Cavalgada das Valquírias
Nossa família tinha por hábito toda 2ª feira à noite reunir-se na casa dos meus pais para o Culto do Evangelho no Lar, que carinhosamente chamávamos de “rezinha”.
Era uma reunião íntima quase sempre com a presença dos meus pais, minha irmã e seus dois filhos, eu, minha mulher e meu filho.
Com um fundo musical bem suave meu pai iniciava sua prece de abertura sempre com palavras inspiradas e vindas do fundo do coração.
A seguir cada membro presente lia uma passagem de algum livro espírita e, se desejasse fazia algum comentário. Era uma oportunidade abençoada de a cada semana nos encontrar e solidificar ainda mais os laços de afeto e amor.
Quando a rezinha começou meu filho tinha uns 5 anos e os primos Maurício e Gustavo 6 e 9 anos, respectivamente. Os dois mais velhos já sabiam ler e cada um tinha o seu livrinho. O meu filho Rafael ainda estava sendo alfabetizado e minha mulher para não deixar nosso filho ser o diferente fez um caderninho com três orações: Pai Nosso, Ave Maria e Santo Anjo. O Rafinha rezava em casa toda a noite uma dessas orações ao dormir. Já sabia as três de cor e salteado. Como não queria fazer feio entre os primos quando chegava a sua vez na rezinha, minha mulher abria o caderninho e dizia qual a oração que seria lida. Rafael olhava para o caderninho com firmeza e fingindo ler dizia sem nenhum erro a oração escolhida.
Só que um dia o caderninho estava de cabeça para baixo e o Rafael na maior inocência leu sem nenhuma hesitação a oração. Apesar do momento solene os risos foram inevitáveis.
O Maurício sempre sério também era outra figura rara. Quando chegava a hora de fazer algum comentário ou pedido de prece a alguém necessitado, começava o Maurício a desfiar com suas histórias compridas que se tinham início, o fim era impossível de se prever.
São boas as lembranças daqueles tempos. Eu, Ana Lúcia e o Rafael continuamos a fazer a rezinha também nas segundas, mas agora em nosso apartamento. Tenho certeza que meu pai, agora em espírito, assiste algumas delas. Pena que não tenho mediunidade ostensiva para ver o seu sorriso único e o seu olhar cheio de ternura. Mas sinto algo diferente no ar, e para melhor.
E a Cavalgada das Valquírias? Já ia me esquecendo.
Certo dia minha mãe resolveu mudar a música de fundo da oração. Estava muito batida à anterior, era preciso inovar. Só não foi feliz na escolha, um trecho de ópera de Richard Wagner chamada “Cavalgada das Valquírias”. O ritmo infernal faz as músicas de Ivete Sangalo parecer verdadeiras marchas fúnebres.
O pobre do meu pai mesmo num esforço sobre-humano não conseguiu prosseguir a prece inicial com aquela torturante música e fez um comentário do tipo: música animada esta hein! A mensagem foi imediatamente captada, o som foi desligado e ele então conseguiu finalizar a prece. Desnecessário dizer que a Cavalgada das Valquírias foi definitivamente banida da rezinha.
Pai, não posso mais ouvir essa ópera sem abrir um largo sorriso no rosto e no coração e imediatamente lembrar-me de você. E a grande lição que ficou para todos nós foi a sua paciência e bom humor para lidar com as dificuldades da vida, seja ela uma simples cavalgada ou um problema aparentemente sem solução.