Eu vi rostos.

Caminhar na chuva vendo as gotas em seu percurso retilíneo às poças imensas que se faziam naquela época na Praça São Luis- que possui um chão gritantemente desregulado- sempre fora um calmante fora da cápsula para mim. Eu sempre esperava avisarem na televisão que poderia chover naquele dia e ia até lá. As gotas pareciam um doce melado escorrendo pela minha pele suada: fazia sol à apenas alguns minutos atrás.

As folhas possuíam um ar renovado, como se quisessem gritar ao mundo que acabavam de ganhar na loteria da vida. Elas tinham a chance de receber mais uns minutinhos, ou dias, de beleza. Mesmo que todos naquela ocasião passassem apressados por elas. Menos eu. A unidade que elas construíam era tão forte, que já me perguntei se um dia humanos teriam algo tão mágico como aquilo.

Eu vi diversos rostos. Vi um casal sorrindo de mãos dadas sem pressa alguma encenando um filme romântico naquela chuva leve, admito que uma pontada de inveja se apoderou de mim, um soluço leve se apoderou dela e ele foi doce, rindo de mansinho afagando suas costas, eu me senti sozinha como nunca achei que seria capaz de me sentir, mas um casal de velhinhos extremamente irritados com aquela chuva, encolhidos em uma cobertura mínima com pequenas goteiras, na frente da pastelaria me fez desviar a atenção. Era doce, ainda que hostil a forma como eles aqueciam um ao outro. De longe, como quem procura não mostrar muito afeto, com rostos carrancudos, mas mostrando pingos pequenos como os de chuva, de amor eterno.

Vi uma meninada correndo sem medo das doenças que aquelas poças imundas poderiam os causar. Foi lindo, por que parecia que a fome de vida que eles estavam saciando era maior que qualquer sentimento já experimentado por mim. Eu ri ao ver seus pais, todos parecendo se morderem de raiva, gritando seus nomes com o último fio de voz que poderiam um dia precisar em questão de vida ou morte. “Gustavo, venha já aqui seu moleque desregulado!”. “Sabrina! Se você sujar estes sapatos como vai ao casamento guria?”. “Filha! Oh céus, o que faço com essa menina?”. “Paulo, filhinho confuso e danado que papai ama, se não vier já aqui suas férias vão passar tão devagar, limpando seu quarto imundo, que vai desejar jamais ter descoberto o que era chuva”. Me perguntei se ter filhos era uma boa idéia. Mas sei que no fundo, aqueles pais tinham apenas inveja e uma ânsia absurda de correr junto aos filhos.

Vi uma moça, pouco mais nova que eu, sentada em baixo de uma árvore cantando algum tipo de música. Vi seus lábios se moverem mais minha visão conturbada por causa da chuva negou minha curiosidade de saber qual era a música que ela ouvia, mesmo sem ouvir nada. Vi que ela estava demasiadamente confortável ali, como se precisassem daquele banho imundo a anos. Com pés descalços e um scarpin extremamente chique deleitado ao seu lado, senti seu coração bater tão leve. Percebi, dentro de um mundo nada egoísta e materialista, que aquela moça descobria um mundo novo.

Avistei também um casal em conflito, a correria do dia-a-dia prejudicara seu romance. Eu não os conhecia, contudo sabia que com aqueles trajes comportados até demais, um terno aparentemente caro, e uma discussão tão extravagante ignorando onde e como estavam não era apenas por ciúmes. Havia algo grande ali, e meus passos distanciaram-se deles. Senti dó daquela situação. Senti muito dó do acaso que os levara àquilo. Desejei que se separassem, sim eu desejei. Que ela o xingasse ali e agora mesmo. Que ele apenas saíssem sem dar sequer satisfação. Que fossem felizes pelo menos daqui uns anos, quando superassem a separação, mas que fossem.

Eu vi gente dançando. Sim, eu vi gente gritando coisas que eu me neguei a entender. Saber nada muitas vezes é melhor do que saber. Meus pés, minha roupa, tudo em mim era totalmente tomado por água. Uma leve brisa já era o suficiente para arrepiar até o último fio de cabelo da minha nuca. Como um medo que congela inteiro o seu corpo. Que faz teu coração bater rápido e devagar ao mesmo tempo. Eu vi pessoas como eu, apenas andando calados naquela chuva. Observando tudo que os outros faziam desejando poder fazer de tudo um pouco, mas centrado demais na concentração que não poderia fazê-los. Eu andei sozinha, acompanhando gente que eu nunca vi na vida. Eu aproveitei cada protagonista que passava por mim naquele filme imaginário, por que cada um que passava por mim, passava para nunca mais voltar da mesma forma. E os próximos, os que passariam logo a diante, mereciam tanta atenção quanto os passados. Então eu me fiz apenas câmera. Apenas atenção. Andei calada observando todo e qualquer movimento. Aquele silêncio que fizera fila para ser aproveitado e nunca foi. Aquele suspiro pesado de se livrar de um mundo inteiro em suas costas. Aquele segundo de eternidade que eu esperara uma temporada de sol inteira.

Eu vi, mesmo que debaixo de chuva, gente chorando. Em especial, um homem me chamou demais a atenção. Ele era alto com cabelos claros, mesmo que molhados. Sentado em um banco de cimento, negando-se a se importar com o quão molhado e feio poderia estar, ele chorava. Não faço a menor idéia do que levara ele a agir daquela forma, e sei que não seria nada racional esperar que ele fizesse um resumo do porque daquilo para uma mera estranha em uma praça, ainda mais debaixo daquela chuva. Que aos poucos começava a piorar. Passei devagar por ele, seus olhos me encontraram e me suplicaram por socorro. Senti uma força irrecusável nas suas lágrimas. Percorri poucos centímetros me sentindo tão derrotada quando ele. Olhei para trás e percebi que carregava uma foto, então percebi o que faltava: Vida. Ele perdera alguém.

Parei em frente a uma placa que dizia para não pisar na grama e vi diversas pessoas a ignorando, não me senti no direito de agir tal qual. Sentei-me no quebrado meio-fio que passava ao lado da placa e continuei a observar.

Um homem segurava um guarda-chuva praticamente grudado ao topo de sua cabeça, e aquilo me fez rir. Ele tinha, mais ou menos, seus trinta e seis anos. Falava alto em seu celular e andava apressado. Seu sobretudo preto me lembrava filmes de ricos demasiados que perdem todo o amor pela família, vida e por si próprio. Que se atenta tanto ao dinheiro e ao sucesso que se esquece que a vida é curta demais e que nada disso vai com ele para o túmulo. Senti uma vontade enorme de estender minhas pernas e vê-lo embaralhar-se nelas, mas não achei justo. Talvez ele se descobrisse novamente, como eu muitas vezes na vida, logo ali na frente. Notasse a chuva caindo e a brisa leve, e percebesse a beleza da simplicidade. Quem sabe.

Logo, a praça começava a ficar vazia e eu continuava lá, observando agora o desenho que as gotas faziam nas poças. Foi quando eu o vi.

Nossos olhos se encontraram em poucos e longos segundos. Ele sorriu para mim, talvez se perguntando por que diabos eu, uma mulher um pouco de tudo, mas nem extremamente bonita nem feia, mas toda molhada e bagunçada fazia sentada ao lado daquela placa. Eu sorri como um pedido acanhado de perdão pela visão estranha que ele estava tendo. Ele não tinha sequer um pouco daquilo que eu sempre desejei em um homem. Ele era meio torto, quase meio vesgo, meio feio também, mas não sei por que senti que meu filho seria todo meio como ele. Se há algo que definitivamente nunca sairá de minha cabeça, foi como seu sorriso inocente e incompleto me fez sorrir, da forma mais completa do mundo. Da forma mais inefável que existe. Um sorriso nosso.

Mas não consegui me imaginar ao seu lado, até tentei eu admito. Me perguntei se seria ele, o homem que eu juraria amor eterno, que me veria ler e não reclamaria do meu silêncio por que ele na verdade só desejava estar perto de mim, me vendo respirar. Se, seria ele que faria meu coração saltar pontes e se afogar em lágrimas. Se, seria ele, que acreditaria pela primeira vez na minha vida, no “na gente”, se teria calma em curar minha pressa e que me faria me acostumar com alguém sempre lá para me beijar quando algo ruim acontecesse. Se, ele não seria só mais um cara.

Mas, eu deixei que ele passasse. Por que ele aparentava ser tudo que poderia trazer-me a luz, e o sossego, não só em tempo de chuva, onde eu pediria e ele, provavelmente aceitaria, vir comigo a esta mesma praça, e seria injusto nada poder-lhe dar além de eterna exaustão de espírito. Sim, eu poderia ser feliz, poderia fazê-lo feliz, mas acontece que sou triste, sou cheia de manias, não valeria a pena. Então deixei-o passar. E mais uma vez, eu soube todos os ângulos de ir, mas vivi no lugar de quem sempre fica.

Eu me levantei, andei o oposto que havia andado aquele tempo todo. Busquei o caminho de poças que me levava novamente para minha casa quente e seca. Participei mesmo que de forma ligeira da vida de muitas pessoas que, em retorno, participaram da minha também.

Acho que aprende-se muito apenas assistindo. A vida me deu várias chances de nunca ter que voltar para casa sozinha, por que cada um que passou veio comigo. Molhada e feia, mas nunca sozinha. E eu nunca aceitei a simplicidade das situações, mesmo tendo saído de casa única e exclusivamente para apreciar tais simplicidades. Cada um que passou por mim, passou para nunca mais voltar, para nunca mais ser visto da mesma forma, por que para mim acompanhada ou não, seca ou não, alimentada ou com fome de vida, a chuva nunca vai deixar de ser a liberdade. Um novo dia amanhecendo para minha vida, mesmo que já em crepúsculo árduo e quase eterno. Infinito a cada dia.

A voz das folhas me chamando a fazer unidade com elas. A meninada correndo em minha volta. A vovó e o vovô carrancudos me implorando por guarda-chuva. Mulher livre de si. Homem preso em outro alguém que se foi. Casal aproveitado e casal renegado. Vida passageira e vida encharcada. Seja ela como for, eu sei que no final a casa seca e quente que eu recorro para chorar depois de perceber qual vida estou tendo naquela época está ali, com base onde eu quis que tivesse, me esperando cansada de mim e de minhas manias, mas sempre me esperando; eterna, como as gotas da minha chuva. Livre, mas minha até que se prove o contrário. A quatro quarteirões da Praça São Luis – que possui um chão gritantemente desregulado- onde chove sempre que eu preciso.

Débora Bueno
Enviado por Débora Bueno em 19/08/2010
Código do texto: T2447437
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