De novo vivo
Julgou ele que sua passagem pelo mundo, os seus dias felizes, infelizes, solitários, monótonos, ou emocionantes, não significariam nada, absolutamente nada, dentro de mais alguns anos. Todos os seus conhecidos, amigos, inimigos, familiares, já haviam sucumbido ao tempo. Ele, no entanto, permanecia vivo, um ser esquecido no tempo, como se houvesse descoberto o segredo da imortalidade, sem perceber que isso o isolava permanentemente do mundo e da humanidade.
E mesmo que houvessem restado, aqui e ali, alguns velhos conhecidos, ele não mais os reconhecia, o seu cérebro não mais se recordava deles. Nem em lembrança, era como se nunca houvessem existido.
Era um homem sem relações, ligando-se ‘a vida apenas por suas poucas necessidades cotidianas, aquilo que ele julgava ser o único benefício da idade, ter cada vez menos necessidades: alimentava-se cada vez menos, já que sentia pouco o sabor da comida, pagava as suas contas, cada dia em menor número, mantinha o corpo e as roupas limpas, ainda que as suas mãos ensaboadas não conseguissem mais atingir algumas partes do seu corpo.
Esquecia-se, freqüentemente de sua senha no banco, o que provocava um quê de angústia. Sabia que o seu dinheiro, todo aquele que passara a vida acumulando, vinha diminuindo, ano a ano, e tinha como plano supremo morrer no exato momento em que o seu capital se extinguisse. Eis aí um nobre fim de vida, não dar trabalho ‘a ninguém.
Era assim que havia imaginado a vida perfeita, a completa auto-suficiência, não depender de ninguém. Fantasiou, um dia, que isso seria possível num pedaço de terra bem cuidado, em que plantaria e colheria por conta própria. Depois, concluiu que era uma fantasia de gente da cidade grande, um Robson Crusoé do asfalto. Descobriu, então o valor do dinheiro, e amealhou dia a dia, mês, a mês, e viu-se como um Robson Crusoé com dinheiro, para quem a sociedade era uma grande selva a ser conquistada, como um terreno virgem a ser explorado. Passou a caçar, nos super mercados, produtos em oferta, bens ali dispostos para quem precisasse. Para quê se esfalfar se tudo se oferece e vem caminhando até o mercado?
‘A medida em que envelhecia, no entanto, era, cada vez mais, um Robson Crusoé, lutando sozinho pela sobrevivência. Abria os olhos pela manhã e se surpreendia com o fato de ainda estar vivo. Vestia a mesma roupa do dia anterior, os mesmo pensamentos soturnos, enquanto lutava para recolocar os seus órgãos em funcionamento.
Dia três, dia de pagar o condomínio, era o grande dia do mês, a sua grande despesa.
Quatro horas da tarde, hora de olhar o mar, era a grande hora do dia, olhar o mar sem poder navegar, mas sentindo, ainda, o cheiro misterioso da maresia, e a sua promessa de muitas aventuras.
Sete horas da noite, hora de ver o noticiário, assassinatos, guerras, rebeliões em presídio, fraudes, corrupção, chuvas, inundações, mais um dia igual aos outros, em que o mundo dava mais uma volta, com seus vilipêndios previsíveis, mas em que nada acontecia com ele, um dia em silêncio, sem ter ouvido a sua própria voz, sequer uma vez. Agora dormir, tomar os medicamentos e ir para a cama, dormir sem sonhos, e, amanhã, talvez, se surpreender em estar, de novo, vivo.
De novo vivo, seis horas. De novo vivo, sete horas. De novo vivo, oito horas. Haveria alguma coisa que o fizesse levantar? Sim alguém o exige, um patrão impaciente, o seu próprio corpo que quer urinar; urinar havia se transformado numa grande oração pela vida.
Quatro horas da tarde, hora de ver o mar. No retorno, subiu vagarosamente a larga avenida. Na portaria pegou a correspondência. Uma carta do banco solicitava o seu comparecimento urgente. O seu saldo estava no vermelho!