O acadêmico e o anonimato.
Sentou-se completamente suado e extenuado na copa quente e abafada. Estava sozinho naquela hora, portanto não se incomodou com o detalhe dos pés em cima da mesa, uma pequena e deliberada ignorância das regras em nome de um pouco de conforto.
Olhou para o copo de limonada nas mãos, tomado com ansiedade, a maior parte do açúcar acumulada no fundo. Sorriu.
A sua vida era mais ou menos como aquele copo de suco, um pouco ansiosa e azeda, uma doçura mal misturada, mal aproveitada que geralmente estragava o fim e não deixava que tomasse o líquido até o final.
A culpa era sua, afinal, por não poder simplesmente deixar de ser o que era. Não ter a habilidade necessária para encontrar o caminho em meio ao labirinto psicológico em que sua vida transformara e pela decisão quase aflita de derrubar algumas paredes para encontrar o rumo certo.
Definitivamente derrubar paredes não ajuda, pensou. Mas como lidar com o cansaço de voltar eternamente ao mesmo ponto?
Os gregos tinham a vantagem da crença em seus deuses, de culpá-los por sua vontade sadicamente trágica. Ele tinha o seu cotidiano maçante mais um dia de medos secretos e condenações veladas, julgamentos tão apressados quanto o seu.
Definitivamente a vida não tem uma interpretação simples. Já basta o simples fato de ter que ser interpretada.
O conflito surge quando não se digere bem a constatação de que nossa interpretação quase sempre é uma distorção da interpretação do mundo e que a rebeldia revelada afasta possibilidades de alcançar algo minimamente aceitável. Mexer com a ordem das coisas não é uma atitude muito sábia, a menos que se esteja disposto a morrer por isso.
Ou talvez, quem sabe, fosse o excesso de exigências, a mão que afaga o monstro. Uma abordagem inflexível e pesada diante dos acontecimentos. Não era propriamente um julgamento, ou uma condenação, mas uma dificuldade quase orgânica de aceitar o meio termo. Determinadas concessões, muitas vezes, beiram a desonestidade e era justamente essa crença que o tornava um chato que não se moldava, que não cabia em canto nenhum desta vida.
Um eremita cercado de pessoas é uma fraude covarde. Eremitas deveriam ter a hombridade de se retirarem do mundo, assumir que são feitos de outra substância que não se mistura.
Suspirou fundo, a solidão é mais que um preço, é um imposto que a vida cobra das pessoas muito difíceis.
Fez um gesto de levantar-se. Sobre a escrivaninha havia um trabalho científico interrompido. Fora cogitado para concorrer entre um grupo de trabalhos bem elaborados. “Um índice de qualidade acadêmica”, promessa de algum sucesso. Mas sua orientadora falara da tal falta de contatos políticos que impediriam que o trabalho estivesse entre os melhores.
A qualidade não está no que é feito, pensou desanimado, mas no que convém ao momento e ao grupo que decide.
Ele não faria o movimento nessa direção.Político, essa palavra revirava suas entranhas. Não naquele momento, mas em cada segundo dos seus dias.
O mundo é uma farsa. Uma comédia com selo de autenticidade.
A solução seria entregar-se ao jogo, ou viver empobrecido, frustrado, mendigando um pouco de verdade, sentido e reconhecimento. Mas o fim voltava sempre à mesma expectativa adolescente que não era capaz de abandonar, nem de suportar.
Levantou-se da mesa, deixou o copo sobre a pia, o trabalho inacabado sobre a escrivaninha, a sua esperança suspensa em algum lugar.
Dirigiu-se à porta, girou a maçaneta e mergulhou silencioso no vazio da multidão que passava. No anonimato, buscava alguma liberdade.