FRIO ASSASSINO
Frio de matar passarinho, assassino. O homem, na sua casa, prepara-se para dormir.
É um ritual agasalhar-se cuidadosamente.
Pijama de flanela, meias de lã. Gorro que cobre as orelhas e desce até o pescoço, ridículo.
De chinelas, coloca por cima do corpo um roupão pesado e fecha-o, apertando bem o cordão. Encaminha-se para a cozinha. Acende o fogo e coloca leite para aquecer.
Uma medida de açucar, outra de chocolate.
Pára a colher suspensa no ar e, como quem toma importante decisão, pensa um pouco e depois coloca mais chocolate.
Fica observando a chama.
Fica pensando no frio.
Frio lá fora, na rua, muito maior do que o de dentro de casa.
Frio tenebroso que, mesmo agasalhado, parece-lhe congelar o corpo.
Diminui a chama e procura no armário um complemento.
Deve acrescentar à mistura uísque ou rum?
Uísque é sua preferência, mas rum deixa gosto melhor.
Opta pelo sabor. Um pouco de rum. Não deve colocar muito senão desanda a mistura.
Espera subir a fervura. Desliga o fogo e coloca o caldo numa caneca de porcelana refinada.
Experimenta. Excelente!
Vagarosamente retorna ao quarto. Pousa a caneca no criado-mudo, liga o aquecedor elétrico e prepara-se para deitar.
Embaixo das cobertas, recosta-se no travesseiro alto, macio.
De repente, sente-se gratificado por tudo.
A solidão com que moldou a vida, longe de ser um infortúnio, dá-lhe a satisfação de sucesso e alegria.
Sim, é uma boa vida, rodeada das coisas boas pelas quais sempre lutou.
Principalmente conforto, como o de agora, para usufruir calor enquanto, lá fora, morre passarinho.
Bebe o chocolate quente.
Solve aos pouco, como criança, deixando a infusão envolva-lhe a lingua, acentuando o sabor.
Bom, bom. Tudo muito bom.
Deita-se por completo e puxa a coberta até a cabeça.
É importante aquecer as orelhas.
Sente o corpo mergulhar em relaxante torpor.
Languidez confortável, confortável, confortável.
Gratificante. Aquecido.
Delicioso.
O sono, pesado e profundo, chega pisando leve.
Aos poucos recupera a consciência.
Alguma coisa o desperta.
Insistente.
Sua mente prostrada é estimulada por sino, por sirene, por algo que não consegue definir.
Campainha? Campainha. Isto! Campainha.
Insistente e inoportuna.
Desperta completamente.
O quarto iluminado pelo tênue vermelho do aquecedor elétrico.
Impossível ficar deitado com insistente pedido.
Lá fora, frio assassino.
Quanto dormiu? Procura pelo relógio.
Quase uma e meia da madrugada. Quem seria a esta hora?
A campainha toca sem parar.
Alguém tem pressa. Urgência.
Levanta-se e torna a colocar o roupão, as chinelas, a ajeitar o gorro ridículo na cabeça para cobrir as orelhas.
Frio assassino.
Encaminha-se para a frente da casa. Não vai abrir a porta àquela hora!
Quem poderia ser?
Não acende a luz.
A campainha insistente não para.
Uma e meia da madrugada.
Frio assassino.
Abre a janela. Um pouco, somente um pouco.
O frio, aço e navalha, golpeia-lhe pela abertura, impiedoso.
Recolhe a mão e grita.
Quem é? Quem é?
Uma figura grotesca aparece por trás das grades que cerca a sua casa.
Vulto escuro, indefinido.
Quem é?
Uma blusa, uma blusa. Um casaco, um agasalho. Não tem nenhum para me dar?
Reconhece o mendigo que há tempos dorme ali perto, na calçada.
Saltita, agitado, esfrega as mãos, cruza e descruza os braços em torno do corpo.
Parece um macaco, um animal, um idiota!
Esta hora?
O furor domina-lhe.
Como este imbecil tem coragem e ousadia de acordar-lhe para pedir um agasalho?
Estúpido!
Não tenho! Vá-se embora! Suma daqui ou chamo a polícia!
Bate a janela. Com força, para que ele ouça o barulho.
Deixa o frio assassino lá fora.
Pareceu-lhe que o outro, desculpa-se e agradece-lhe.
Não é possível!
Deve ter ouvido mal.
Volta às pressas, passos miúdos, para o seu quarto.
Senta-se na cama e olha desolado para a caneca vazia de chocolate.
Deita e puxa a coberta até as orelhas.
Frio assassino.
Fica olhando o brilho vermelho do metal no aquecedor, prenúncio do seu destino.
De repente, horrorizado, se dá conta de que nunca mais conseguirá se aquecer.
(22/07/2006, 23:40h., lá fora, frio de matar passarinho!)