Lila

Eiras Garcia, lá no Bonfiglioli. É uma rua sinuosa que desemboca na Raposo Tavares.

Ique vinha com seu carro, quando ela passou como um foguete pela frente, bem rente ao pára-choque. Foi por pouco, muito pouco. Sem ouvir barulho de pancada, gemido de cachorro ou qualquer outro indício de atropelamento, parou devagar, no meio fio à direita, olhando pelo retrovisor. Tentou achar o bicho Achou, lá estava ele encostado no muro do comércio local. Era puro terror, coisa de animal que vê a morte de perto. Olhava para lá, para cá, para cima, para baixo, frente e verso. Era o retrato dela chegando, a única dúvida era o lado, o ângulo pelo qual a maldita morte viria. Era uma cadela e o Ique ainda não sabia. Não sabia por que sua história com ela mal começava. Eu sei por que a estou contando e, portanto, tenho que saber. Não sou nenhum sabichão. O fato de ser fêmea era um desses detalhes que eu soube depois, bem depois, quando parte do muito que ia acontecer, já havia acontecido. Mas essa parte já acontecida acumulava mistérios suficientes para que nenhum detalhe fosse dispensado, inclusive, o de ser uma fêmea. Tudo, absolutamente tudo, tinha que ser levado em conta. Afinal, como já ouvi por aí, fêmeas são mais sensíveis que machos. Acho até que é uma regra geral. Se não for, tudo bem, pois são os fatos que importam, são eles que nos aguçam a atenção com os detalhes.

Ique foi se aproximando devagar, movido por pura piedade. Evitou movimentos bruscos, pois o animal tinha o pânico estampado na face. Queria pegá-lo, mas com jeito. Um movimento errado e, com certeza, fugiria. Quando distava dele coisa de uns três metros, o inusitado se deu: a cadela o viu e saiu correndo como uma louca, não dele, mas para ele. Atirou-se no seu colo como todo cão criado faria com seu dono de longa data. Henrique, ou Ique, caso prefiram, ficou desacorçoado, enquanto tinha seu rosto radicalmente lambido, tal qual um sorvete. O que exatamente aquela cadela viu nele, a ponto de se entregar dessa forma: incondicional? O que for que ela tenha visto encheu Henrique de orgulho, pois até que se prove o contrário, ele era um bom sujeito, atestado ali, ao vivo e a cores, pela reação do animal. Digo isso porque todos já ouviram falar sobre cães perceberem facilmente a bondade das pessoas. E bom ele é mesmo, sempre foi. Vários foram os momentos em que teve seu altruísmo testado. Porém, o que mais me toca é o daquela garota, Shirley. A menina que fazia o tipo muito dada. Encheu a vida do marido com tanta vergonha, que o fez resolver meter uma bala na cabeça. A dúvida era qual, qual cabeça: a dele ou a dela. Decidiu-se por ambas. A dela primeiro, pois era promíscua e ingrata, e a dele depois, já que não fazia nenhum sentido sem a primeira. Saiu mais cedo do trabalho, com arma escondida no corpo, e se pos a caminho de casa. Flagrou a menina cheia de amor, dando para um sujeito que ele nunca viu antes. Sacou a arma com aparente frieza e sentou numa cadeira, bem ao lado da cama, deixando que o estranho fugisse apavorado. Resistiu como pode a todos os apelos suplicantes de Shirley, que se encolhia como um feto, entre lençol e travesseiro. Com arma em punho, mirada na cabeça da esposa, já ia atirando, quando um homem entra no quarto. Era o estranho, que tinha voltado. Pondo-se na frente da arma, jurou de pés juntos que não sabia que ela era comprometida, como também, mesmo gostando dela, tinha deixado de gostar, pois perdeu a confiança. E que isso que ela havia feito, trair os dois, tanto o do lado de lá como o de cá da arma, não merecia terminar daquele jeito: com uma arma. Prometeu nunca mais se aproximar daquela mulher e que ele, o marido, também devia fazer o mesmo. Disse ter sido informado que a casa era do irmão dela e que nunca mais voltaria àquele lugar. Que ele pensasse bem e não se deixasse levar pela queimação do momento. Que cuidasse da própria vida e deixasse a dela com ela. Sua convicção acabou conseguindo tirar a arma da mão do sujeito e, mais que depressa, expôs o tambor, recolhendo as balas. Despediu-se e levou-as consigo. Já na rua e com as balas na mão, olhou-as, eram seis. Pensou no enorme risco que havia assumido. Foi só aí, então, que uma forte tremedeira começou em suas pernas, obrigando-o a sentar na sarjeta, bem ao lado de um bueiro. Jogou as balas nele, uma por uma, pois percebeu que se fizesse isso de modo pausado, a calma ia voltando, no mesmo ritmo. Para o marido ele era um estranho, mas para nós, eu e vocês, ele é o Henrique, um bom sujeito. Mesmo que muitos não reconheçam, ao menos aquela cadela não precisou de provas. Ique a segurou com firmeza e levou-a para o carro. Ele já estava pensando mesmo em ter um cão, agora já tinha.

Entrou em seu apartamento com mais confiança, pois carregava uma novidade debaixo dos braços. Morando sozinho e com a cabeça cheia de problemas, aquele filhote seria útil. O distrairia um pouco. Sua mente, talvez, parasse de se debater consigo mesma e finalmente exorcizasse aquele passado recente e danoso, uma forma de câncer que não atacava suas células, mas comia pouco a pouco a razão de ser das mesmas. Ele temia por uma metástase. Por isso mesmo vinha tentando um outro alguém. Shirley foi um exemplo disso. Pena a garota ser falsa, mas isso foi bom: mostrou-lhe que ainda não havia se imunizado desse mal e, portanto, não aprendeu com sua ex.

Eu, que estou contando a história, poderia rotular Henrique como um desses ingênuos incuráveis, mas não o farei, pois estaria sendo tremendamente injusto. Incurável ele era mesmo, mas em outro sentido. A ingenuidade que os leigos lhe atribuíam, essa sim, era injusta. Caso eu fizesse o mesmo, agiria como um desses leigos, idiotas de plantão, que passam a vida julgando, pois se pelam de medo de olhar para si mesmos. Não posso me dar a esse luxo: o de ser leigo. Tenho que ficar atento às entrelinhas desse rapaz, não só por respeito a ele, como também ao leitor que me venha a dar crédito. Sendo assim, afirmo categoricamente que Ique não fazia o tipo ingênuo tradicional que é vítima de males que não compreende. Ele sabia muito bem onde estava entrando, quando entrava. Fazia uma boa idéia do que poderia estar escondido atrás de cada porta, mas não deixava de abri-la, se houvesse uma chance, mínima que fosse, de achar aquilo que procurava. Às vezes, é claro, entrava em algumas enrascadas, mas quem não entra. A questão toda, a da sua aparente ingenuidade, gira em torno de apostar em, investir em, ter esperança de e torcer por. Quando a situação o desiludia nesses quatro pontos, aí sim, ele a abandonava. E se alguém lhe acusasse de não aprender com a vida, repetindo erros, ele se defendia alegando que situações semelhantes são semelhantes, não iguais. Pequenos detalhes fazem toda a diferença. Ingênuo, portanto, ele não era, sabia muito bem dos riscos que corria. Incurável sim, pois prosseguia indefinidamente apostando, investindo e torcendo.

Forrou uma dessas cesta de café da manhã encomendado com uma toalha velha de banho do tipo felpuda. Botou o filhote dentro, que coube com folga, e ajeitou o conjunto todo ao lado de sua cama. Bem próximo, no vértice da lateral do armário com a parede, estendeu algumas folhas de jornal. Ali seria o banheiro do novo morador. Nem bem o fez, e lá foi o bicho inaugurá-lo. Era uma fêmea, sem dúvida. Subitamente, parou de urinar, saiu correndo pela porta do quarto, passou o corredor e estancou na sala, latindo para o nada, na direção da samambaia ao lado da televisão. Ique imaginou algum bicho escondido atrás da planta e foi lá verificar. Não havia nada, mas a cadela não parava de latir, mantendo os olhos fixos naquela área. Voltou até onde o cachorro estava e, deitando-se ao seu lado, quase encostou o queixo no carpete, repetindo o mesmo ângulo de visão do animal, que não parava de latir. Continuou não vendo nada além do normal. De repente a cadela silencia, mas insiste mais alguns segundos no olhar. Só aí relaxa e, com o rosto de seu novo dono logo ao lado, enche-lhe de lambidas. Levou o filhote até a sexta, talvez se aquietasse e dormisse. Quanto a ele, faria o mesmo, já era tarde. No entanto, noctívago que é, ficou pensando a respeito daquilo e foi até a sala com a máquina digital para tirar uma foto, simulando o mesmo ângulo de visão do cachorro. Na cama e com a luz apagada, ficou olhando a imagem por algum tempo e lembrou daquela garota casada, pois tanto num caso como no outro, não viu nada de errado. De tanto que se vigiava, costumava ser bom em ver essas coisas: as erradas. De uns tempos para cá, detalhou inúmeras vezes seu passado recente, tentando entender o porquê daquilo tudo, o ponto exato do seu erro. Nunca passou pela sua cabeça ser abandonado por ela, principalmente daquela forma: convicta, segura e sem qualquer possibilidade de retorno. Amigos e parentes tentaram lhe convencer que amor um dia acaba, mas não o dele. Explicações banais assim não se encaixavam no seu caso. Tinha que haver outra explicação, mas ele não a via. Superestimando a sensibilidade da cadela, resolveu guardar aquela imagem na máquina. Passou-a para o computador. Usa-la-ia como um brinquedo do tipo jogo dos sete erros. Pesquisaria algo de diferente nela, pois um cão não sai correndo do quarto e vai até a sala daquele modo, se não tiver uma boa motivação. Descobriria qual, dando-se assim melhor nas questões caninas que nas humanas.

O começo de semana se aproximava e o trabalho também. Pensou em deixar a cadela com alguém, algum vizinho, talvez. Mas qual? Pouco falava com eles. Sequer sabiam o seu nome e ele o deles. Melhor seria arrumar um canto para ela por ali mesmo. Deixaria comida, água suficiente e pronto. Lembrou daqueles filmes em que o personagem, morando sozinho, volta para casa e encontra seu animal doméstico sempre alegre em recebê-lo. Tentaria esse método: o holliwoodiano.

Encontrou sua mesa quase vazia, naquela manhã de segunda-feira. Comentou com os colegas sobre a estranha falta de movimento nas papeladas da semana, procurando se dar conta de alguma novidade que justificasse a falta da costumeira pilha de processos que o aguardava todas as segundas. Disseram-lhe que vários tinham sido suspensos até segunda ordem, pois uma auditoria estava em andamento. Passariam um pente fino em tudo, com atenção a detalhes suspeitos de corrupção. Chegou a ver graça naquilo, pois não era só ele que estava atento a detalhes. Sendo assim, encheu o vazio de seu dia com o jogo dos sete erros, pondo aquela tal imagem também no seu computador de trabalho. Seria bom ter mais essa alternativa para o ócio. Foi até a garrafa térmica, pegou um café e prosseguiu suas buscas na telinha da máquina. Uma televisão desligada, ladeada por uma samambaia de grande porte, a braçadeira e parte do assento de um sofá velho, metade de um quadro na parede da esquerda, um móvel com o aparelho de som à direita e a varanda com sua porta de correr ao fundo, onde se via parte da fiação dos postes de luz da rua. O que havia de errado naquilo? Pensou ter ouvido o seu nome e de fato o chamavam. Era o Pereira, seu chefe, quis lhe avisar sobre a tal da auditoria e como o departamento iria proceder em relação a isso. Foi à sua sala e ficaram lá fechados, durante algum tempo, para discutir a questão. Elizabeth bateu na porta, querendo saber se não iam almoçar. Queria ir com eles, no quilo ou no pf, opções locais. Preferiram o quilo e se puseram a caminho. Pereira e Elizabeth eram casados, mas ninguém diria, dada a discrição que mantinham em ambiente de trabalho. Ele, o chefe, e ela, a subordinada, como Ique e tantos outros. Tratava-os como iguais e gostavam dele por isso, mas não só por isso.

No almoço, Beth comentou que traria baralho no dia seguinte, já que passariam a semana à toa, seguindo ordens superiores. Mas jogaria só com o marido, disse brincando, pois ele, o Henrique, já tinha distração suficiente no seu computador, pois ficou grudado nele a manhã toda. Rindo, Ique inteirou os dois da situação inusitada com a cadela. Ambos ficaram curiosos e o Pereira sugeriu a passagem da imagem para preto e branco, pois cães não enxergam cores. Ique não tinha lembrado desse detalhe e achou interessante a idéia. Fizeram isso, assim que voltaram ao departamento. Tiraram três cópias. Cada um pegou a sua e se fechou em sua respectiva sala. Afinal, em situações assim, esquisitas, privacidade é fundamental. Nem todo mundo iria entender três marmanjos, olhando de modo obsessivo, para uma foto em preto e branco de uma samambaia com uma televisão. Terminou o expediente e nenhum dos três viu nada estranho ou digno de algum comentário. Pena, pois visivelmente gostaram da brincadeira. Um comentário qualquer daria continuidade a ela, o que era bem melhor que jogar cartas. Fizeram Ique prometer que tiraria mais algumas fotos, variando levemente apenas a altura e os ângulos à direita e à esquerda, garantindo assim atividade para o dia seguinte. Ele concordou e, assim, o jogo dos sete erros ganhou dois novos adeptos.

Resolveu parar num pet-shop antes de voltar para casa. Precisava de ração adequada para filhotes, algumas dessas imitações de ossos para morder e, por que não, uns brinquedinhos para sua nova companheira de quarto. Chegou em seu apartamento bem melhor que das últimas vezes. Ontem com uma novidade debaixo do braço e hoje com uma expectativa sobre o bem estar dessa novidade. Sentiu-se bem por ter motivos para voltar lá. Já não era mais apenas o lugar onde dormia. A cadela repetiu a mesma cena anterior, assim que o viu: correu até ele em disparada e lambeu-lhe o rosto, como um sorvete. Havia papel higiênico em quase todo o apartamento, pois o rolo estava quase cheio. O edredom da cama havia sido puxado, trazendo mais algumas coisas com ele: abajur, radio-relógio etc. O livro do criado mudo, “Leite Derramado”, tinha o ombro todo mastigado. Ela não rasgou o edredom, não quebrou o abajur, nem o relógio. Quanto ao livro, em frangalhos, não ficaria bem numa estante, mas ainda podia ser lido. Olhou o armário debaixo da pia do banheiro e viu, aliviado, mais dois rolos de papel higiênico. Pronto, depois de contabilizar os danos, deu de ombros e iniciou a arrumação. O passo seguinte seria tomar um banho, esquentar alguma coisa para comer e alimentar o animal. Faria o seu tradicional cafezinho noturno e o tomaria vendo o noticiário da tv. A novidade era a presença daquela criatura, à sua esquerda, compartilhando o sofá. Depois do noticiário, tiraria as fotos prometidas e deixaria que o sono viesse. Esse era o seu plano, mas a cadela com sua excentricidade pulou no chão e iniciou seus latidos. Mirava a área e ele, a área e ele, sempre latindo, como um típico cão de caça. Ele quase ouvia: é ali, é ali, faça alguma coisa. Mas fazer o quê? –pensou. Começou a tocar com a mão em cada objeto em frente ao olhar da cachorra, observando sua reação. Tocou em tudo, uma coisa de cada vez, e não mudava o toque, senão depois de algum tempo, para sentir melhor a resposta do animal. Um dos toques a aquietava. Testou duas vezes o fato, pousando a mão nos outros objetos que provocavam os seus latidos, para voltar de novo àquele que a silenciava e não houve dúvida: o mistério todo estava ali, na samambaia.

O DECET é um departamento que destina verbas públicas a projetos científicos e tecnológicos que tenham, claro, alguma conotação social. Henrique cuidava dos referentes à área de biotecnologia, enquanto Beth, Mário, Carla e Sílvio faziam o mesmo pela educação, engenharia, química e física, respectivamente. Aquela semana seria ociosa a todos eles. Não é de estranhar, portanto, o fato de estarem amontoados em cima da mesa do chefe, olhando aquela foto em preto em branco em suas mãos, quando Henrique chegou. Pereira se desculpou com ele, pois por mais que olhasse nada via. Precisou mostrar aos outros. Ique comentou com eles sobre a sua noite anterior, com todos os detalhes. Disse ter tirado várias fotos da planta, não só alterando os ângulos, como também a posição, pois a cadela a havia mudado nessa última vez: aproximou-se bem mais da área. Procurou ressaltar uma outra grande diferença entre a noite passada e a anterior, que era a determinação do animal, pois olhou para ele e a área várias vezes, enquanto que na primeira noite apenas focou a área. Desnecessário dizer que tais comentários excitaram a todos e, em bloco, foram tirar cópias em preto e branco das novas imagens. Pelo visto, durante uma semana, o departamento mudaria suas análises da área social para a canina e o jogo dos sete erros ganharia mais três adeptos.

Depois das observações e pesquisas da manhã, regadas por chás e cafezinhos, resolveram almoçar todos juntos, dessa vez no pf, só para variar. Sequer prestaram muita atenção no que comiam, mas sim no assunto. Carla quis aproveitar o momento para a escolha de um nome para a cadela, pois, rindo, disse que o animal já era quase público. Cortaram pequenos pedaços de papel, escrevendo neles as suas opções. Sorteio feito e nome dado: ela se chamaria Lila. Carla, a dona do nome, deu um pulinho de satisfação. Mário sugeriu um almoço na casa do Ique, no próximo sábado. Sílvio o acompanhou na sugestão, queria ver o cão. Pereira e Beth disseram poder ir, pois não tinham compromissos e Carla, depois de consultar uma dessas cadernetas de anotações, também iria. Discutiram a questão seguinte: cada um levaria algo para comer ou fariam uma arrecadação para que Ique o comprasse? Sem arrecadação, o prato seria macarrão caseiro, sugestão do anfitrião e boa desculpa para ele usar aquela velha máquina, encostada há tempos. Beth traria o molho. Mas qual? Bolonhesa foi o mais votado.

Olhando de novo algumas das fotos, na tarde daquele mesmo dia, Henrique pensou ter visto algo dessa vez. Uma delas, se afastada um pouco de seu rosto, numa distância semelhante ao comprimento de seu braço, parecia mostrar uma figura humana, uma mulher com uma túnica na cabeça, para ser mais exato. Parou de olhar a foto, foi tomar um café e fumar um cigarro. Voltou e a olhou de novo. Lá estava ela: uma senhora magra, com uma túnica ou véu na cabeça. Achou estranho o fato de não tê-la visto antes, pois havia olhado todas as fotos inúmeras vezes. Por que só agora se mostrava assim: de modo flagrante, quase óbvio? Lembrou-se de Jung, discípulo de Freud, em seus comentários sobre projeções. Pensou estar projetando aquela senhora na foto, uma maneira subconsciente de dar sentido às coisas. Mas, se projetou, não foi só ele, pois ainda na mesma tarde, Sílvio e Carla entraram em sua sala, com a mesma impressão. Combinaram de não divulgar o que viram aos outros, para não influenciá-los. Que eles chegassem naturalmente e sozinhos às suas próprias conclusões. Na quarta-feira daquela semana, o Pereira e a Beth fizeram os mesmos comentários sobre a senhora com um véu, enquanto o Mário, na sexta, disse ter visto a senhora, mas não concordou com o véu. Para ele, pareciam cabelos lisos, escorrendo pelos ombros. Porém, um outro detalhe despertou muito sua atenção: era o fato de... Sílvio tapou sua boca, não deixando que falasse. Explicaram-lhe a importância de ninguém induzir ninguém nas interpretações e ele concordou, pois tornaria tudo muito mais científico e preciso, dentro do possível. Todos estavam acostumados a lidar com objetividade e precisão na análise de projetos em suas respectivas áreas. Natural, portanto, manter-se o hábito inclusive nisso. Na noite subseqüente, véspera do almoço de sábado combinado, Mário, em sua casa, recebe três ligações. Sílvio ligou primeiro, por volta das 19 horas, seguido por Carla às 20, Pereira e Beth as 20,30 e Ique às 21,00. Todos comentaram sobre um outro detalhe visto e se não era o mesmo notado por ele. E era: a senhora, com véu ou cabelo liso sobre os ombros, parecia ter o dedo indicador de uma suposta mão direita, apontando para baixo. Houve uma satisfação geral e evidente, embora comedida, pois não quiseram parecer infantis. E o jogo dos sete erros permaneceu com o mesmo número de adeptos, mas ganhou método, disciplina e energia.

Assim que desligou o telefonema feito ao Mário, Henrique começou a trabalhar na massa do macarrão para deixá-la descansando até o dia seguinte. Armou a máquina, com seus roletes sulcados, na borda da mesa, quase pisando em Lila várias vezes, pois ela insistia em seguir seu calcanhar. O plano era deixar meio caminho andado e não ter que acordar muito cedo na manhã seguinte. Usaria a manhã para pequenos detalhes, como varrer um pouco o carpete, trocar os jornais do banheiro da cachorra, passar um pano e etc. No resto do tempo, aguardaria o pessoal, olhando mais um pouco aquelas fotos para, de novo, achar estranho não ter visto aquilo que parecia ser uma mão, com um dedo apontando para baixo. Como a imagem da mulher era formada pela própria planta e sua combinação com o ângulo de incidência de luz, o dedo apontaria para sua base ou raiz, ou seja, para baixo. Já ia se envolvendo em novos pensamentos e os dividiria com eles, no sábado: raiz metafórica ou havia algo ali, naquele vaso?

Sílvio e a esposa trouxeram parmesão ralado de primeira, segundo eles. Mário também trouxe a mulher, acompanhada de um frango assado, para o caso da reunião se estender e a macarronada terminar. Elisabeth chegou um pouco antes do marido, que estava estacionando o carro, e anunciou um dos melhores molhos a bolonhesa do mundo: o dela. Carla demorou um pouco mais, mas veio, também trazendo outro frango assado, caso a reunião entrasse pela noite. Foi logo dizendo a todos que deveriam olhar com cuidado o que havia dentro daquele vaso da planta. Deveriam peneirar a terra com atenção, pois, se toda aquela história da imagem fizesse algum sentido, deveria haver algo ali. O dedo aponta para baixo, lembram? –perguntou ela. Ique disse que quase já estava fazendo isso, quando eles começaram a chegar. Fariam depois do almoço, com precisão e sem ansiedade. Lila estranhou a casa tão cheia de gente e, assustada, foi se refugiar na sua sexta. Aceitou o carinho de todos, sem grande entusiasmo, mas entre a sexta e o colo de Carla, preferiu o segundo. A moça faz o tipo maternal, protetor e como já disse talvez cães notem essas coisas mais facilmente, principalmente fêmeas.

Muito se falou sobre Lila, naquele almoço. Não propriamente sobre ela, é claro, mas sobre a sua obsessão com a samambaia. Satisfeitos, passaram aos cafezinhos e iniciaram suas pesquisas sobre o conteúdo do vaso da planta.

Pois bem, eu que lhes conto a história, farei um resumo e ele começa aqui, com todos estendendo alguns jornais na sala, ao lado do vaso, sobre os quais despejaram a terra. Espalharam-na sobre eles, descobrindo pequenos invólucros plásticos sujos e encardidos, que deviam estar lá há um bom tempo. Carla, química que é, levou-os com ela para proceder a análises. Não no departamento, que lidava mais com questões burocráticas, mas junto a amigo que tinha em um laboratório de área pericial. Um mês e meio depois, uma vez que esse amigo trabalhava nisso nas brechas de seu horário, veio a resposta: foram encontrados traços de drogas alucinógenas. Henrique se deu conta, então, de um provável motivo para o estranho comportamento de sua ex nos últimos dias da relação. Tentou saber mais sobre ela agora, no presente. Ouviu dizer que viajara à Espanha e ficaria lá por um ano. Depois disso não procurou mais notícias, pois se sentiu apaziguado com a possibilidade de sua ex-mulher estar se drogando e isso, mesmo completamente contraditório, o acalmava. Era o orgulho daquilo que sentia por ela, dando agora a prova final da sua substância, pois para mantê-la ele fez de tudo um pouco, tentando sanar seus defeitos e relevando os dela. Quando Ique a perdeu definitivamente, teve uma forte impressão de que não só ele a perdia, mas ela também se perdia. Numa fração de algumas horas, outra mulher se dispôs na sua frente, embora usasse o mesmo corpo. Essa forte sensação o deixou muito assustado, reforçando mais do que nunca a idéia de que algo estava errado, um algo estranho e completamente novo, desconhecido por ele. Pensou em tantas coisas: distúrbios nervosos, dupla personalidade, questões místicas e etc. Drogas também lhe passaram pela cabeça, mas nas buscas que fez por algum indício, esqueceu do vaso e eu, que lhes conto essa história, quero também deixar claro que a motivação dessas buscas, logo após a separação, foi dupla. A primeira foi querer saber o que acontecia, pois intuía algo novo e muito ruim, e a segunda era a grande vontade de ajudar. Não foi feliz em nenhuma delas. Quanto à primeira, não tinha provas. Quanto à segunda, foi tomado por arrogante e sempre que tentava, de algum modo, se aproximar de novo, ela o humilhava com todos aqueles novos cacoetes cínicos e cheios de escárnio que, como um refil, substituíram o conteúdo original do seu corpo. Isso acabou por contribuir com o definitivo afastamento de Henrique, pois na sua cabeça, que era só uma, mas era sua, ele era uma boa pessoa, de bons princípios, e incapaz de odiar com tanta voracidade, alguém que tenha amado com veracidade. Ique fez questão de me dizer, antes do término dessa história, que ainda ama aquela mulher de antes da troca do refil, embora ela não o amasse, caso contrário, seu amor se debateria de tal modo que inviabilizasse a troca.

Henrique superou definitivamente a questão ex. Não procurou nem ouviu mais nada sobre ela. Hoje prossegue sua vida muito bem, apaziguado e com uma nova companheira de quarto e, por que não dizer, de cama. Amam-se muito, namoram bastante e...bem, prometi a ele não tecer comentários sobre sua nova parceira, pois a quer só para si. De público em sua vida, que fique só essa parte dela, já contada, e Lila, sua cadela com poderes especiais. Pediu-me que usasse o nome da cachorra como título desse conto, caso fosse publicado, pois tanto nas reações com pessoas, como situações, até hoje confia na sua excentricidade.

Dassault Breguet
Enviado por Dassault Breguet em 12/09/2010
Código do texto: T2493746