MEMÓRIAS DE UMA BONECA DE PANO II Anjo da Guarda
Anjo da guarda
_Carolina! A Carol de seu José e de Dona Maria! Era assim que todos reconheciam aquela menina de pés descalços e cabelos assanhados.
Carolzinha, (assim eu a chamava) aos onze anos morava em uma casa simples juntamente com seus pais e dois irmãos. Caçula dos três filhos e visivelmente abandonada pelos seus a menininha vivia pelas calçadas e ruas a pedir de comer aos passantes e vendedores ambulantes daquele local. Muitas vezes recebeu o “não” com o peso maior do que o seu corpinho magrelo poderia suportar e foram muitas as ocasiões que a vi se curvar e chorar durante horas a sua fome.
A lua já dava o ar da sua graça quando o destino me uniu a Carolina. Eu estava coberta de restos de alimentos e papelões no momento em que fui arrancada daquela lata de lixo. Cheirava a vômito. O odor era insuportável, porem ela parecia não sentir. Segurou-me carinhosamente e me abraçou. Seu coraçãozinho batia num ritmo de escola de samba. Foi inesquecível. Ela fez de mim o seu único bem durante os poucos anos da sua vida.
Quem não a conhecia? Era apenas uma criancinha quando começou a sair sozinha por aquelas avenidas. Três a quatro anos, não mais que isso. Seria muito engraçadinho se não fosse trágico. Pequenina! Pernas curtas e grossas, dedos roliços e sempre estendidos a apontar o que queria e a retirar os cachinhos dourados dos olhos num gesto repetitivo. Era um anjinho com os olhos da cor do céu. Um anjo bem lampeiro. Até a mim, um ser inanimado, a danadinha conseguia deixar exausta. Seu José espancava a filha constantemente afastando-a de sua casa, forçando-a a fazer das marquises o seu puxadinho, um cantinho para armar a sua cama de papelão. Ela adormecia num sono inocente; ali eu a via sorrir. Linda Carolina! Supondo que em seus sonhos ela era feliz, velava seu sono como o oficio sagrado dos deuses. Não permitiria que coisa alguma a perturbasse, a arrancasse de uma paz profunda devolvendo-a ao relento, a pobreza desmascarada, a sua solidão e abandono.
Sempre mal vestida e despenteada, nada mudou, o tempo é que passou e a menina cresceu prometendo um lindo corpo de mulher. _ Puxou a dona Maria! Comentavam as vizinhas. Agora vejo aquele Senhor parado diante dela, cheio de más intenções. Seu rosto magro de traços finos escondia suas más intenções.
_Hum! Você é uma gracinha! Já pode agradar a um homem! Está com fome? Hein? Vou te levar a minha casa, você quer ir comigo? A Carolzinha se mantinha com os olhos azuis arregalados e assombrados diante daquela criatura. Um individuo aparentando seus cinqüenta e cinco anos de idade. Cabelos grisalhos, olhos castanhos e pele clara. Vestia paletó e usava gravata. Tinha uma maleta em uma das mãos e na outra um brinquedo que estendia em sua direção. _ Pra mim? Retrucou a garotinha. _ Sim, (confirmou ele passando o olhar pelos arredores e num tom apressado) é pra você! Agora venha comigo. Rápido!
Nunca houve um dia que eu não estivesse nos braços da carolzinha. Me refiro a anos ao seu lado, sofrendo e chorando juntas. Ela não poderia saber, mas eu a amava com todas as minhas forças e naquele momento eu suplicava aos céus por um milagre: falar! Boneca de pano querendo ser gente, só isso!
Ele, impaciente, pegou-a pelo braço e a arrastou ate o seu carro estacionado a três passos dali. A Carol se agarrava a mim enquanto ele dava partida em alta velocidade. Eu queria abraça-la e dizer-lhe que não estava sozinha. Por um momento pensei que ela soubesse. Tive a impressão que o seu olhar encontrou o meu.
Carolina já era uma mocinha. Onze anos! Faltavam poucos dias para completar doze e entrar de vez na puberdade. Uns dois meses atrás, se não me falha a memória , depois de uma tarde difícil com o seu pai, ela saiu de casa gritando que nunca mais voltaria; falava isso com a certeza de quem já sabia o que queria, próprio de uma mente madura, decidida e acima de tudo, cansada de sofrer. Onde já se viu uma adolescente sem amigos? Sem alguém para dividir suas descobertas, tirar suas duvidas e até mesmo ficar de mau, ficar de bem, de mau, de bem... Mandar aqueles bilhetinhos cheios de erros ortográficos sem deixar de exprimir uma avalanche de sentimentos confusos porem reais, vivos e pincelados de malicia inocente? Eu vi!
_ Me larga, me larga! Aquelas palavras saiam baixas e firmes da boca de uma menina calejada e inacreditavelmente preparada para enfrentar o mundo. “Solta ela”, gritei por varias vezes, porém ele não podia me ouvir. O carro estava estacionado de frente a uma mansão a qual se escondia por detrás de arvoredos e jardins encantadores que foram se revelando a cada vez que nos distanciávamos do portão enorme que os separava da rua. O lugar era imponente! Ela foi arrastada pelo braço e levada até um quarto que ficava no subsolo da mansão.
Tudo aquilo era sul real. Uma jaula para conter a fera que foi despertada na Carolzinha. Não haviam janelas, somente o básico, isso, na cabeça doentia daquele homem. Uma cama, latrina e chuveiro.
Jogou-a na cama feito um bicho e lhe acorrentou as mãos na cabeceira sem ao menos exprimir um som nem mudar a fisionomia do seu rosto. Frio e indiferente ao olhar perplexo da garota, virou as costas e saiu da “jaula”, trancando a porta por trás de si.
Depois do encontro na lata de lixo, aquele também passara a ser um momento inesquecível. Era o horror que saltava-lhe aos olhos. Nós duas sabíamos que seria o fim. Mais uma vez as lágrimas lubrificavam meus olhos de retalho preto. Exausta de mais um dia difícil ela adormeceu. Enquanto isso, eu permanecia naquele chão frio para onde fui lançada.O desespero tomou conta do meu ser quando ele retornando, parou diante da cama e a olhou durante alguns minutos. As mãos dela ainda estavam acorrentadas. A posição do seu corpo revelava as curvas próprias da puberdade. O vestido suspenso deixava a vista sua calcinha surrada e uma tímida sexualidade. Ele a desejava! Temi pela Carolzinha que nesse momento sonhava o seu sonho lindo. Aquele homem, ainda que tomado de desejo, não a tocou retirando-se em perturbações. Sentei-me aos seus pés e novamente velei-lhe o sono.
Os pássaros cantavam anunciando o amanhecer quando o som de passos firmes se tornava mais próximo daquele cativeiro. Ele adentrou a porta com uma bandeja e a colocou ao lado da cama.
_ Acorde! Precisa se alimentar. Enquanto falava tirava-lhe a corrente. A menina permanecia estática; fingia ressonar.
_Vamos garota, acorde! Acariciava-lhe as pernas com volúpia e estupidez. Eu vi a insanidade em seus olhos. Carolzinha levantou numa rapidez alcançando o copo de café e o atirou na face do seu algoz, que desnorteado pela quentura na pele, rodopiou perdendo o controle da situação. Ela apanhou-me do chão e correu para a saída, subiu a escadaria e antes que pudesse atravessar o jardim ele a segurou pelos cabelos e arrastou de volta. Perdeu seus sentidos depois que foi espancada. Jogou seu corpo inerte sobre o chão, arrancando-lhe a calcinha lambeu-lhe o sexo como um cão sarnento. Ele a matou depois de violentá-la brutalmente. Fui jogada num saco ao lado do seu corpinho sem alma e juntas lançadas num matagal... Anjo da guarda? Não! Só uma boneca de pano!