Todinho

Todinho era uma criança especial. Especial em todos os sentidos. Sempre muito calado, cabeça baixa e de pouca conversa, mas parecia ter o carinho de todos. Quando ele chegava com sua bermuda na altura dos joelhos, a garotada logo se apressava para escolher os jogadores de cada time.

Valmir sempre decidia tudo, e não era pra menos, como craque da rua e do bairro tinha sempre o respeito de todos. Suas pernas tortas desorientavam os marcadores, que ficavam sem saber em qual direção ele ia partir com a bola.

O certo era que, time que Valmir jogava, Todinho ficava do outro lado. Diziam os garotos que se não se podia ter quem fizesse os gols, ao menos teriam quem os evitasse.

Com a bola nos pés Todinho não sabia o que fazer. Até que tentou, mas nunca consegui grande coisa. Era uma presa fácil para os jogadores dos outros times. Mas quando o colocaram no gol, como última opção; virou a pedra no sapato de Valmir, e seus dias de artilheiro pareciam ter chegado ao fim.

Todinho simplesmente segurava tudo com uma facilidade que impressionava a todos.

Certa vez perguntei aos outros meninos a razão do seu apelido. Diziam que era devido a sua semelhança física com um menino da propaganda do achocolatado de marca bem conhecida, naquela ocasião.

Como Todinho não ligou; o apelido pegou.

Tinha lá pelos seus 12 anos de idade e nunca lhe vi acompanhado de nenhum outro amigo, o que seria normal nos garotos nesta idade. Estava sempre sozinho, e talvez tivesse escolhido agarrar no gol pra não ter mesmo que falar com mais ninguém.

O fato é que aquele menino voava como um pássaro. Valmir já tinha virado motivo de chacotas e piadas no grupo por não conseguir marcar gols nas traves de Todinho.

Um dia, Valmir decidiu que isso iria mudar. Quando entrou em campo naquele dia, estava sério e parecia ter uma idéia fixa na cabeça. Olhava pra Todinho de lado, como se lhe enviasse algum recado.

Não deu outra!

Mal começou o jogo, Valmir pegou a bola e saiu driblando todo mundo. Com suas pernas tortas ninguém sabia pra que lado marcar. Se fossem pra esquerda, Valmir saia pela direita, e se ficassem, era bola pelo meio das pernas na certa. Não tinha quem lhe fizesse parar. Ele corria com toques sobre a bola que ia rolando a sua frente, como se fosse cúmplice dele. Até que finalmente ficou cara a cara com o gol defendido por Todinho.

Parou ali na certeza da facilidade e do êxito do seu chute. Eram apenas quatro metros e não tinha como errar. Todinho estava lá parado no centro do gol impassível sem mexer um só dedo sequer, mas seus olhos...

Nunca tinha visto coisa igual. Os olhos verdes de Todinho estavam fixados nos olhos de Valmir, como se esperasse sair dali a direção que a bola finalmente tomaria.

Valmir deu um sorriso debochado, ameaçou chutar num canto, deu uma paradinha no meio do caminho e chutou no outro. Quando a bola partiu, Todinho, do outro lado partiu na mesma direção da bola. Tinha endereço certo no canto esquerdo da trave, e tudo indicava que Todinho chegaria atrasado sem que nada pudesse fazer.

Como um pássaro em voô diagonal livre; Todinho foi ao encontro da bola. Pernas estiradas, braços esticados, dedos apontados firmemente na direção do canto. Foram segundos que duraram uma eternidade.

Quando ele caiu ao chão, fez-se um enorme silêncio. Valmir já comemorava com os braços levantados pra torcida, mas Todinho rolou várias vezes sobre o próprio corpo e por pura mágica levantou do outro lado com a bola entre seus braços, batendo a poeira do seu corpo.

Jamais esqueci aquele momento. Pegaram ele no colo, jogaram para o alto. Era agora o mascote e o preferido da torcida.

Valmir também me impressionou. Pensei que fosse ficar irado e saísse sem nada dizer. Em vez disso, caminhou na direção de Todinho, o cumprimentou e lhe deu um forte abraço. Daquele dia em diante só jogava se tivesse do seu lado as mãos mágicas daquele menino.

Um dia senti a sua falta nas nossas brincadeiras do futebol e procurei saber o que tinha acontecido. “Ta descansando”, diziam todos. Achei que havia algo mais do que isso, pois ele nunca mais aparecia.

Até que sua mãe, vendo a minha aflição, contou-me o acontecido:

Havia sérias suspeita de que Todinho estava com “Paralisia Infantil”. Caso isso fosse confirmado, jamais tornaria aquele gramado, ou qualquer outro, e provavelmente jamais fosse visto caminhando pelas ruas novamente.

Chorei muito naquele dia, como nunca tinha feito antes. Eu adorava aquele moleque e não podia acreditar que isso estivesse acontecendo com ele.

Uma manhã o vi saindo para o médico amparado por seus pais. Volta e meia dobrava os joelhos, como se lhe faltasse firmeza pra ficar de pé e caminhar. E isso se repetia todos os dias.

Depois de muito insistir, sua mãe me permitiu ir junto com Todinho nas consultas aos especialistas. Quase todos acreditavam tratar-se mesmo de “Paralisia Infantil”, que ia a cada dia lhe tirando o controle e a mobilidade do corpo. Doença sem cura, até então.

Os pais de Todinho deixaram suas vidas de lado para cuidar só do menino. Todo dinheiro era usado na tentativa de salvar-lhe a vida. Algumas vezes ficavam o dia inteiro só com o café da manhã pra não gastar o dinheiro da passagem de volta.

Vendo o entra e sai do menino no hospital todos os dias, um velho médico procurou saber do que se travava, e começou a acompanhar o caso.

Dr. Fabiano Lima e Silva era o mais respeitado médico daquele hospital e tomou Todinho como um desafio seu.

Em umas das consultas posicionou Todinho do lado oposto da mesa, pegou sua caneta de formatura bem ali ao lado e o desafiou a pegá-la:

_ “se conseguir pegar é sua”, disse o velho doutor.

Lembrei na hora da vez em que Todinho agarrou aquela bola de Valmir. Pensei: “Ele vai conseguir; precisa!”

Como daquela vez, Todinho olhou fixo nos olhos do doutor, que havia acabado de desafiá-lo. Com muito esforço, de lhe tirar gemidos sussurrados, conduziu a mão em direção a caneta, mas ela parecia se revoltar e não querer seguir adiante. Franziu a testa, como se fosse pular novamente em voô livre, como fazia nas partidas de futebol, e num esforço maior a caneta estava lá entre os dedos de uma das suas mãos.

Foi uma alegria geral. Abraços, apertos de mãos. Desta vez, choramos todos juntos, abraçados ao doutor. "Seu filho vai se curar”, antecipou o médico entre risos de alegria.

Enfim, não era a doença imaginada a princípio, e sim uma outra de nome “Coréia”, rara, com as mesmas características, mas não tão grave, até então desconhecida pela maioria dos médicos.

Passados alguns meses, me emocionei ao vê-lo de volta aos campos de futebol, mas agora seu maior troféu era aquela caneta. Sempre que hesitava em fazer alguma coisa era para ela que voltava os olhos, e de alguma forma, tirava de lá a força necessária para vencer todos os seus desafios.

Nunca mais me separei dele, nem ele de mim, e a caneta o seguiu por toda parte; na arte mágica da escrita de um poeta, moldado na experiência da sua própria vida.

Hoje, quando o vejo com olhar perdido, fixo em algum ponto qualquer, tenho certeza de que está tentando antecipar a direção dos seus sonhos.

Carlos Lucchesi, 04/09/2010.