Querido Voinho

-Você pode me acompanhar de carro, há um lugar?

-Depende...Eu não conheça nada por aqui!

-Tem problema não, eu te mostro o lugar, vou pedir as chaves do carro à Painho, aí a gente sai!

-Vai lá...eu te espero aqui!

Soteropolitana de sotaque carregado, minha amiga havia me convidado para passear na Bahia e conhecer sua família.

O que mais me cativa em meu país, é saber que o "Brasilzão" é um país com dimensões continentais. A medida em que nos deslocamos de um estado para outro, temos a impressão de estarmos viajando de um país pra outro. Cada estado com seus costumes e sua cultura étnica peculiar. Até a pronuncia das palavras e o jeito de se falar muda! Pelo menos é essa a minha impressão.

Mal entramos no carro, e ela começou a me explicar que o Avozinho dela tinha D.A. doença de Alzheimer, e que a família sempre o visitava. Ele era viúvo, tinha 85 anos, e, apesar de certa debilidade mental, fazia questão de manter sua independência, morava com uma enfermeira, era aposentado das forças armadas.

Homem rígido e disciplinado, moldado na rudeza do regime militar, recusava-se veemente abrir mão de sua autonomia. Mantinha quase que uma rotina de quartel. Levantava cedo, sem precisar de despertador, fazia exercício, caminhava pela praia, tomava seu café, cuidava da horta e do jardim que possuía em casa.

Segundo seu médico, apesar do D.A. e dos seus 85 anos, sua pressão, batimento cardíaco e integridade física, eram de um jovem. Porém o tempo, cruel e implacável atingiu-o em sua memória. Para quem não sabe, o mal de Alzheimer produz certa confusão mental e perda de dados da memória, geralmente de longo prazo (fatos já vividos no passado). E foi justamente neste sentido que minha amiga alertou-me:

-Meu Voinho costuma confundir pessoas, por isso eu te peço, tenha paciência com ele!

-Se quiser eu fico no carro!

-Não carece, ademais ele gosta muito de conversar e talvez a gente demore um bocadinho. Se preocupa não, sua doença nem está tão avançada, ele só tem algumas crises de memória!

-O que eu faço então?

-Tu entras comigo e concorda com tudo que ele falar!

E lá fomos nós, muros escuros e altos e um grande portão de madeira impunha à casa um estilo austero, era uma casa térrea edificada em um grande espaço físico. Logo ao adentrarmos, notei que, a fachada não tinha nada com seu interior, um lindo e bem cuidado jardim antevia o rol de entrada, corredores amplos e gramados acompanhavam as laterais da casa.

À direita havia uma linda fonte d'agua, a qual despejava suas águas cristalinas num pequeno lago, haviam peixes coloridos que se escondiam sob as plantas do lago. Ficaria contemplando aquele lugar por horas, se não fosse minha amiga me chamar.

-Ei...vamos! Ele deve estar lá no fundo do quintal!

-Será que é boa idéia eu ir lá com você?

-Tu já não ouviste, ele gosta muito de conversar com as pessoas.

Lá estava ele, abaixado no jardim, quase não dava pra vê-lo, o quintal era muito grande e extenso. Minha amiga começou a chamá-lo:

-Seu João...o seu João!

-Quem está aí? Ah...Você minha filha! Que bom que você veio, já faz tempo que não vem me visitar! Se achegue mais para eu poder te ver direito!

-Olha quem veio comigo!

-Meu filho! Graças a Deus! Você sumiu...Esqueceu Painho é! Devia puxar suas orelhas!

Nessa altura eu já nem sabia o que estava acontecendo. Ele me tomava por seu filho e minha amiga, devia ser minha irmã. Beijou e abraçou-nos enternecidamente. Minha amiga emocionou-se, seus olhos encheram de lágrimas e com muito custo ela conteve seu pranto.

O Voinho era só felicidade, quis saber porquê eu não mais o visitei, disse que perguntou por mim diversas vezes, e que, estava com muita saudade, para eu sempre que puder ir vê-lo.

Achou-me muito diferente, perguntou onde eu estava morando, se eu já havia casado.

Eu mal conseguia responder uma pergunta ele vinha com outra.

Vez em quando ele me olhava meio ressabiado, me fazia outra pergunta e conforme minha resposta, sua cisma logo passava.

Confesso que, em alguns momentos, até cheguei a pensar que o conhecia a muito tempo, de tão grande que era nossa afinidade.

Já se fazia tarde quando nós saímos. No carro minha amiga me agradeceu várias vezes, por eu ter dado atenção e conversado com seu Voinho, disse que o avô a confundia com sua mãe, e que ele havia me confundido com um tio dela, que já havia morrido há muito tempo.

Contou-me também que os familiares se revezavam em visitas, para não agitá-lo muito, muitas pessoas juntas, iriam cansar e confundi-lo ainda mais.

Falei pra ela que, estava com remorso por ter enganado seu avô e perguntei a ela, se não estava envergonhada por ter feito aquilo.

Com a maior naturalidade respondeu-me que, não havia motivo algum para se envergonhar do que fizemos, seu Voinho estava doente e adorava conversar com as pessoas, iria dar muito trabalho ficar explicando quem era quem durante as visitas, ademais, isso só iria irritar e constranger o pobre velhinho.

Seus médicos salientaram que as visitas, passeios e demais terapias ocupacionais, devem ser acima de tudo, motivo de prazer e descontração. Nesta altura da vida, não se deve impor ou obrigar, uma pessoa a aceitar algo que esteja além de seus limites, ainda mais com o déficit de memória e na idade em que está.

Quanto a mim, mantive minha promessa. Sempre que passava pela Bahia, dava uma chegada na casa de Voinho, que por sua vez, me recebia paternalmente de braços abertos.

Oiram Soriedem
Enviado por Oiram Soriedem em 16/08/2010
Código do texto: T2441764
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