Dorinha? Criatura de Deus, quanto tempo que não lhe vejo, mulher! Esse mundo é pequeno mesmo! Mas que bom que eu peguei esse ônibus! E que surpresa encontrar você aqui! Que é que você está fazendo aqui, menina? Deixa eu adivinhar: também não aguentou ficar lá na terrinha, né? E você está onde? Os meninos como vão? Eles vieram Também? Por que vocês não me procuraram? O seu Pereira tem meu endereço, que quando vim do enterro da Noquinha, tadinha, eu deixei lá. Se bem que já faz uns cinco anos, isso...
Mas eu continuo no mesmo lugar. A Rosineide casou, eu já sou vó, acredita? Meu netinho é uma riquezinha, você precisa ver! Esperto demais! Eu fico toda boba porque ninguém diz que sou avó. Graças a Deus os meninos estão todos trabalhando. Se você ver as crianças você nem vai conhecer mais. O Rogério ficou um galalau de mais de metro e oitenta. Puxou o pai. Fez curso de padeiro e trabalha em um supermercado aqui da zona Sul. O Ricardinho sempre foi mais mirradinho e mais compenetrado, você sabe. Gosta de estudar e no computador ninguém vence ele não. Fez curso e tudo, e agora trabalha com telemarketing nas Casas Bahia. E foi uma beleza quando ele foi para lá, porque facilitou da gente comprar as coisas lá para casa. Até computador ele comprou. A namoradinha dele também trabalha lá, sabe? É caixa. Fico cismada porque ele ainda é muito novo, mas está namorando firme. Eu não me meto não. Cá entre nós, ela é branquinha, sabe? Pois é...
E você já está trabalhando? Você acredita que eu trabalho na mesma casa desde que eu vim? Eles lá me tratam muito bem, sabe? Me tratam como se eu fosse da família. A dona Cacilda é pintora. Pintora famosa sabe? De vez em quanto viaja para o exterior para fazer exposição dos quadros. Um mais lindo do que o outro. É muito boa! O marido é aposentado, mas era empresário. Gente endinheirada, de família de nome tradicional, sabe? O casal se dá muito bem, apesar de às vezes eu nem entender muito pois que ela vive viajando para um lado e ele para o outro. Eles falam que é conflito de interesse, pois ele é bem mais velho que ela. Eu até guardei esses nomes porque achei bonito. Quando me separei daquele desgramado do Sebastião ficou foi no conflito mesmo, sabe? Você não sabia? Ô gente, mas em que mundo que você vive? Todo mundo ficou sabendo! Pois estou eu e os meninos tentando assentar a vida, o Sebastião danou foi de beber porque não conseguia emprego. Chegava tarde todos os dias e um dia se meteu a besta comigo. Você já viu o tamanho desse braço aqui, né? Oitenta de peso, né? Apanhei, mas bati um bocado! Cheguei no trabalho dia seguinte de olho roxo, mas quem tem padrinho não morre pagão. Dona Cacilda me mandou levar na delegacia. Tem a Lei Maria da Penha hoje, né? Mulher que apanha de homem só apanha porque gosta de apanhar. Se procurar a delegacia a lei protege. Você me conhece, nunca levei desaforo para casa e vou apanhar de homem? É ruim, hein? Nem sei para onde ele anda e nem quero saber...
Mas, também nunca quis saber de homem mais não. Aí você vê, dona Cacilda ajudou a gente a terminar nossa casinha, o marido encaminhou os meninos, até que tudo acalmou. Não foi melhor assim? E tem também o seu Mauro, o cunhado lá da patroa. Ele sofreu um acidente e teve que amputar a perna direita. Mas ele usa prótese, sabe? É que está velhinho e já não pode andar muito. Dizem lá que ele foi um homem muito bonito. Dá para perceber mesmo. O rosto dele ficou meio deformado, mas dá para a gente ver que era bonito. Não casou, não, mas tem um filho que está com a mãe no exterior. Ela não quis saber dele não porque dizem lá que o que tinha de bonito seu Mauro tinha de safado. E devia ser mesmo, porque até hoje ele gosta de falar umas besteiras, sabe? Outro dia me pediu para fazer macarrão. Eu até estranhei porque lá não come essas coisas assim não, sabe? Mas, aí, perguntei como ele queria o macarrão. Você sabe, o danado com um sorriso mais cínico, respondeu que macarrão e mulher ele gostava só de um jeito: ao alho e óleo. Você já viu uma coisa dessa? No início eu ficava meio cismada com as brincadeiras dele, mas depois acostumei. Toma uísque o dia inteiro, o danado. É uísque, tremoços e pistache. Isso não pode faltar. E tem o fisioterapeuta que quando todo mundo viaja até dorme com ele lá. Vai até cabeleireiro cortar o cabelo dele. Eu fico rindo que ele fala que não melhora porque todo mundo que trata dele é macho. Não pode faltar nada para ele, sabe? Recomendação da dona Cacilda. E eu tenho um carinho grande por ele: anda todo perfumadinho, sabe? Todo limpinho. Mas também eles deram sorte comigo. O povo por aqui não gosta de idoso e de criança, não. Maltrata, bate, sacode. Gente ruim! Você vai se dar bem se arranjar uma casa para trabalhar igual que eu arranjei. Gente de confiança, compromisso e boa. Se você quiser eu posso até ajudar, agora que eu lhe achei, né? O salário é bom, carteira assinada. Lá em casa é bem grande, sabe, mas eu também sou esperta. Gente que veio da roça acostumada com as estripulias da vida difícil que a gente passava lá, né? Isso aqui é pinto para nós. E depois a gente tem que garantir a aposentadoria, não é mesmo? Com seu Mauro disse outro dia, que eu mereço porque sou uma negra de alma branca. E eu bem que perguntei para ele: “ô seu Mauro, o senhor, por acaso, já viu alguma alma? E se viu, alma tem cor? Os brancos por acaso têm alma vermelha, amarela, cor-de-rosa?” Ele ri às gargalhadas comigo.
Ô Dorinha, eu já estou quase chegando, minha filha. Eu salto aqui e depois pego outro ônibus que me deixa na porta de casa. Aqui, ó, esse número é do meu celular, Você liga para mim que eu mando o Ricardo pegar você para ir lá em casa. Ele tem um fusquinha, velhinho, mas tem. Foi bom demais encontrar você aqui, mas vou esperar você lá para almoçar com a gente. E aí a gente põe a conversa em dia, né? Tem tanto tempo que não vou lá na terrinha. Queria saber do povo lá. Da Tereza, da Amélia Gato, da Tuninha. Você fica com Deus, viu Dorinha? Espero você, não esqueça! Dá um abraço nos meninos!
Nossa Senhora, difícil é passar por esse povo todo até saltar! Tem que por é mais ônibus nessa linha, motorista! Deus nos acuda! Dá licencinha, moço?
Mas eu continuo no mesmo lugar. A Rosineide casou, eu já sou vó, acredita? Meu netinho é uma riquezinha, você precisa ver! Esperto demais! Eu fico toda boba porque ninguém diz que sou avó. Graças a Deus os meninos estão todos trabalhando. Se você ver as crianças você nem vai conhecer mais. O Rogério ficou um galalau de mais de metro e oitenta. Puxou o pai. Fez curso de padeiro e trabalha em um supermercado aqui da zona Sul. O Ricardinho sempre foi mais mirradinho e mais compenetrado, você sabe. Gosta de estudar e no computador ninguém vence ele não. Fez curso e tudo, e agora trabalha com telemarketing nas Casas Bahia. E foi uma beleza quando ele foi para lá, porque facilitou da gente comprar as coisas lá para casa. Até computador ele comprou. A namoradinha dele também trabalha lá, sabe? É caixa. Fico cismada porque ele ainda é muito novo, mas está namorando firme. Eu não me meto não. Cá entre nós, ela é branquinha, sabe? Pois é...
E você já está trabalhando? Você acredita que eu trabalho na mesma casa desde que eu vim? Eles lá me tratam muito bem, sabe? Me tratam como se eu fosse da família. A dona Cacilda é pintora. Pintora famosa sabe? De vez em quanto viaja para o exterior para fazer exposição dos quadros. Um mais lindo do que o outro. É muito boa! O marido é aposentado, mas era empresário. Gente endinheirada, de família de nome tradicional, sabe? O casal se dá muito bem, apesar de às vezes eu nem entender muito pois que ela vive viajando para um lado e ele para o outro. Eles falam que é conflito de interesse, pois ele é bem mais velho que ela. Eu até guardei esses nomes porque achei bonito. Quando me separei daquele desgramado do Sebastião ficou foi no conflito mesmo, sabe? Você não sabia? Ô gente, mas em que mundo que você vive? Todo mundo ficou sabendo! Pois estou eu e os meninos tentando assentar a vida, o Sebastião danou foi de beber porque não conseguia emprego. Chegava tarde todos os dias e um dia se meteu a besta comigo. Você já viu o tamanho desse braço aqui, né? Oitenta de peso, né? Apanhei, mas bati um bocado! Cheguei no trabalho dia seguinte de olho roxo, mas quem tem padrinho não morre pagão. Dona Cacilda me mandou levar na delegacia. Tem a Lei Maria da Penha hoje, né? Mulher que apanha de homem só apanha porque gosta de apanhar. Se procurar a delegacia a lei protege. Você me conhece, nunca levei desaforo para casa e vou apanhar de homem? É ruim, hein? Nem sei para onde ele anda e nem quero saber...
Mas, também nunca quis saber de homem mais não. Aí você vê, dona Cacilda ajudou a gente a terminar nossa casinha, o marido encaminhou os meninos, até que tudo acalmou. Não foi melhor assim? E tem também o seu Mauro, o cunhado lá da patroa. Ele sofreu um acidente e teve que amputar a perna direita. Mas ele usa prótese, sabe? É que está velhinho e já não pode andar muito. Dizem lá que ele foi um homem muito bonito. Dá para perceber mesmo. O rosto dele ficou meio deformado, mas dá para a gente ver que era bonito. Não casou, não, mas tem um filho que está com a mãe no exterior. Ela não quis saber dele não porque dizem lá que o que tinha de bonito seu Mauro tinha de safado. E devia ser mesmo, porque até hoje ele gosta de falar umas besteiras, sabe? Outro dia me pediu para fazer macarrão. Eu até estranhei porque lá não come essas coisas assim não, sabe? Mas, aí, perguntei como ele queria o macarrão. Você sabe, o danado com um sorriso mais cínico, respondeu que macarrão e mulher ele gostava só de um jeito: ao alho e óleo. Você já viu uma coisa dessa? No início eu ficava meio cismada com as brincadeiras dele, mas depois acostumei. Toma uísque o dia inteiro, o danado. É uísque, tremoços e pistache. Isso não pode faltar. E tem o fisioterapeuta que quando todo mundo viaja até dorme com ele lá. Vai até cabeleireiro cortar o cabelo dele. Eu fico rindo que ele fala que não melhora porque todo mundo que trata dele é macho. Não pode faltar nada para ele, sabe? Recomendação da dona Cacilda. E eu tenho um carinho grande por ele: anda todo perfumadinho, sabe? Todo limpinho. Mas também eles deram sorte comigo. O povo por aqui não gosta de idoso e de criança, não. Maltrata, bate, sacode. Gente ruim! Você vai se dar bem se arranjar uma casa para trabalhar igual que eu arranjei. Gente de confiança, compromisso e boa. Se você quiser eu posso até ajudar, agora que eu lhe achei, né? O salário é bom, carteira assinada. Lá em casa é bem grande, sabe, mas eu também sou esperta. Gente que veio da roça acostumada com as estripulias da vida difícil que a gente passava lá, né? Isso aqui é pinto para nós. E depois a gente tem que garantir a aposentadoria, não é mesmo? Com seu Mauro disse outro dia, que eu mereço porque sou uma negra de alma branca. E eu bem que perguntei para ele: “ô seu Mauro, o senhor, por acaso, já viu alguma alma? E se viu, alma tem cor? Os brancos por acaso têm alma vermelha, amarela, cor-de-rosa?” Ele ri às gargalhadas comigo.
Ô Dorinha, eu já estou quase chegando, minha filha. Eu salto aqui e depois pego outro ônibus que me deixa na porta de casa. Aqui, ó, esse número é do meu celular, Você liga para mim que eu mando o Ricardo pegar você para ir lá em casa. Ele tem um fusquinha, velhinho, mas tem. Foi bom demais encontrar você aqui, mas vou esperar você lá para almoçar com a gente. E aí a gente põe a conversa em dia, né? Tem tanto tempo que não vou lá na terrinha. Queria saber do povo lá. Da Tereza, da Amélia Gato, da Tuninha. Você fica com Deus, viu Dorinha? Espero você, não esqueça! Dá um abraço nos meninos!
Nossa Senhora, difícil é passar por esse povo todo até saltar! Tem que por é mais ônibus nessa linha, motorista! Deus nos acuda! Dá licencinha, moço?