Revelação

Todos os dias, ao fim do culto, ele deixava a família em casa e ia a alguma atividade cristã. Geralmente era uma visita a algum membro desgarrado, desvalido, desprovido de fé. Não demorava muito e em duas horas, no máximo, voltava ao seio da família. Geraldo Andrade era o famoso pastor Andrade. Homem alto, bonito, culto e para algumas mulheres da igreja um partido e tanto. Casado e com dois filhos ainda pequenos, esse ser celestial conheceu o evangelho há uns dez anos. Antes de se tornar um homem de Deus, tinha tido seus pecados o mais grave talvez tenha sido o fato de um romance rápido tê-lo deixado alucinado. Mesmo sendo letrado, o pobre diabo não conseguiu se livrar de um vício que o escravizara. Como ele mesmo disse em seu testemunho, quando novato no banco dos membros: “tinha que me alucinar para esquecer o grande amor perdido”.

Andrade vivia sempre calado. Só falava o necessário e não dava ar de suas atividades pessoais. Na igreja ou em casa, o homem era uma bênção, como dizem os protestantes em seu meio. Totalmente recomposto das sessões de drogas, Andrade agora só queria saber de pregar o evangelho e viver a sua nova vida. Amante do apóstolo Paulo, Andrade sempre tinha um verso pronto para justificar ou responder qualquer que fosse a questão. Mas a vida dos homens de Deus nem sempre são flores. Mesmo que preguem isso, o próprio Paulo se encarregou de alertá-los sobre a cruz e suas mazelas.

Era sábado de sol e a rua estava cheia. Em frente à casa do pastor, um grupo de jovens fazia uma espécie de “rua de lazer”. Jogos, brincadeiras, pipocas e muita música. No evento, também teria uma apresentação gospel e como o pastor era muito conhecido fora chamado para dar uma palavra aos mais carentes do evangelho. Estava tranquilo, vendo tudo da janela enquanto se preparava para a apresentação.

De repente, duas mulheres passam correndo em frente a casa e somem no meio da multidão. Andrade não dá muita importância e continua assistindo ao espetáculo e agora era um grupo de "hip hop" que se apresentava. Uma gritaria e um alvoroço parece mudar a rotina tranquila da festa e o povo se agita. As moças da correria começaram uma discussão com outra pessoa. As meninas agarraram a terceira mulher e começaram uma sessão de espancamento. Batem, xingam, praguejam.

Da sua janela Andrade apenas observa e não se contendo mais resolve usar sua influência pastoral para separar as moças e apaziguar tudo. Corre pela multidão e separando curiosos e atiçadores o pastor se aproxima do evento. Uma das moças está com uma faca na mão e acidentalmente fere o homem de Deus. O golpe o atinge no peito e ele cai mortalmente ferido. Uma imensa roda se abre e todos silenciam. As duas fogem, a mulher vítima se desespera, mas machucada não consegue ajudar e o homem morre mergulhado no próprio sangue.

– Mataram o pastor! Mataram o pastor!

Duas mulheres ouvem o grito e saem correndo. Uma vem da casa de Andrade e a outra de duas casas acima, do outro lado da rua. Ambas caem sobre o corpo e não se dão conta de quem são. Não se olham, nem se cumprimentam, apenas choram a perda em comum. Chega a polícia e o cordão de isolamento está feito. O corpo é coberto, alguém lê um verso de Paulo: ”...Porque a tristeza, segundo Deus, opera arrependimento para a salvação da qual ninguém se arrepende; mas a tristeza do mundo opera a morte.” (2 Coríntios 7:10.)

Era quase meio-dia. O crime acontecera duas horas antes e as duas mulheres não se olharam e nem se perguntaram nada durante o tempo da perícia. Um policial avistou as duas de longe e ouvindo dizer que uma era a esposa foi buscar informações.

– Quem é a esposa?

– Sou eu. Disse Ilma, transfigurada pela tristeza.

– E a senhora, quem é? - Quis saber o homem da lei.

– Aquela por quem ele esperava todas as noites.

A outra mulher, discreta e escondida, durante mais de cinco anos, era Helena. A ovelha desgarrada, a pecadora, messalina, despudorada, puta de entranhas quentes. Aquela por quem aquele filho de Deus, o pastor, subia nas paredes e descia aos infernos. Sua droga e vício, seu segredo exposto. A mulher que o entregara ao pecado antes, durante e depois. Calada e resignada chorava seu morto sem sequer saber se tinha esse direito.

VALBER DINIZ
Enviado por VALBER DINIZ em 20/08/2010
Reeditado em 11/01/2012
Código do texto: T2449162
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