O dedo
Por mais fundo que ele empurre o ódio para o oco dos pensamentos, mais ele parece ganhar potência. O horror daquela noite, a mão ensangüentada, o olhar injetado, o choque... não dele, mas dela. Ela que vinha da rua, como todos os dias, trazendo de lá um breve sorriso que não condizia com as rugas de cansaço. Mas sorria.
E o sorriso fora-lhe roubado, junto com seu dedo.
A porta abre-se com estrondo e na sala ela entra carregando a mão ensangüentada. A face era pálida e chorosa. Balbuciava estranhezas. Ele, estarrecido, socorre-a e nota que lhe falta um dedo naquela mão cheia de sangue.
O dedo da aliança.
Mais tarde, após correrem para o hospital da cidade, ela falara entre soluços e vergonhas, que havia sido assaltada por dois maloqueiros. Pediram a aliança, ela não conseguira tirar. Pelos tantos anos que ali estivera, parecia fazer parte da sua carne. Eles deram um jeito. Além da aliança, levaram um dedo de presente.
A história o faz despencar num abismo de perplexidade. Nesse abismo as paredes são feitas de dedos decepados, cada um ostentando uma aliança de casamento banhada em ouro. E não havia minotauro para guardar aquele dédalo, mas uma centena de esposas com aquele olhares espantados, boiando em lágrimas que não caíram. Foi então que o ódio nasceu.
Voltaram para casa após a cauterização e os cuidados. Ela procurando alguma brecha na muralha de silêncio que ele erguera. Ele ainda perdido no labirinto da incredulidade.
Não podiam conversar sobre o ocorrido. Por vários dias o dedo ainda estava lá, em seu lugar de pertença e direito. E ele tentava ignorar a falta de prática dela em ignorar a ausência do membro. Pegar as coisas de maneira estranha, escrever de maneira estranha, as carícias nupciais de maneira estranha.
Havia uma ausência ali.
Ele suportou por tanto tempo que por um momento achou finalmente ter descoberto o fim do labirinto. Por um momento fugaz o dedo voltava para seu lugar padrão, dando à mão sua firmeza necessária para agarrar a faca, a caneta ou o membro rijo do marido nos momentos de amor.
A farsa teve fim quando ele a flagrou soluçando no banheiro. Não havia superado. E novamente o labirinto se formou a sua volta, tão intrincado e sem sentido como antes.
“Por que choras?” Ele pergunta da porta do banheiro, evitando fitar a mão estranha.
Ela ergue olhos úmidos e vermelhos. Não entende a pergunta ou não deseja entender.
“Coça...” Ela diz simplesmente.
Ele tenta explicar que sensações fantasmas são comuns para quem perdeu um membro do corpo. Logo passaria.
Mas não passou. E com a coceira o ódio ganhou vida. Tentava deslocar seu ódio para si, pela sua incompreensão, para sua falta de sensibilidade diante do sofrimento dela. Mas a verdade é que se sentia confuso. Não sabia o que odiar. Não sabia para quem deslocar todo aquele sentimento ácido. Para ela, para si, ou para os marginais.
Seu sono fora-lhe roubado. Nas noites ao lado da esposa todo o absurdo e horror da situação surgiam para ele em magnitude multiplicada. Imaginar o grito dela enquanto o vagabundo cortava-lhe a carne do dedo era o pior. Imaginar que obscenidades ela fora obrigada a escutar, o medo e o riso do marginal. Imaginar a dor enquanto a faca cortava, serrando ossos e carne...
Ele por vezes saia da cama, não suportando os horrores sem nome que se formavam na mente. Queria esquecer o dedo. Queria parar de escutar o grito da esposa no momento da mutilação. Queria esquecer a dor da faca cortando e cortando. Queria esquecer seu desconsolo quando os vagabundos abandonaram-na e ela vagou em estado de choque até em casa.
Quando essas conjecturas malignas atingiam um patamar insuportável durante suas horas que eram de sono, ele ia para a cozinha e por lá ficava, imaginando uma forma de vingança. Atrocidades teciam-se nos pensamentos, uns mais horrorosos que os outros. O dedo o seguia para a cozinha e para qualquer outro lugar que fosse, por mais rápido que fosse. O dedo não o abandonava, como uma âncora, firmando-o naquele cais de ódio e desesperança.
Ele retirou o Uísque do armário e bebeu em goles rápidos, afogando o rosto na escuridão das palmas das mãos. Chorou pela esposa, por sua dor desconsolada, pelo dedo perdido e toda esperança usurpada. Voltou para a cama e abraçou-a como se fosse a última vez que aquilo fosse fazer. Ela despertou assustada com sua sofreguidão.
“Eu te amo tanto. Não posso parar de pensar. Por que fizeram isso contigo?” Ele sussurra entre lágrimas, beijando-lhe os ombros, o pescoço, a bochecha.
Ela não responde. Também soluça virando-se para ele, feliz por tê-lo ali, tão presente e tão completamente “ele”. Sua fragilidade, suas lágrimas e palavras consolavam-na e apaziguavam sua dor como nenhum outro analgésico.
“Vamos superar isso!” Ela diz com determinação, sorrindo de maneira nervosa. Lágrimas brilham como cabeças de alfinete na penumbra cinzenta de seu rosto.
Ele segura-lhe a mão desfigurada e ergue na altura do rosto. Quatro dedos. O anelar é apenas um toco de meio centímetro de carne cauterizada. As idéias do dedo voltam a assombrá-lo quando observa a mão, porém ele esmaga-as com beijos que oferece ao ferimento.
“Vamos! Vamos!” ele diz, voltando a abraçá-la com força.
Ao sair do serviço, seus pés o guiam para um lugar diferente. Apesar de lutar contra o sofrimento iminente, ele caminhava para a cena do crime. Uma rua estreita atrás da câmara municipal. Um simples cortar de caminho com um pedágio cruel para desavisados.
Ele apalpa o bolso e sente o contorno da arma fazendo-se presente. Fica ali parado, esperando algo acontecer, quando uma coisa perto do bueiro pesca a atenção de seus olhos.
O dedo.
Ele se agacha e retira a peça humana dentre as grades de aço da boca de lobo. Um dedo feminino. O dedo de sua esposa. O contorno de pele mais clara da aliança na base. Ele aperta o dedo com força dentro da palma da mão e novamente aquele ódio vermelho azeda-lhe a alma. Sem saber direito o destino daquelas atitudes, ele enrola o dedo decepado no lenço e o guarda do bolso. Seria difícil explicar à polícia o que um dedo humano fazia no bolso de seu terno.
Ao virar-se para voltar, assusta-se com um adolescente observando-o a dois metros de distância.
“Fica quieto, senhô. Só quero o dinheiro”.
Ele não sabe qual a idade do garoto. É somente um emaranhado de carne suja, corrompida pelos vícios, moldada e costurada em tantas decepções. Os olhos não viam amor, tampouco qualquer sentimento feliz, somente a sombra do mundo que proibia qualquer comiseração. Cabelo sujo cuja história jamais sentiu o macio da mão materna. O garoto era apenas um resultado, um experimento falho.
“Não tenho.” Ele responde temeroso.
O garoto retira uma faca do bolso e aponta, desconfiado e confuso. Algo em sua constituição revelava o torpor de alguma droga.
“Então me passa a aliança, tio”
O homem toca de leve a arma dentro do bolso. Pensa em usá-la e acabar de vez com o ódio. Porém os olhos cheios de lágrimas da esposa surgem na lembrança. Queria arrancá-la daquela solidão dos sem-esperança.
Faria a coisa certa.
“Não sai.” Ele responde estendendo a mão com a aliança. “Tire você.”
O garoto olha para a faca e, por um segundo, um lampejo de lembrança fulgura em seus olhos entorpecidos.
Segura a mão do homem e começa a cortar.