A Barata

Humberto levantou da cama e foi à janela. Era madrugada e uma chuva miúda e insistente deixava a noite ainda mais gelada. Uma pessoa caminhava encolhida e de braços cruzados pela calçada e um carro cruzava o asfalto reluzente da avenida deserta. O néon de um bar coloria o quarto de vermelho e escuro, vermelho e escuro. Humberto odiava o inverno. Era desconfortável e desumano. Bonito só para os ricos ou para quem assiste reportagens sobre o frio pela televisão. No verão, os ricos vão para Punta ou Caribe, a classe média para a praia, para a piscina de casa ou do clube e os pobres se jogam no lago do chafariz do parque. Fica todo mundo contente. Mas no inverno não. A vida proporciona sofrimento em dobro para os pobres. Procurou com os olhos um homem de rua que sempre dormia sob a marquise de uma loja, mas hoje ele não estava. Talvez tivesse procurado abrigo em um lugar mais quente. Também não estavam as prostitutas e os travestis que faziam ponto à noite em frente ao edifício até a outra quadra. Brigavam e discutiam por espaço e clientes. Humberto sentiu falta de suas algazarras. Suas ausências deixavam a madrugada mais triste e solitária. Humberto foi ao banheiro. Sentado na privada, observa as paredes mofadas de pintura velha e gasta. O frio era bem pior ali do que no quarto. Era como se uma água gelada flutuasse no lugar do oxigênio.Havia infiltrações no teto. Já falara para o morador do andar de cima, mas ele não tomou nenhuma providencia. Mas, Humberto não se importou com a falta de consideração do vizinho e nem se deu ao trabalho de reclamar novamente. Não tinha dinheiro para a pintura. Atrás da pia, uma poça era formada lentamente pelas gotas que caiam de um cano. Era uma água suja com uma coloração marrom da ferrugem do encanamento velho. Ele limpava, mas em pouco tempo a poça estava de volta. Humberto tremia, o frio era intenso. Maldita hora para evacuar, pensou. O apartamento não tinha calefação. Era em um edifício antigo de uma zona decadente da cidade, outrora um bairro industrial, agora cheio de galpões abandonados, ocupados por mendigos e usuários de drogas. O prédio onde ele morava ainda estava numa zona mais selecionada do bairro. Na avenida principal, com suas pequenas lojas de comércio popular, bares e pela qual durante o dia milhares de automóveis e centenas de ônibus de diversas linhas passavam para o subúrbio ou a saída da cidade.

Humberto mirou a lâmpada que emitia uma luz fraca e que a todo momento sofria queda de energia como se fosse se apagar para sempre. Sua atenção foi desviada para uma barata que imóvel girava freneticamente suas antenas em todas as direções. Antes que ela pudesse se mover recebeu uma chinelada. O som do corpo se estalando lhe deu nojo. Ao levantar o chinelo, Humberto observou que ela ainda estava viva. De seu ventre jorrava uma gosma branca que a prendia ao chão úmido e frio e apesar de ter as patas traseiras paralisadas, fazia um esforço enorme para tentar fugir somente com as patas da frente. Mas a gosma que a prendia à cerâmica era mais um obstáculo para obter êxito. A luta do inseto chamou sua atenção. Sentiu-se deprimido e logo a seguir seus olhos tornaram-se úmidos. Uma lágrima escorreu por usa face. Teve remorsos por ter esmagado a barata. Pensou que ela era como ele. Tinha direito e queria viver. Outras lágrimas brotaram enquanto ele observava a luta inútil do inseto por sua existência. Suas patas traseiras torcidas, quebradas, sendo arrastadas, tornando-se um peso a mais na luta pela vida. Da barriga aberta a gosma esbranquiçada formava um filete no chão que a prendia ao lugar de sua morte, a lajota úmida, fria e encardida do banheiro. E por mais que ela se esforçasse, seu caminhar antes rápido e frenético era agora um roçar lento, pesado e agonizante. Humberto indagou-se se aquele bicho tivesse a capacidade de raciocinar o que estaria pensando, sabendo que sua existência era questão de minutos e que por mais que lutasse, por mais força de vontade que tivesse para viver, a morte estava próxima. Talvez a tentativa de um passo seguinte fosse seu último ato. E assim seria com ele. Deitado em uma cama de hospital por mais que quisesse viver chegaria um momento em que a morte pisaria em seu corpo e o câncer que dilacera suas entranhas explodiria em uma dor insuportável e lhe daria o ultimato e a consciência de que a sua hora chegou e que não havia mais saída. Não jorraria a gosma da barata. Mas, por todos os seus orifícios esvairia o sangue que o amedronta todas as vezes que evacua e este sangue mancharia os lençóis brancos do leito hospitalar juntando-se as fezes, urina, ao vômito e ao suor do moribundo, tornando seu aspecto terrível, talvez mais nojento que a gosma da barata. Pensou em pegá-la com a mão, tentar ajudá-la, mas ficou com nojo e refletiu que era inútil. Ela morreria sozinha num lugar frio e úmido. Assim, como em breve, ele também. Sempre teve medo de morrer sozinho, de não ter quem fosse ao seu enterro, quem levasse seu caixão até a sepultura, que ficaria para sempre suja e abandonada sem nenhuma flor ou cuidado. E isto estava cada vez mais próximo. Sentia falta de não ter dito uma família, ter ensinado e deixado algo para os filhos. Os amigos sumiam há cada nova internação no hospital. Ao se levantar do vaso observou como sempre as fezes quase líquidas misturadas ao sangue. Era uma cor escura, roxa e um odor fétido que lhe anunciavam que seu interior apodrecia. Seu corpo estremecia, tinha calafrios de medo e fraqueza. Sentia-se igual à barata cada vez mais debilitada. Também não tinha escapatória, era uma questão de tempo. E essa questão de tempo era o que mais o apavorava. Saber que seus dias estavam contados e que não teria mais chance de realizar todos os seus sonhos. De repente a parte dianteira da barata se ergueu e se apoiou na parte de trás que estava esmagada. Suas patas suspensas se moviam lentamente, pareciam querer alcançar algo que só ela via, talvez se agarrar à vida que se distanciava. Humberto passou o papel no ânus que veio lambuzado de uma misturada de fezes e sangue. Puxou a descarga e foi ao quarto invadido pela luz do néon do bar. A luz vermelha se alternava de segundo a segundo com a débil iluminação do dormitório. Procurou a garrafa de uísque, encontrou apenas os cigarros. Na certa ela estava na sala.

Ao passar pela porta do banheiro notou que os movimentos das patas dianteiras eram cada vez mais lentos em espaços de tempo maiores e logo a luta da barata terminou e o rastro gosmento da morte acorrentou seu frágil corpo. Lamentou ter matado o inseto. Não se importaria se alguém viesse e fizesse o mesmo com ele. Era justo e já estava começando a ficar cheio de tanto sofrimento. Sentou-se no sofá e bebeu da garrafa. Limpou os lábios e acendeu um cigarro e observou a dança da fumaça no ar. Quando o diagnóstico lhe foi dado e logo que começou a sentir as dores que se fizeram cada vez mais intensas, teve vontade de se matar. Tinha coragem para isso, bastava encostar o cano do revólver no coração e disparar. Não doía. A morte não dói. Se ela é rápida não dói. Melhor do que ficar definhando em uma cama de hospital, sabendo que todos os esforços são inúteis. Em uma morte rápida o sangue se esvai, um pouco de dor e uma ardência e depois vem um sono pesado e profundo. O que lhe impediu foi o fato de não acreditar em vida após a morte e mesmo que ela existisse, sempre achou que seria uma chatice. Queria permanecer neste mundo imperfeito, cheio de tragédias, mas também fascinante. Se morresse, não ouviria os CD’s ou não conheceria os lançamentos de seus compositores e músicos favoritos. Nem veria as estréias ou poderia rever os clássicos de cinema de seus diretores, atores e atrizes preferidos. Não conheceria os novos livros de seus autores prediletos nem releria os clássicos. Não saberia o que estaria acontecendo na arte ou na política. Tinha desembarcado da vida no meio do caminho e a vida do país e do mundo continuava sem ele. E o seu time de futebol seria campeão ou cairia para a segunda divisão? Que novos craques surgiriam que ele não conheceria? Nunca se importou em não ter bens ou imóveis. Possuía apenas este pequeno e pobre apartamento de quarto, sala, cozinha e banheiro. Lembrou da expressão de que o dinheiro ou os bens não se leva para o caixão. Para quem tem poucos ou inúmeros bens nesse momento eles já se tornaram o motivo principal de briga entre os herdeiros e em poucas horas não lhe pertenceram mais. Para falar a verdade, eles já não lhe pertencem mais. Mas as emoções ficam, vão com a gente.

As emoções proporcionadas pela arte, cultura, esporte, viagens, amores e sexo, essas sim vão conosco para sempre e numa hora como essa em que a morte é eminente, são as únicas coisas que temos, que nos agarramos, que nos fazem lembrar e ter um bálsamo para o sofrimento. Não tem como alguém roubá-las ou herdá-las. São de quem teve o prazer de vivê-las. O primeiro beijo, a primeira transa ou a emoção de entrar em um cinema pela primeira vez são recordações exclusivas daquela pessoa. E Humberto queria ver mais. Ver mais filmes, peças de teatro, vernissages, jogos de futebol, lugares, países, conhecer novos amores, transar intensamente e saber de tudo o que de bom ou de ruim acontecia no mundo. Era horrível ver que a humanidade seguia seu rumo, sua história e ele não fazia mais parte. E principalmente que ninguém sentiria sua falta. Era delicioso saborear o dia-a-dia, fosse ele qual fosse: sofisticado ou simples, trágico ou divertido. Lembrou dos pais. Tinha saudades, mas há muito que se foram. As lágrimas que escorriam por sua face se tornaram um choro trêmulo ao lembrar que queria ter uma nova chance de ter tido um relacionamento melhor com eles. Uma única oportunidade de dizer: eu amo vocês!

Humberto tomou vários goles seguidos do uísque. Tragou e soltou a fumaça. Aquela dor no estomago estava sempre lhe agulhando. A solidão juntou-se ao silêncio pesado e opressor e ao medo. Havia no aposento um clima sepulcral, torturante, prenúncio de uma tragédia. Tomou o resto da bebida e deixou a garrafa cair no tapete velho e mofado. Mirou o teto por alguns minutos, lembrando de sua vida e da barata. Não sabe quanto tempo. Acordou com as buzinas dos automóveis, o barulho dos motores dos ônibus e caminhões e a luz do sol que penetrava pela janela da sala. Concluiu que pela movimentação na avenida devia ser perto do meio-dia. A dor e a queimação no estomago continuavam. Mas, precisava comer algo. Tomar um banho, sair para a rua e almoçar em algum boteco. Pensou com alegria em passar na locadora do centro e pegar dois ou três filmes. Clássicos ou lançamentos do cinema europeu. Sorriu satisfeito ao notar que mesmo com todo o sofrimento, com sua existência a se exaurir, ainda podia ter alguns momentos de prazer.

Paulo Antonio Branco
Enviado por Paulo Antonio Branco em 14/08/2010
Código do texto: T2438155
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