AUDITORIA I
O senhor Ferreira chegou à minha sala, trancou a porta, sentou numa das poltronas em minha frente e disse com voz cansada:
- Temos um problema na sucursal São Luis. O pessoal da matriz acha que está havendo roubo porque os valores recolhidos estão muito abaixo do que seria normal para o volume de seguros contratados.
- Alguém já foi lá?
- Não. Eu indiquei você. Ribamar é nosso amigo e se de fato houver safadeza podemos arranjar um jeito de contornar sem escândalo. Nesse mercado que a gente vive, qualquer movimento em falso despenca com a produção.
- Tem algum documento?
- O pessoal da matriz vai mandar pelo Sedex 10 para a sua casa.
Na manhã seguinte recebi a caixa contendo os relatórios de produção por carteira; lista de comissões pagas aos corretores; extrato das indenizações dos últimos seis meses; extrato da conta bancária e resumo da Conta Corrente, com toda movimentação da sucursal com a matriz.
Num envelope separado com a etiqueta autocolante de URGENTE, encontrei o voucher do hotel e a passagem aérea. Meu vôo sairia dentro de três horas.
No portão de embarque meu filho menor perguntou:
- Pai, você vem para o meu aniversário?
- Acho que sim. Vamos ver.
Estava anoitecendo quando o avião pousou no aeroporto do Tirirical. O nome verdadeiro é Aeroporto Internacional Cunha Machado, mas ninguém conhece por esse nome. Coisa semelhante ocorre com os aeroportos do Galeão no Rio e dos Guararapes no Recife. Duvido que alguém se refira a eles chamando-os de aeroporto Ton Jobim ou Gilberto Freire.
A viagem foi monótona. Sem movimento, pelo menos aparente, que justificasse tanto tempo gasto, o avião pousou em Natal, em Fortaleza e Teresina. Não sei por que diabos nós temos que ficar parados por uma hora nesses aeroportos.
Se fosse para trocar a tripulação até que se justificava, mas não. Os procedimentos de embarque e desembarque de passageiros e cargas são feitos ao mesmo tempo em que trocam aquele carrinho contendo as comidinhas sem graça que eles servem a título de almoço ou jantar. Todo processo não dura trinta minutos. Depois com as portas fechadas, ficamos no solo, posicionados perto de uma das cabeceiras da pista, aguardando autorização para decolar.
Meu hotel ficava na mesma praça do palácio do governo – O Palácio dos Leões – construção imponente e bem conservada, com mais de quatrocentos anos de história e de assombrações.
Todo cansaço e aborrecimento desapareceram quando vi a recepcionista do hotel. Era uma moça belíssima. Negra da cor de azeitona madura, cabelos carapinha cortados curtos, olhos negros, expressivos, mãos delicadas cujas palmas eram quase da cor de mostarda assim como o que seria branco nos olhos das demais pessoas. A boca carnuda ostentava os dentes perfeitos que parecia um colar de pérolas sobre o veludo roxo das gengivas. Nas pequenas orelhas argolinhas de ouro cujo brilho era salientado pelo escuro da pele. O nariz de tamanho médio dividia ao meio a face sempre sorridente. Sobre os seios, volumosos sem exagero, uma gargantilha também de ouro, sustinha a medalha de louça com a imagem amordaçada de Anastácia, a escrava de olhos azuis.
Enquanto ela procurava a confirmação de minha reserva, chegaram turistas europeus e Moema atendeu a todos falando em alemão, francês, italiano e outra língua que mais tarde soube ser holandês, com a mesma fluência que falava o português comigo.
- Pronto senhor. Apartamento cinco, primeiro andar, de frente para a piscina. Espero que sua estada em nosso hotel seja muito proveitosa.
- Eu também espero coisas maravilhosas daqui de São Luis.
Eu estava extasiado diante de tanta beleza, simpatia e eficiência. O boy pegou minha mala e balançando a chave para despertar-me do encantamento, disse com um sorriso de cumplicidade:
- Queira me acompanhar, senhor. Eu lhe mostro o caminho.
Subimos uma pequena rampa forrada com carpete que segurava as solas dos nossos sapatos.
- Coisa estranha, esse carpete! – comentei.
- É para evitar tombos senhor.
Chegamos ao corredor semicircular e o rapaz abriu a porta, acendeu as luzes, ligou o condicionador de ar e abriu o frigobar anunciando o estoque disponível.
- Eu não quero nada disso. O que eu quero é comer a recepcionista. Você providencia isso para mim?
- Moema sai as dez, senhor.
- E fode?
- Não sei lhe dizer, senhor. O número da recepção é 11, senhor. (disse indicando o interfone) Posso lhe ser útil em mais alguma coisa, senhor?
- Sim, pode. Por favor, diga à menina da recepção que eu estou apaixonado por ela.
E para aumentar nossa cumplicidade, dei uma cédula de $ 20,00. Ele riu para mim e fez o gesto afirmativo com o polegar.
Desliguei o condicionador de ar e abri a porta da varanda. O ar quente e acolhedor de São Luis encheu o quarto com o perfume da maresia. Nesse instante, imaginei o calor dos braços de Moema me apertando. A piscina logo abaixo de meus pés parecia prolongamento da varanda, onde a água azul brilhava por conta da iluminação nas paredes abaixo da linha d’água.
Num dos cantos, com água até os pescoços, um casal trocava beijos ardentes. Seus rostos eram os nossos, eu e Moema, minha deusa de ébano.
- Recepção. Moema falando. Em que posso ser útil?
- Você quer ir jantar comigo? Acabei de chegar e não conheço nada em São Luis. Queria comer algo da terra.
Procurei dar um tom especial quando disse "algo da terra" para deixar clara a minha intenção.
- Senhor, meu expediente...
- Eu sei, termina às dez. Eu fico na piscina esperando você. Eu esperaria por você a vida toda de fosse necessário.
Moema riu e disse:
- Vou pensar num local bom para levar o senhor.
Vesti sunga e camiseta regata e fui pegar a toalha na recepção. Moema ainda estava atendendo aos turistas. Agora falava espanhol. Assinei o termo de retirada e entreguei a chave do apartamento. Nesse movimento retive por alguns instantes a mão sedosa de Moema.
Fui em direção da porta larga de acesso à piscina. Parei um pouco junto à mesinha com o jornal do dia e revistas.
Fingi que estava escolhendo uma e aproveitei para olhar na direção do balcão. Moema estava me observando com um leve sorriso.
O que ela teria achado? Teriam sido válidas tantas horas de academia puxando ferros, correndo como louco uma esteira? E a minha cor, será que teria alguma influência?
Só mais tarde iria saber. Se é que haveria mais tarde.
Pedi um drinque em copo alto e ao garçom que me avisasse quando faltassem trinta minutos para as dez da noite. A água estava morna, deliciosa e a visão dos amantes só aumentou minha libido, minha vontade por Moema.
Eu já estava pronto quando o interfone tocou.
- O senhor me encontra na praça de taxi aqui na frente do hotel?
Quando entreguei a chave, notei que a turma da recepção havia sido trocada.
Fiquei no ponto de taxi aguardando com o coração acelerado e todos os músculos em prontidão como todo bom predador. Em pouco tempo Moema apareceu radiosa dentro do vestido de seda branca que ressaltava ainda mais a cor negra da pele brilhante e cheirosa à fêmea.
- Estamos fardados? Ela comentou.
Só então notei que eu também estava vestido com calça e camisa de linho branco.
- O senhor...
- Ei! Para com isso. Eu não sou senhor.
- Bom, vou tentar lhe chamar pelo nome. Você já comeu arroz de cuchá?
- O que é isso?
- Um prato típico do Maranhão. Arroz, camarão, vinagreira...
- Pelos ingredientes deve ser muito bom. Vamos embora comer esse arroz chá-chá.
- Arroz de cuchá. (risos)
Os bares e restaurantes populares do Maranhão são chamados de base pelos nativos. Nós fomos para a base do Rabelo.
(continua em MOEMA e AUDITORIA II)