Otinho

Otinho

A história que vou narrar, um pouco da vida de Oto – o Otinho como era conhecido, só tomou forma, consistência e sentido porque residíamos numa pequena cidade no interior do Rio Grande do sul, em meados do sec. XX. Numa grande cidade, no burburinho veloz das suas multidões, os anonimatos são radicais e ninguém conhece nem convive com seus vizinhos. As pessoas passam na vida sem serem notados. A nossa cidadezinha era nossa e todos nós nos conhecíamos e nos queríamos bem. Os outros existiam e prestávamos atenção neles, convivíamos com eles.

Otinho, no entendimento geral da população que morava perto da praça, da garotada principalmente, era um abobado. Com uma paralisia cerebral parcial que afetou, de maneira mais acentuada, o andar e o falar, bem como a percepção lógica da vida, estava sempre presente nas comemorações da rua, nas festas populares, era uma figura indispensável.

Assim era conhecido no bairro. Era o querido por todos mas, ao mesmo tempo, num entendimento pervertido do carinho que se ostentava para com o deficiente ele era o objeto da chacota, o instrumento das brincadeiras mais pesadas, ninguém se importando, no ensejo da farra, se os sentimentos do menino desamparado estavam ou não sendo ultrajados. Não era maltratado, apenas era usado para a diversão e o riso de todos...

Morava com a mãe, lavadeira e passadeira, mulher disposta capaz de sustentar a casa, os três filhos e suportar, calada e triste, a maneira como seu filho mais velho era usado pela comunidade: “pelo menos ele se diverte e o tempo passa.. que mais posso fazer por ele, tenho de trabalhar...”. Nossas mães, todas, eram suas clientes. O pai sumira há muito tempo. Moravam num barraco no fim de uma ladeira por onde passava uma sanga de águas limpas, para o nosso deleite pois ali, todos nós, nos dias de calor, tomávamos banho e o Otinho não perdia estas oportunidades de se divertir.

Freqüentara a escola muito tempo mas, em todos aqueles anos, mal aprendera a ler e assinar seu nome. As quatro operações só as mais simples de soma. Era uma escola pública não especializada para lidar com deficientes – o carinho e a dedicação das professoras sanaram, parcialmente, a precariedade pedagógica. Neste período que fomos contemporâneos, na escola, ensinamos muitos palavrões para o Otinho. Dizíamos sérios: “Quando não souberes responder diga merda, se perguntarem de novo diga cú, se gritarem contigo diga fio da puta...e comece a rir” e assim acontecia. Em pouco tempo as professoras aprenderam a não gritar nem a repetir perguntas...

Crescemos com o Otinho ao lado, um amigo estimado. Éramos dez garotos que morávamos perto da praça, o nosso grande e gostoso quintal. Gostávamos dele e o protegíamos das outras turmas que só queriam humilhá-lo, com suas brincadeiras. Nossas mães providenciavam roupas, sapatos usados e revistas bem coloridas cheias de figuras, que lia com alegria por horas, totalmente absorto naquele mundo mágico que era só seu e dos personagens de Walt Disney. Magro, quase não comia, gostava muito de sorvete, que sempre que podíamos providenciávamos. Gostava de goiabas. De vez em quando gargalhava esganiçado como uma criança excitada.

Adultos, já trabalhando no Banco, a nossa turma foi diminuindo e só os que continuaram a morar perto da praça encontravam, cada vez menos, o Otinho. No bar, agora tomávamos chope, comiamos pasteis e cuidávamos de dar guaraná para o nosso amigo, que também se deleitava, sorrindo, e, de vez em quando, por necessidade, não para escandalizar, soltava arrotos pavorosos. Não falava, não participava da conversa – escutava com atenção. Com os namoros, noivados, casamentos e filhos que nasciam o Otinho foi sendo esquecido e lá ficou cada vez mais só, caminhando em volta da praça, perdido nas suas visões, bamboleando o seu andar à procura de alguém para brincar. As novas gerações não tinham tempo para ele, temiam-no, para sua surpresa: “venham cá, vamos jogar bola, me dêem um sorvete, vamos tomar banho na sanga”, mas seus apelos não surtiam efeito, as brincadeiras, os jogos, eram outros que não mais conhecia nem entendia. Rareavam as doações de roupas e sapatos e ele andava, nos últimos tempos, muito mal vestido e sujo. Mal o víamos. Um dia, já quarentões, todos nós bancários circunspectos, chegou a noticia de que o Otinho morrera de pneumonia e seria enterrado naquela tarde. Pedimos licença ao gerente e lá fomos nós para o cemitério, com saudades e algum remorso pelo abandono a que relegáramos o nosso companheiro de infância e adolescência, sem muita consciência do mal que havíamos praticado a uma pessoa tão carente. Sempre acontecia alguma coisa, sempre havia algo mais urgente para nos ocupar, e pouco, muito pouco tempo restava para pensar no antigo amigo ou para ir procurá-lo para tomar um guaraná ou um sorvete. Fora um tempo bom que já passara - agora tínhamos coisas mais importantes com o que nos preocupar...

Caixão simples, um padre apressado na encomendação do corpo, poucas flores, a mãe triste chorava, os dois irmãos com suas mulheres, quatro sobrinhos assustados, três vizinhas caladas, também lavadeiras, e nós, os cinco fieis amigos restantes e distantes.

Saímos dali e fomos para o bar do Schmitt comer pastel e beber chope. Foi um encontro em memória do Otinho. Relembramos suas histórias e nossos bons tempos de rapazolas – ele fora uma parte da nossa vida, da nossa infância. Então, começamos a falar lembrando...

A Diretora da escola era uma fera. Chama-se Raimunda Não gostávamos dela. Exigente com o guarda-pó que usávamos como uniforme, nos queria penteados, limpos e disciplinados. As professoras eram boazinhas, gostávamos delas, principalmente da D. Yolanda, a minha professora – eu a amava, a primeira definitiva e radical paixão da minha vida. Ela cuidou do Otinho por anos, com imenso carinho.

Combinávamos com o Otinho, não todo dia, nem todo o mês, mas de vez em quando, para que quando a Diretora saísse da escola, (todas as professoras caminhavam – não existia isso de cada uma ter um carro, naquela época dos finais do anos de 1940), que ele fosse, pela rua, um pouco atrás da Diretora, rebolando fortemente. Se ela visse ele deveria correr e gritar: “Dona Raimunda, feia de cara e bela bunda..”. Era o máximo. Riamos. As pessoas nas casas e nas ruas, as professoras e funcionárias, ficavam chocadas com tanta falta de educação. Comentava-se no jantar: – “o coitado nem sabe o que diz, são esses moleques do último ano que ensinam essas porcarias para a criatura...”. Deixávamos os últimos anistas levarem a culpa e ficávamos calados, deliciados com a confusão que causáramos.

Poucos anos depois, coroinhas da paróquia, preparamos uma bela e elaborada Semana Santa. Haveria até uma representação ao vivo do martírio do Senhor. Otinho foi escolhido para representar Jesus. O padre não gostou da idéia, mas insistimos muito, seria uma forma de prestigiar e alegrar o nosso amigo. Seria o seu momento único de glória pelo destaque que lhe fora concedido. Não sabíamos o que iria acontecer... Começou com a procissão levando Jesus para ser julgado por Poncio Pilatos. Otinho com uma tanga, uma coroa de espinhos que fazia coçar sua cabeça, (que era coçada com desenvoltura pelo prisioneiro), e muito mercúrio cromo espalhado pelo corpo imitando sangue. Descalço, caminhava amarrado e puxado por nós, soldados romanos, pelas ruas do bairro. A garotada, que não participara dos ensaios, mas que conhecia o Otinho, jogava pedras pequenas no pobre Jesus que não censurava sua reação de revolta para com as pedradas não programadas e, em alta voz, praguejava em bom estilo: “João Pedro, fio da puta, vou contar prá o teu pai; Eduardo seu viado eu te pego e te cago de laço disgraçado; Aninha ratazana dadeira de cú, tu não me escapa, vou falar com a tua mãe”, e assim foi até chegar ao pátio fronteiro da Igreja. Deitado numa cruz, pedimos a ele, enquanto o amarrávamos, que ficasse quieto, não falasse mais nada. Aí, não sei quem, um engraçadinho irresponsável, ao invés de colocar guaraná na esponja que simularia o fel oferecido ao Senhor, colocara cachaça com um pouco de mel. Otinho abocanhou a esponja e do alto lá da cruz, amarrado para não cair, apoiado numa plataforma, berrava para todo o estado ouvir: “mais fel, eu quero mais fel, mais fel”. Nunca um Cristo bebeu tanto fel como naquela noite... Bêbado foi deitado num caixão para a procissão do Senhor Morto. Tudo ia bem até que o cortejo passou debaixo de uma goiabeira que ostentava, num dos seus galhos, a mais bela fruta da estação. O senhor morto ressuscitou antes do terceiro dia e uma mão saiu do caixão, arrancou a goiaba que foi comida por um Jesus alegre e risonho que deitado, todo sangrando de mercúrio cromo, abanava para multidão, mastigando a goiaba, todo feliz. Até o velho vigário riu da cena.

Os bancários, os trabalhadores de uma maneira geral, quase não faziam greve naquela época. Apenas alguns panfletos eram distribuídos pela cidade, sorrateiramente, pedindo aumento de salários, menos horas de trabalho, melhores e mais dignas condições de trabalho. Era o máximo de protesto que, mesmo assim, escandalizava a pequena e ordeira cidade, assunto garantido para meses de conversas. Então, alguém, teve a idéia de chamar o Otinho para discursar, em frente ao Banco, na hora da saída do senhor gerente. Foi fantástico o espetáculo. O gerente querendo sumir – não sabia se voltava para o Banco ou se se metia na primeira porta para se esconder do disparatado discurso que o Otinho não conseguira decorar, mas que improvisava com suprema maestria: “excelência, excelência pare e ouça a voz dos trabalhadores impolhados. Pêra aí, ôce tem que parar porra, pare aí seu puto, escute, seja educado seu viado, só porque é gerente não pode ir saindo assim de fininho, fingindo que não escuta. O dinheiro é pouco, o trabalho é muito, os ganhos do Banco são enormes – aonde tu si meteu disgraçado. Espera aí qui tem mais – tem o sábado qui a gente não quer mais trabalhar, tem di comprar ventilador qui o calô tá dimais i só na tua sala tem... Tem di limpar os vasos qui fedi muito e não dá vontade nem di mijar, escuta escumungado, a gente também quer bebedor pois a água da pena dá caganeira. Ouviu seu puto. Vai ou não vai atender nossos pedidos, seu lazarento miserável”. E o gerente, já longe, nem mais escutava, mas o mal estava feito – a cidade toda, no dia seguinte falava do ocorrido rindo. Até algumas faixas surgiram no centro da cidade, perto do Banco: Otinho prá Deputado. Os doutores da cidade e demais gerentes do comércio local confabulavam medrosos: – “os comunistas estão ficando ousados, atrevidos, um desrespeito às autoridades, é preciso prendê-los todos, até o Otinho foi arregimentado como um agitador, é demais”...

Otinho amava o Exercito nacional. Ser soldado era o seu sonho maior. Não entendia porque não podia. Não aceitava ser afastado das paradas do 7 de setembro e das manobras militares nas cercanias da cidade – não deixavam ele entrar nos acampamentos nem ficar vendo os soldados correrem e rastejarem, simulando um combate. Alguns recrutas disseram para ele ficar na rua esperando o general entrar no quartel com o seu carro e que ele gostava de dupla continência, com as duas mãos. E para raiva do oficial, de vez em quando era surpreendido: - lá estava o Otinho descalço, perfilado, fazendo continência com as duas mãos para o “seu” general. Num 7 de setembro, preparamos uma faixa verde amarela com os dizeres em azul: “menino do regimento”. Arranjamos uma usada capa de lã, uma pelerine preta e preparamos um chapéu de papelão, enfeitado com penas de peru e levamos o Otinho para a avenida, antes de se iniciar a parada. Muita gente – ficamos esperando. Passou a banda marcial tocando um dobrado. Empurramos o Otinho, com sua faixa, capa e chapéu, devidamente instruído para que ficasse bem no meio da avenida, atrás da banda, na frente do general que com sua farda de gala, condecorações no peito, espada na mão, montando um belo cavalo branco, comandava o desfile. E assim aconteceu. Os militares fingindo que não viam, o povo aplaudindo, com entusiasmo, a apresentação do Otinho, que desfilava com uma posse orgulhosa nunca antes vista, descalço, roupas simples e seus complementos – capa, chapéu e faixa - marchando feliz da vida no dia da pátria. Lá se foi ele por toda a avenida, na frente das tropas – o mais belo 7 de setembro que a cidade jamais presenciara, assunto para muitos anos de conversas e comparações.

Finda nossa sessão de despedida, fui para casa caminhando pela velha e conhecida praça. Quase toda escura pela permanente falta de iluminação. Acredito que vi o Otinho uma vez mais, de capa pelerine, chapéu preto de bico com penas de peru e uma faixa amarela com dizeres em azul. Marchava firme o meu amigo. De repente, o canteiro central, com o sempre quebrado chafariz, cercado de azáleas, se abriu num lindo espetáculo de águas coloridas – como se fosse uma sanga mágica - luzes em profusão, um dobrado solene e marcial ao fundo, uma escada linda de mármore branco se abrindo em direção ao céu. E lá estava o Otinho subindo, sem bambolear, ereto, sorrindo muito e estendendo a mão para outras mãos que o ajudavam a receber uma bela goiaba e um copo de guaraná. Antes que tudo voltasse ao normal, à monotonia de sempre, na praça quase escura ouvi-se um sonoro arroto e um gargalhar esganiçado de uma criança contente.

Otinho chegou ao céu, disse feliz. Então fui para casa dormir.

Eurico de Andrade Neves Borba

Escritor, ex Professor da PUC RIO, ex Presidente do IBGE, reside em Ana Rech-RS.

Eurico de Andrade Neves Borba
Enviado por Eurico de Andrade Neves Borba em 26/08/2010
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