O CEGO QUE SABIA DEMAIS!

Lêda Torre

Ano 2000. Numa bela tarde a aula inaugural. Curso que se daria somente em férias. Universidade Estadual. Curso de Letras, turma cheia de mulheres. A cidade, São Luis, estado do Maranhão. Colegas desconhecidos, um ou outro que por ventura se conhecia.

E, naquela ansiedade pelo novo, todos inquietos , adentra a nova sala, um senhor bem alto , calvo e robusto, lá com seus quase um metro e oitenta de altura, bem forte de modo proporcional,com seus quase cinqüenta anos provavelmente; era conduzido por uma bengala modular, cuja cegueira fora logo percebida por todos, de forma geral, nos seus movimentos peculiares de uma pessoa assim.

O silêncio na sala era total... todos ali entreolharam-se, naquele clima de interrogação, como se ali chegasse um ser planetário...quem era aquele homem, que apesar da situação, era de semblante leve, alegre e até feliz? digamos assim.

O sorriso constante era uma de suas características marcantes. Ele sorria para ninguém e para todo mundo ao mesmo tempo, era como se estivesse dizendo: oi turma, sou fulano de tal...parecia que ele queria muito se identificar.

Seu alto astral era notório.Porém, os olhares de toda a turma era de admiração e espanto ou mesmo o sentimento de compaixão por aquele semelhante nosso e, por ser uma pessoa com necessidades especiais. Com certeza muita coisa estava por acontecer. Tudo aquilo era só o começo. E o que se admirava nele, é que uma moça bonita havia trazido o tal senhor até ali, com todo carinho, situação em que deduziu-se ser sua filha, a bela.

Logo mais, chegara na nova turma,a primeira professora do período, a titular da disciplina Introdução à Língua Portuguesa. Uma pessoa muito simpática, sorridente, serelepe, assim meio ligeira, de estatura mediana, sandálias de salto bem alto para disfarçar seu tamanho mignon...cabelos muito curtos bem cortadinhos...belo sorriso...uma roupa simples, mas bem própria para o momento, com classe e desenvoltura e, com muita educação saudou a todos com um belo sorriso, cujo nome era Nancy Barreto.

Naquela apresentação, ali todos nós apreensivos, calados e atentos para quando chegasse ao único colega masculino, o cego, para conhecermos melhor aquele senhor; afinal, era uma turma só de mulheres, umas quarenta provavelmente.

Foi quando chegou a vez do tal aluno se apresentar, e ele identificou-se com tanta desenvoltura e alegria, como Lisboa, trabalhava de voluntário no Hospital do Câncer da cidade, o Hospital Aldenora Bello; era professor de Braille na Escola de Cegos do Maranhão, no Bairro Bequimão; Lisboa era também alto funcionário do estado, trabalha até hoje no Palácio do Governo, onde fica a sede do governo.

Falou também da sua religião, da sua família, do que gostava e do que não curtia, do seu trabalho, de suas viagens, de tantas experiências e depoimentos, que oportunamente ele teria o prazer de compartilhar conosco, etc.

Aquela primeira tarde de Faculdade, fora até um tanto agradável, alegre, vários professores, várias disciplinas, vários trabalhos passados e, como isso não seria novidade, assim seriam os próximos trinta dias de férias, férias do nosso trabalho, mas férias em curso, de forma intensiva, manhã e tarde. Universidade Estadual.

Primeiros trabalhos, divisão de grupos, rotina estudantil. Seu Lisboa ficou logo num grupo que nos parecia conhecidos de longas datas. Tão à vontade ele se sentia, e naquela jornada, todos iam conhecendo o novo colega aos poucos.

Proprietário de um farto currículo profissional, viajado por demais, e militante atuante de movimentos populares sociais, palestrante, ativista de seminários, congressos, sindicato dos professores, sempre envolvido em assuntos de deficiência visual. Ele era o cara! Muito inteligente por sinal.

O tempo todo Lisboa era brincalhão, bem humorado, contador de piadas, e por sinal, de cegos; de bem com a vida, enquanto que as outras pessoas, ditas normais, são egoístas, invejosos, petulantes, cheios da razão, sobretudo incapazes de fazer alguém sorrir com prazer.

A primeira professora, de Introdução ao Ensino de Língua Portuguesa, todo dia solicitava ao Seu Lisboa que contasse um causo, ou uma charada, ou uma experiência, um depoimento ou coisas do gênero, com a finalidade de descontrair a classe, para um novo dia de trabalho... e, assim era feito. Todo mundo já esperava por aquele momento ligth e alegre.

Foi ótimo aquele mês do primeiro período de Letras. Entretanto, acreditando que a professora Nancy Barreto estava tão curiosa quanto as demais alunas, não só de saber mais sobre o “bendito fruto”, como também conhecer sua história, o porque da cegueira, por exemplo, essas coisas...

Quão grande foi a surpresa de todos ali, quando o colega deficiente visual, espontaneamente num momento de depoimento, narrou sua triste história, assim: “ filho de uma família numerosa de doze irmãos, ele era o sétimo, pais pobres do interior, povoado de nome Sítio Seco dos Rochas, labuta de roça, cuja localização ficava entre grandes e altas árvores...lugarejo meio distante da cidade maior.

Sendo que todos os dias, aquela prole ia ao trabalho com seus pais, almoço pronto antes de virem trabalhar, cada um com suas trouxinhas de boia fria, de água nas moringas, sem esquecerem de uma rede para alguns momentos de descanso lá na casinha que os abrigava das intempéries do próprio tempo”, em meio da roça.

Seu Lisboa contou ainda, que sua cegueira foi adquirida da seguinte forma: “numa lida cansativa do dia a dia, meio a tantas atribuições e atribulações, com tantos afazeres por executar, muitos filhos pra cuidar de um tudo, e ainda ter que preparar comida para todos de casa e da roça, todo dia aquilo, num certo dia de TPM, sua mãe bradou: - “ nem pra Deus levar um bocado desses meninos, eu não aguento mais essa lida...” só que ouvindo isso, a gurizada ficou em silêncio geral...e indignados com tamanha blasfêmia! Quanta ignorância!! Apesar de saber do seu grande labor, nem era preciso isso...afinal, nada justificaria aquelas palavras...frias, secas, inóspitas e talvez desintencionadas, mas...

Porém, o pior estava por vir. Foi quando numa manhã chuvosa, época das grandes torrentes d’água, raios, trovões e tempestades, ventanias quase que incontroláveis aquela família não tinha disso, iam trabalhar assim mesmo. O destino de todos ali, era a roça, chovesse ou não.

Parecia até que a chuva ouvira e cessou um pouco, dando uma trégua para irem ao grande e famigerado labor. Prosseguiram por estrada afora, quase sempre enfileirados! a matriarca ficara em casa, disse que ainda iria arrumar algumas coisas ali, depois seguiria caminho...e foi assim...a meninada se foi rumo à roça...

Entretanto, em meio daquelas árvores tão grandes, frondosas como elas só, veio uma forte ventania, que chegou a provocar medo naqueles trabalhadores mirins e, na companhia do seu pai, que seguia em frente na missão de um comandante a guiar seus soldadinhos...

O tempo estava assustador...quem pôde se proteger embaixo de algumas árvores bem copadas, se protegeu; porém, os outros tentaram se esconder debaixo de algumas encostas como se fossem pequenas cavernas, que dava até pra se protegerem do terrível temporal, esperando estar seguros.

Vendo toda aquela movimentação, o menino Lisboa observara tudo em detalhes e, sendo um garoto muito obediente, nada dissera, sempre foi muito temente a Deus, não se achou em direito de falar algo... e aproveitando um pouco que a chuva cessara, intrépido e determinado, chamou alguns de seus irmãos e resolveu seguir em frente...outros ficaram pra trás.

Sabia da tarefa a cumprir, senão, já viu o que iria acontecer se não fizessem o que havia de fazer, a mando da sua mãe. Mas, de repente, outro temporal bem mais violento parecia que queria arrastar a todos para bem longe, e quase sem perceberem a visão do local, não deu para ver que uma árvore enorme vinha em direção do menino Lisboa, que por sorte, ficou entre seus galhos.

Só que outros galhos atingiram bem nos olhos do garoto Lisboa, que pondo as mãozinhas nos olhos, gritava desesperadamente de dor, e tentando conter o sangue jorrante, chorava compulsivamente e muito desesperadamente correndo em todas as direções, sem rumo...

Apesar do barulho da tempestade e da chuva, o vento fora se acalmando quando seus irmãos chegaram mais perto do irmão, pelo ecoar dos gritos do pequeno menino de oito anos de idade. Imagina-se a agonia daqueles meninos desesperados, onde o pai aquela altura estava na roça, seguira em frente, e eles ali para trás, sem norte naquele momento triste, tiraram suas camisas velhinhas, e na tentativa de ajudar o irmão Lisboa, a estancar tanto sangue, lavado pela água ainda da chuva, tentavam também apaziguar a dor incontida do irmãozinho.

Não pensaram duas vezes, aquele “diabo de roça”, ficaria pra depois, quem quiser que se danasse... todos eles, se juntaram, apanharam algumas varas dali do mato, amarraram-nas com embira de árvores, como se fosse uma maca, embora desiguais, habilidosos, pois ali era sua praia, e por baixo de toda aquela chuva, conseguiram levar o irmão de volta pra casa.

Aquela altura, a mãe vendo aquela cena, desesperada, incontrolável por e mortificada por dentro, sabendo e lembrando bem do que dissera ainda pela manhã, antes da saída dos filhos com o marido pra roça, procurou manter-se calma.

Tomou o filho Lisboa, nas mãos, e chorando sobre seu filho, sentiu bem no fundo do coração, o peso de suas palavras ferinas, abraçou-o e pelos braços, colocou-o na sua cama, pondo água pra ferver e depois limpar os olhos do garoto.

No entanto, pois, daquele dia em diante, cuidar mais dele e dos demais, era missão da mãe nunca mais falar algo que desagradasse a Deus, cuidou mais deles todos e o menino cego, foi logo sarado , com remédios caseiros que sua mãe Júlia, cuidava muito bem, porém, não via mais nada. O menino Lisboa cresceu saudável, estudou, assim mesmo com suas limitações, sempre fora um aluno exemplar, e nada o impedia de fazer o que gostava de fazer.

Cresceu um homem forte, estudioso, militante das boas causas sociais, casou-se, constituiu família, teve duas filhas que são suas grandes companheiras e sua esposa que tem todo carinho com Lisboa, pois ele é um excelente esposo e pai. Além de prestar serviços de voluntariado no Hospital do Câncer de São Luis e funcionário do estado como professor estadual na Escola de cegos.

Este é um conto com base em fatos reais, e os nomes são fictícios. Mas é necessário saber que somos limitados, apesar da nossa soberba de dizer que sempre sabemos ou sempre achamos que temos razão.

__São Luis, 04.09.2010____

Lêda Torre
Enviado por Lêda Torre em 04/09/2010
Reeditado em 15/11/2017
Código do texto: T2477334
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