O Borges e o lugar.

O Borges tinha que sair dali o quanto antes. O lugar o estava deixando maluco. Lugar quieto, tranqüilo, muito quieto e tranqüilo. Mas, de tão quieto e tranqüilo, só se via quietude e tranqüilidade nele, no lugar. Não nele, no Borges. Culpa dele, do Borges, pois o lugar não tem culpa. Lugares não saem de onde estão, por isso são lugares, ficam ali, no lugar. Quem mandou o Borges sair de onde estava? Quem? Quem? Quem mandou ele deixar o seu lugar e procurar aquele outro, quieto e tranqüilo. Tão quieto e tranqüilo, que só se via quietude e tranquilidade nele, no lugar. Não nele, no Borges.

Bobagem dele, do Borges. Tremenda bobagem dele ficar culpando o lugar. Por que não sai dali e pronto, deixando os dois, o lugar e a maluquice? Ah! Ok, sendo assim, está certo. Se ele está sem dinheiro, tudo bem. Subempregado? Também? Poxa! Não é à toa que ele ainda não saiu dali, daquele lugar. Lugar emprestado e morando de graça, vai sair por que? Só se for orgulhoso, maluco, teimoso, enfim, burro. Nossa! Toquei no ponto chave, o nervo da questão: ele não é burro, mas sofre de orgulho e teimosia, e o lugar o está deixando maluco. Isso não vai dar coisa boa. Tomara não faça nenhuma loucura, trocando o certo pelo duvidoso. Mas o problema é que, quando ele vê desconforto espiritual no certo, prefere a esperança do duvidoso. E, sendo assim, muitas vezes se dá mal, pois o duvidoso é...ora, é duvidoso. Ninguém garante o duvidoso, senão a dúvida. Agora, quanto ao seu orgulho e teimosia, sua infância garante. Desde lá é assim. Nem sempre o certo lhe era certo e o duvidoso, embora arriscado, embutia a possibilidade do certo. E ele metia a cara nisso, no duvidoso, e, às vezes, se dava bem: achava o certo. Mas ele não vai sair dali, daquele lugar. Seria um meio suicídio, coisa muito arriscada. Que droga! Taí um outro problema: quem encara o duvidoso é, também, um pouco suicida. Nossa! Estou preocupado com o Borges. Tomara não faça nenhuma loucura, trocando de novo o certo pelo duvidoso.

O certo? Bem, o certo é o lugar e com ele, o Borges, ali, no lugar. E como é o lugar? Bem, é frio, chuvoso e sombreado e tem um cachorro que quase o pegou, não faz muito tempo. O bicho, grande e branco, arreganhou um monte de dentes para ele, como se dissesse que aquele lugar já tinha dono e que ele, o Borges, chegou depois. Ele que ficasse na dele. Ele, o Borges, é claro, pois o cachorro já estava na sua. Tanto na sua dele, do cachorro, como agora, na sua dele, do Borges. Ele que se cuidasse. Ele, o Borges, pois o cachorro mostrou os dentes e, portanto, já estava se cuidando.

O lugar é verde, muito verde. Possui uma boa variedade de plantas, mas quase nenhuma de pessoas. Há cerca de quatro meses, ele tentou conversar com um mamoeiro, mas a planta não lhe deu atenção. Prosseguiu tentando mais alguns dias, quando um mamão maduro caiu lá de cima, bem perto do seu pé. Considerou aquilo uma agressão e nunca mais voltou a falar com a maldita árvore. Mais tarde tentou com as azaléias e as tumbérgias da cerca, pois pareciam mais inofensivas. Inofensivas elas eram mesmo, mas só isso, porque retorno mesmo que é bom, não deram nenhum. Estou preocupado com o Borges. Esse lugar é muito quieto e tranqüilo. Tem muitas plantas, mas nenhuma gosta de conversar. Vai que ele, de novo, troque o certo pelo duvidoso. Não iria ser bom. Melhor um certo silencioso, que um duvidoso daqueles, cheio de dúvidas. Deprimido? Não, não acredito. Inquieto e frustrado, talvez, mas deprimido não. Não faz seu estilo. Ele se adapta. Só precisa de um tempo. Ele já está quase fazendo a cabeça do cachorro, aquele grande e branco. Um tempo, ele só precisa de um tempo.

Encontrou uma caranguejeira preta e peluda, bem na porta da sala. Foi paixão à primeira vista. Pegou-a com muito carinho. Disse que vai criar. Venenosa? Não sei. Se for, ele ainda não sabe, pois não é que a aranha gosta dele. Ainda não o ferrou, portanto, deve gostar. Conversa com ela também, mas talvez aranha e planta tenham o mesmo ancestral, porque o artrópode também não dá retorno. Gosta de vê-la mesmo assim e, nisso, parece estar sendo correspondido. Virou uma brincadeira, ficam olhando um para o outro durante algum tempo, até que um se mexa. Piscar? Não, aranha não pisca. Assim a brincadeira não ia dar certo. Mexa, eu disse mexa. É olho no olho. Ele com dois e ela com oito. O primeiro que se mexer perde. A aranha está perdendo e de lavada. Isso porque o Borges está muito determinado. Vem usando essa brincadeira com propósitos didáticos: quer ficar tão quieto e tranqüilo como o lugar. Mesmo porque ele, o lugar, não tem culpa, mas o Borges, sim.

O tempo acabou melhorando. Parou de chover. Não é de hoje que vem fazendo um sol lascado. Ele pensou num roçado, três meses atrás, na parte de trás do terreno. Foi pensar e começar a fazer. O Borges é assim. Assim como? Ora, assim de pensar e fazer, quase ao mesmo tempo. Às vezes, ele pensa quando faz, outras ele faz pensando. É como dizem, impulsivo. Já o peguei fingindo que pensava, só para começar logo a fazer. Pois assim foi, três dias e a roça estava feita. Plantou de tudo nela. Faltava só germinar. E assim que germinou, ele foi só atenção. Um broto aqui, outro acolá, e lá ia o Borges verificar. Conversou com elas também. E daí se não respondessem. Importante mesmo era mostrar simpatia, estabelecer contato. Vai que uma responde. A parte dele ele fazia. E a parte delas? Ora, o Borges tinha fé que elas fariam. Se não fizessem, a culpa não era delas, mas do Borges, que não soube fazer. Isso porque, depois de perdoar o lugar, muito quieto e tranqüilo, e o mamoeiro, muito agressivo, resolveu ficar em paz com tudo e com todos, fosse o que fosse: bicho, planta, pedra e tudo mais que lá estivesse. Mas não deu nem dois meses e a correspondência parecia ter chegado: brotos, muitos brotos, na roça conversada. Como assim conversada? Bem, de tanto falar com aquelas plantas e já com tanta intimidade estabelecida, ele ficou com dó e se propôs a não comê-las. Cruz, credo! Ele não era cruel a esse ponto. E se toda aquela verdura de folha e vigor de exuberância, já não fosse às tais respostas que ele tanto esperava. Deviam ser e, se não fossem, passariam a ser, pois seu ego brilhava com todo aquele provável diálogo. Sendo assim, fez outra roça menor, só para comer. Roça de comer e roça de conversar. Cuidava bem das duas, mas quanto à primeira, adubava lá e aguava acolá, sempre de costas, pois não tinha coragem de encarar aqueles pobres vegetais de frente, já que iam fazer parte do seu prato. A cumplicidade que vinha se estabelecendo entre ele e essa natureza circundante somava a cada dia um ponto positivo. Principalmente depois que um esquilo veio comer na sua mão, naquela sexta-feira de maio, e um beija-flor beijou várias vezes uma flor ao lado da cadeira em que estava sentado, na varanda, naquela tarde de abril. Isso sem contar as suas gratificantes experiências com a Filomena e o Seixas, nomes que deu a uma cobra e um sapo, que viviam cruzando seu caminho. Cuidava deles no inverno, pois eram animais de sangue frio, os pobres coitados. E foi assim que eu deixei de me preocupar com o Borges, que não sai dali, daquele lugar, quieto e tranqüilo. Tão quieto e tranqüilo como ele, o Borges, que só vê quietude e tranqüilidade neles, no próprio Borges e no lugar.

Dassault Breguet
Enviado por Dassault Breguet em 13/09/2010
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