos da mesma jornada, criados no mesmo chão e com o mesmo alimento.
Passamos a noite recordando.
Éramos filhos de agricultores pobres, morávamos na zona rural e estudávamos em escola isolada onde, a professora Alda, inexquecível e aplicadíssima, lutava para administrar uma classe com alunos de várias idades, condições e níveis de escolaridade.
Nas horas de folga, que eram muitas, celebrávamos a vida como passarinhos no jardim do éden.
Tinhamos preferência pelo rio, em um logal por onde transitava o gado. Eram águas espraiadas, verdadeiro lago com diferentes profundidades, ladeadas por margem de areia branca. A foz era represada por obstáculo natural, formado de pedras, taboas e igarapés.
Nosso grupo era numeroso e, nesta piscina de águas cristalinas, passavamos os dias, os meses e os anos, nadando nus.
Com uma peneira pegávamos lambaris, pequenos e tão prateados que as escamas reluziam ao sol com tal intensidade que os chamávamos de diamantes imperiais.
Tinham, por finalidade e destino, nos ensinar a nadar.
Todo menino do mato sabe que lambaris ensinam a boiar e a nadar, desde que engolido vivo no momento em que se salta na água.
Assim faziamos.
Com eles ainda saltitando no estomago, pulávamos na água e batíamos braços e pernas desordenadamente.
Um bom lambari ensina rápido.
Um mau lambari pode causar sérios problemas.
Em geral, eram maus lambaris.
Nesses casos, a turma nos resgatava e nos conduzia à margem, onde ficavamos pulando numa perna só para tirar a água do ouvido.
Saltitar às vezes funcionava e às vezes não.
Quando nao funcionava deitávamos no chão, de lado, orelha virada para cima e ordenávamos:
___ Mija aqui !
Quem estivesse disponível mijava, mirando o buraquinho do centro.
Isto porque, todo menino do mato sabe que urina quente é tiro e queda para tirar a água fria do ouvido.
Assim, mijavamos muito um no outro.
Quando cansávamos do estafante aprendizado, corriamos para o mato a procura de frutas nativas: jambo de perfume adocicado, goiaba recheada de bicho, macaúba para esfiapar nos dentes, ananás para azedar a boca, abil para selar os lábios, amoras para escurecer a língua e jatobás, cuja poeira amarela e doce esfarinhavamos na palma da mão e soprávamos um na boca do outro.
Um dia, ah! triste dia!, debandamos todos para o mato.
Quase todos !
Depois, saciados, voltamos ao lago.
De longe vimos o corpo, boiando.
Entramos n'água até os ombros e o puxamos para a margem.
Mas ele nao saltitou e ninguém mijou no seu ouvido.
Ficamos em torno assustados.
Mitio, um japonezinho com sindrome de Down, que sempre nos acompanhava nos folguedos, ficara para trás.
Só, com a peneira, pegara um mau lambari, que falhara no cumprimento da sua obrigação.
Todos nós ajudamos a carregá-lo.
Agarrados nos seus braços, suas pernas, seu tronco, carregamos o pequeno cadáver por centenas de metros.
Corpo mole, pesado, pesado.
Rosto lívido, soltando água pela boca e pelas narinas.
Deixamos o corpo na frente da casa, gritamos e corremos.
Depois ficamos ao longe, em silêncio, unidos como novilhos, assistindo o desespero da família.
Coraçãozinhos, apertado, apertado, pulsando nas palmas das mãos.
Éramos responsáveis por ele e falhamos.
Mas, isto é história triste, e naquela noite, na caso do meu amigo, falamos somente de coisas alegres.
Reminiscênncias, regadas ao bom vinho chileno.
Tinhamos pouco, mas éramos felizes.
No dia seguinte, ao despedir-se de mim, fez a pergunta:
___ E a família do Mitio, como está?
___ Bem, bem - respondi.
E, ocorreu-me acrescentar:
___ Um dos seus sobrinho pediu-me estágio. Está comigo, gosto muito dele.
Daí que seu rosto iluminou, sua mão enlaçou meu pescoço, seu corpo aproximou-se de mim e seus lábios colaram-se nos meus ouvidos, como um beijo carinhoso, para dizer emotivo:
___ Bom, bom..., cuide bem dele! Na vida, as coisas compensam-se.
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JATOBÁ (Jatobá-da-mata ou Jatobá-do-campo; hymenaea stilbocarpa), árvore que pode atingir até 20 metros de altura (quase um prédio de 7 andares); o fruto é roliço e tem aproximadamente 15 cm de comprimento, por 8 cm de circunferência, de cor avermelhado-escuro brilhoso, casca dura e oco por dentro. É colhido no chão por queda natural ou derrubado à força de estilingue ou tiro de espingarda. Quebrado libera um pó dourado e doce (farináceo) que recobre a semente e que faz a regalia da molecada do mato. Pelo que sei, é a única fruta cuja polpa comestível é naturalmente em pó.
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