Um cidadão de bem
Durante toda a vida, seu Silva foi um homem honesto e trabalhador. Nos últimos dois anos, aproveitou para descansar, cuidar da horta e curtir a aposentadoria. Seu Silva era feliz. Um homem pacato e religioso, que ia à igreja e que gostava de rezar o Pai Nosso (mesmo confundindo seja feita a vossa vontade, com seja feita a nossa vontade). Seu Silva, estava sempre de bem com a vida e gostava de tomar chimarrão na frente de casa. Só o que o deixava irritado era a piazada que jogava bola no terreno ao lado e que, de vez em quando, arremessava a pelota no seu jardim, arruinando suas roseiras. Isso realmente o enfurecia, a ponto de furar as bolas que pegasse. Seu Silva tinha filhos, mas eles moravam longe. Ele tinha sido casado, mas perdeu a mulher para uma dessas fatalidades da vida: bala perdida. mas seu Silva já tinha feito as pazes com Deus, pois compreendia que tivesse sido vontade divina que a mãe de seus filhos tenha recebido um balaço na testa. Coisas da vida.
Seu Silva acompanhava os noticiários, tinha medo da violência e era indignado com a situação política do país. Chegou a botar o nome do seu gato de "Mensalão", em homenagem aos gatunos de Brasília. Ele também achava que o Lula era boa gente e que era melhor ele na presidência do que os milicos. Seu Silva pagava seus impostos e estava determinado a votar contra o desarmamento. Achava que cidadãos de bem, como ele, mereciam ter uma arma e se indignava com essa história de desarmar o cidadão, deixando armado o ladrão. Uma noite, ouviu um barulho ao redor da casa. De repente, um vulto cruzou pela janela, circundando o pátio. Seu Silva se assustou, pegou o 38 que tinha no armário e ficou à espreita. Quando avistou o vulto novamente, não hesitou e PÁ-um disparo certeiro de seu 38. Ele abriu a porta e deu de cara com o corpo de uma criança de 12 anos com o peito aberto, uma bola ao lado do corpo, e sangue espalhado pelo seu belo jardim. E Seu Silva, um homem de bem, foi preso por ter cruzado a tênue linha que separa um cidadão de um assassino.