Ano de Copa

-É a melhor época da minha vida moço! Tá todo mundo contente, eu ganho um monte de coisas, é melhor que o natal...sabia?

-Não brinca? Por quê?

-No natal, meu pai fica nervoso, bate na gente, minha mãe fica triste. Ás vezes a gente tem que pedir nas casas, embora algumas pessoas ajudem. É muito chato! Ter que ficar batendo nas casas nesta época, todos bem vestidos e com muitos brinquedos. Sem contar que, ficam olhando para gente, como se a gente estivesse doente ou contaminado por alguma doença ruim! É horrível!

-Mas vocês não ganham brinquedos? Ouvi dizer que até o Papai Noel, visita algumas crianças?

-Às vezes ele vem, lá na vila, só que ele nunca levou o que a gente pediu! A Professora na escola, fala pra gente escrever uma cartinha, dizendo o que a gente quer ganhar. Quem foi bonzinho o ano todo, pode escolher o que quiser. Eu sempre pedi uma bicicleta, só que até hoje eu nunca ganhei, e olha que eu faço tudo o que minha mãe e meu pai mandam!

-Por que na copa é melhor?

-Por que tem jogo, a gente ajuda a enfeitar as ruas, tem festa, todo mundo fica feliz e põe roupa amarela, até as pessoas olham pra gente diferente. A gente ganha álbum, figurinha, corneta, chapéu, bola e até chuteira...usada...mas ganha! Tem até um dono de loja, que arranja alguns uniformes e bolas pra gente jogar, arranjou até traves com redes novas, para nosso campinho de futebol lá na vila.

-Mas no natal não é mesma coisa? O pessoal também enfeita as ruas, algumas instituições se mobilizam, promovem festas comunitárias, compram cestas básicas, roupas...

-Moço, não tô dizendo que a gente não ganha nada no natal! Só estou falando que na copa as pessoas ficam mais felizes, até meu pai fica diferente, ele até comprou uma televisão grande pra gente ver os jogos, teve até churrasco em casa, quando o Brasil ganhou!

-E no ano novo? Também tem festa, queima de fogos, as pessoas se vestem de branco...

-É legal sim, a gente deseja feliz ano novo, pras pessoas e ganha um dinheirinho. Só que não tem jogo, ficam passando aqueles programas chatos de natal na TV, mostrando que a gente é pobre e que, nunca vai poder ter tudo aquilo...é uma bosta! Meu pai disse que nunca gostou do natal, ele e meus tios nunca ganharam nada nesta época, meus avós batiam muito neles, vai ver que é por isso, que ele bate na gente...sei lá!

-Teu pai lhe bate muito?

-Batia, agora não bate mais. Depois que o técnico conversou com ele!

-Técnico?

-É meu professor, ele ficou bravo com meu pai, porque, eu perdi um jogo depois de uma surra, que meu pai havia me dado. Nós quase perdemos o campeonato aquele ano. Lembro até hoje o que meu professor falou pra ele!

-Ah é...O que ele falou para seu pai?

-Disse que ele estava impedindo o nascimento de um futuro craque! E Que bater desse jeito nos filhos era crime, e que, o conselho tutelar já estava a par do ocorrido, e que, se ele não mudasse, ele nunca mais iria ver a gente de novo.

-E seu pai, o que ele fez?

-Moço...Ele nunca mais bateu em mim, nem nos meus irmãos...E olha que além de chatos, meus irmãos não gostam de jogar bola!

-Que bom! Valeu a pena seu professor ter falado com seu pai!

-E como...Ás vezes ele até me leva aos treinos. Quando o jogo é em outra cidade ele me acompanha, e nos finais de semana ele fica de voluntário treinando a gente.

-Já percebi que seu negócio é futebol, você joga em que posição?

-Sou “centravante” moço, sou artilheiro e capitão do meu time, lá na vila, ninguém ganhou da gente até hoje. Nosso time da escola, na categoria que jogamos, nós somos tetracampeões, se a gente ganhar esse ano, o time da escola, fica pentacampeão, que nem a seleção brasileira. Um dia algum olheiro irá me ver jogar, aí então, eu vou ser contratado por um grande time de futebol, vou ficar famoso e ganhar muito dinheiro e vou......

Naquele momento, percebi o quão era importante ocupar o tempo ocioso das crianças. Embora alguns, não dêem à devida atenção há um jogo de futebol, muitos encontram no esporte a saída da marginalidade, para uma vida melhor e mais digna.

Não sei se o pai daquele menino abandonou a violência por medo de perder a guarda dos filhos, ou se, percebeu que estaria impedindo a carreira promissora de jogador de um futuro craque de futebol. Não importa! O fato é que ele havia se conscientizado e não mais bateu nele (craque da bola), ou em seus irmãos.

Mesmo que, um título na Copa do Mundo não modifique a vida das pessoas, como certos céticos teimam em afirmar, para a grande maioria isso representa a confirmação e a consagração internacional de um país, que acredita no esporte, mostrando o que sabe fazer de melhor.

Ainda que, para alguns não passe de alegria fugaz, para muitos, talvez proporcione uma perspectiva mais otimista a qual permite enxergar a realidade socioeconômica sob outro prisma.

Não se pode afirmar com exatidão o que isso significa: simplicidade, comodismo ou limitação cultural. O fato é que, embora não haja o efetivo empenho do Estado na redução da pobreza e na erradicação do analfabetismo, diminuindo do abismo sociocultural, o qual amplia ainda mais a desigualdade étnica.

A realidade impõe outras buscas, e na falta de oportunidades ou melhores opções, o futebol tem sido a escolha para todo aquele que não quer entrar para o crime nem tampouco permanecer na miséria.

Oiram Soriedem
Enviado por Oiram Soriedem em 12/08/2010
Código do texto: T2433220
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