Mariana

Mariana

David encontrava-se mais uma vez sem qualquer ocupação que lhe viesse resgatar das profundezas daquele tédio atroz que lhe afligia. Era uma tarde de sexta-feira, o sol das três da tarde invadia as janelas das casas do jardim Danfer. Transeuntes rompiam cá e lá com o estranho silêncio no qual aquele bairro da zona leste se encontrava mergulhado. David observava qualquer coisa que se mexia na tela da TV sem atentar para nada, zapiava com o controle de um canal a outro sem se quer observar o que se passava. Olhou o relógio de parede que lhe era tão familiar naquele alumínio escovado que ganhara de uma ex-patroa. As horas se arrastavam e ele não encontrava qualquer alento para sua mente. Olhou para o telefone no criado mudo atrás do cinzeiro de vidro. Pensou em ligar para alguém, mas lembrou-se logo de que não tinha amigos. Olhou pela janela e se o pôs a pensar naquela solidão medíocre na qual se encontrava já havia quase um ano. Há quase um ano não tinha vida social, não curtia uma bebida entre amigos ou saia com uma garota.

No porta-retrato a foto do ultimo aniversário dela lhe fez recair numa tristeza profunda, não tão profunda quanto era no início, mas ainda uma dor intensa. Acendeu mais um cigarro para tentar desviar os pensamentos de todas as lembranças do passado doce que tivera. Passou outra vez pelo espelho que estava sempre tentando ignorar e não conseguiu deixar, mais uma vez, de notar o semblante que adotara após aquele fatídico acidente de carro na marginal. O cabelo havia algumas semanas precisava ser aparado, pela centésima vez havia sido recriminado por seu chefe por causa daquela barba que sempre esperava demais para fazer. Do alto da sua camisa preta que no momento encontrava-se completamente aberta, contemplava sua barriga que começava a crescer com uma velocidade assustadora. Mas ainda tinha ânimo para pegar outra dose daquele uísque barato que ao menos uma vez por semana comprava no supermercado do bairro para assim agüentar mais uma semana.

O telefone então rompeu com sua meditação. Pensou bem se queria realmente atender.

-Alô

-Fala maluco – esse era o cumprimento padrão entre ele e seus primos, únicas companhias há algum tempo. Aquela voz era peculiar, era seu primo Natan que com certeza iria lhe fazer algum convite.

-Fala arrombado.

-Tá fazendo o que da vida?

-O de sempre.

-Porra nenhuma então.

-E você?

-Tô na mesma, bora tomar uma cerveja ou qualquer coisa.

-Talvez, se não tiver nenhum daqueles seus amiguinhos reacionários burgueses, ou algum dos seus vizinhos alienados.

-Você sabe, você é minha ultima opção, sempre. – satirizou sem ouvir nenhum sinal de riso do ouro lado – Vem pra cá logo.

Pesou os prós e contras durante alguns segundos sobre o que poderia esperar desse encontro, se seria mais uma tarde desperdiçada na qual gastaria seu tempo ouvindo mais uma vez as reclamações cotidianas que todos estão sempre a proferir na ausência de qualquer outro assunto que lhas possa entreter as pútridas mentes, já carcomidas pela mídia de massa. No entanto pensou no individuo de quem vinha o convite. Natan até três anos antes era um rapaz como qualquer outro. Tinha um emprego e estava cursando o segundo semestre de segurança do trabalho no centro Paula Souza, perfeito medíocre como todos somos. Não era tão falso moralista quanto nossos queridos protestantes pentecostais atuais, mas tinha sua parcela de virtude um pouco mais exaltada que aquela mais elementar da qual todos nós dispomos para parecermos indivíduos éticos moralmente perante a sociedade. Namorava uma moça chamada Helena que em nada se parecia com aquela de Machado de Assis, mas era bela e burra, tudo que um moralista, como Natan era na época, precisava. No entanto Helena sofria de um defeito horrível que acomete principalmente as telespectadoras de novelas globais e leitoras de Zybia Gaspareto. Ela o amava ou ao menos pensava que o amava, sendo assim, ela nada mais precisava para fazê-lo infeliz.

Houve então, uma tarde na qual Helena descobrira no celular do namorado uma mensagem na qual se lia as frases a seguir:

“Oi gatão, consegui seu telefone com seu amigo do Liverpool, a noite de sábado foi maravilhosa, nuca pensei que seria possível gozar naquela posição rsrsrsrs. Saudades, me liga pra gente repetir a dose bjs Sheilinha.”

Houve briga e discussão, ele começou tentando se defender das acusações e terminou por se arrepender do erro que havia cometido “numa noite de bebedeira”, por fim disse que a amava e chorou em seu colo. Durante aquela semana, nunca antes helena vira homem tão dedicado quanto aquele que se jogava a seus pés. Na semana seguinte passou a desconfiar de todos aqueles agrados e resolveu segui-lo numa determinada tarde. Mais tarde soube-se que tudo que ela vira foi um beijo que, mas fora o bastante para esperar que ele dormisse para num acesso de fúria tentar esfaqueá-lo. Nessa fatídica noite ele conseguiu acordar a tempo de salvar seu peito da facada que com certeza lhe tiraria a vida, no entanto sua perna esquerda não teve a mesma sorte, e numa briga na qual ele, inebriado pelo sono, e ela, estimulada pela fúria de uma mulher magoada, ensandecida e de rosto marcado por lágrimas, Natan acabou por tomar 5 golpes com a faca, que havia dado à sua mãe numa piada de dia das mães.

Natan fora atendido no hospital de Ermelino Matarazzo, enquanto sua namorada era presa. E por aquilo que muitos chamam de “infelicidade do destino” e outros como eu chamam de negligência, Natan pegou uma infecção que lhe obrigou a amputar a perna esquerda na altura do joelho. E o que se nota após esse dia é que, junto daquela perna outra parte dele se fora junto, como se uma desilusão profunda o tivesse tomado. Sim ele a amava. Desde então usava uma prótese barata que após acidentes contínuos em noites de bebedeira e algumas brigas, mostrava-se gasta e defeituosa. Isso lhe fez passar da ótima recuperação na qual andava perfeitamente como qualquer outra pessoa, para um estranho mancar que lhe deixava por vezes uma dor terrível na coluna.

David via naquele primo uma dor em comum, logo sentia pena dele. Identificava nele o misto de niilismo intenso e a depressão profunda que assumira o lugar daquela perna. Ainda assim, não tinha tanto a conversar com esse primo como alguns leitores pensam. Mas era um bom amigo com quem podia beber a valer sem se preocupar com comentários posteriores, além do que após a quinta cerveja qualquer piada dele se tornava engraçada, o que de fato era muito mais atraente que aquele marasmo intenso. Tomou um banho, fez a barba, colocou um all star, um jeans qualquer, uma camiseta e seu clássico blazer preto, a noite iria esfriar.

Natan sempre pagava as bebidas para naquelas noites, estava aproveitando o seguro-desemprego do ultimo emprego no qual fora pego dormindo, e aproveitava os últimos despojos do processo contra o médico e o hospital. David bem o sabia, mas por algum motivo naquela noite resolveu levar um cartão de crédito, pensou assim em poupar seu primo de mais uma noite dispendiosa, pois apesar de não sair com o primo bem conhecia os oportunistas que o rodeavam. Foram até um pub nas redondezas da casa de Natan e ali permaneceram durante uns 40 minutos bem descontraídos. Foi quando David notou que seu primo olhava para algum lugar, ainda no balcão, atrás dele, como se tentasse reconhecer alguém. E de fato o era. David olhou para trás e viu uma linda moça de sorriso largo e olhos provocantes. Tinha os cabelos na metade do pescoço, eram de um vermelho rubro que ressaltava um contraste belíssimo com sua pele caucasiana levemente queimada de sol. Em partes diferentes dos dois braços e ombros diversas tatuagens, usava um tomara-que-caia preto com listras coloridas horizontais num fundo preto no elástico superior que o prendia ao esguio corpo que caminhava em sua direção. Seu nome era Mariana e estava acompanhada de uma amiga morena que trajava alfaiataria, denotando ter acabado de sair do trabalho. Morena de cabelos lisos na altura do ombro, boca pequena e muito sexy, mas o que mais saltava aos olhos eram seus fartos seios que faziam um conjunto esplêndido com as coxas que pareciam pedir ajuda para sair daquela prisão naquela saia. David se viu mais uma vez numa daquelas situações que tanto detestava, tinha de fingir estar gostando de um conversa a qual ele não gostaria de se quer estar perto.

-Nossa! Que surpresa te ver por aqui – disse Mariana – Essa é Amanda, lembra dela no Kasebre?

-Claro – não ele não lembrava – então como chegou em casa naquele dia?

-Daquele jeito – respondeu Amanda – no outro dia fiquei ruim, mas nada melhor que um dia após o outro.

Natan assim louvou ao deus das perguntas genéricas.

- Esse é meu primo David...

Feitas as devidas apresentações rumaram para uma mesa, começaram as conversas e as bebidas. David respondia a tudo e a todos de uma maneira genérica que não expressava nenhuma opinião e assim permaneceu tentando unicamente adivinhar o que lhe soava tão diferente naquela garota que nada mais aparentava ser que mais uma mulher que se vestia com o que alguns chamam de “síndrome de alternativo”, algo comum nas mulheres de 20 e poucos anos dessa nossa geração de mulheres neoliberais que bradam de peito aberto um discurso, que por vezes chega ser cômico, de igualdade entre sexos. Assim permaneceram durante mais alguns minutos até o momento em que Mariana mencionou o assunto de indústria cultural.

-Eu assisti crepúsculo e odiei – dizia ela – as pessoas eram simplesmente falsas, mas não no sentido de falta de caráter, mas no sentido de verossimilhança, muito forçado o filme, as falas dos personagens lhe conferia uma aparência de bobos e infantis sei lá, não gostei.

David ficou encantado com aquelas palavras, instigou ainda mais sua curiosidade.

-O livro, você leu? – perguntou ele.

-Então, eu li e até gostei, fui ver o filme pensando que seria algo para me entreter e no final das contas acabei por passar raiva.

Dali em diante começou uma conversa eloqüente na qual ambos começavam a discutir gostos em comum de modo que ao final de tudo Amanda e Natan sentiram-se excluídos por aquele casal de intelectuais de boteco que discutiam literatura com sorrisos e olhares que denotavam claramente um desejo ardente aditivado pelo álcool que ambos haviam consumido. No entanto, Mariana se mostrou um tanto pretensa a iconoclasta, dizia ser contra o ideal feminino romântico, que homens e mulheres tinham de ter direitos iguais e todo aquele discurso tão típico dessas mulheres da atual geração Mtv. David , claro se decepcionou, via muito naquele discurso inverossímil muito de falácia e pouco de atitude. Por fim ela se mostrou apenas conhecedora de alguns livros que muita gente não se interessava e havia ouvido falar algo sobre Ginsberg e Bukowski, mas preferiu assim mesmo continuar naquela conversa na qual ela se empolgava cada vez mais e enquanto ele caminhava a passos largos para o enfado.

Amanda e Natan não ficaram para traz, conversaram não com a mesma eloqüência o primeiro casal, mas flertavam daquela maneira infantil que somente notamos no próximo e nunca em nós mesmos. No entanto, mesmo parecendo não prometer tanto quanto o primeiro casal, o segundo já se beijava minutos após o início da conversa. Mariana teve uma pequena ponta de inveja, mas uma inveja saudável. Aguardou ainda por mais alguns minutos alguma atitude da parte de David, esse percebera, no entanto ao ver com que tipo de garota estava lidando pensou em fazer um joguinho para no final esfregar na cara dela como ela era hipócrita com aquele discurso de igualdade entre sexos. Pensava “vamos ver até onde vai a igualdade, se ela vai partir para cima de mim, ou se eu vou ter de assumir meu clássico papel de macho e tomá-la”.

-Preciso fumar um cigarro, vamos? – disse ela.

Ele assentiu com a cabeça de se levantou para acompanhar a moça até uma área descoberta para lá poderem desfrutar da ostentação que somente aquelas milhares de substâncias cancerígenas podem nos conferir para constituir um ato social. Fora do pub ficavam duas jardineiras feitas com tijolos de concreto, uma de cada lado da porta, as quais se encontravam sem plantas devido o descuido do dono do lugar. Ali o casal se sentou e continuando a conversa olhavam-se fundo nos olhos. Por algum motivo irrelevante recaíram sobre a velha questão machadiana “Capitu, traiu ou não?”.

-Eu não acredito – dizia ela – esse pensamento é totalmente masculino e machista.

-Pois, se então a história foi escrita por um homem... – David ironizou deixando propositadas reticências em sua fala.

Argumentos iam e vinham, até que por fim num acesso de ímpeto, Mariana com gesto mais do que charmoso fez com que ele se calasse com apenas um dedo colocado com toda a graça em seus lábios. Ela tinha o sorriso convidativo que David entendera e logo em seguida ela se aproximou e beijou-lhe de maneira voraz entregando assim seu anseio de já estar esperando por aquilo há algum tempo, “isso sim é que eu chamo de igualdade” pensou ele, enquanto ela se regozijava no sorriso que surgira nos lábios dele logo após o beijo.

O resto da noite continuou como meu caro leitor já imagina. Foram para um motel nas proximidades onde o cartão de crédito dele há quase um ano sem ser utilizado salvou-lhe a noite. Nesse momento os papéis se inverteram, ela que até então havia sido o macho da história, com todo seu discurso de mulher moderna e alternativa do século XXI, sua iniciativa se tornou ali nos braços dele a mais frágil de todas as damas. Ele então assumiu seu papel de algoz, chagava mesmo a colocar o pênis com tanta veemência na boca dela que viu uma tímida lágrima descer-lhe o belo rosto. Ele ditava e ela respondia, vale notar que tal era feito com tanta solicitude que parecia mesmo que a muito ela não sabia o que era ser dominada daquela maneira. Depois de tudo, ela ainda tentou conversar um pouco com ele durante algum tempo, mas acabou dormindo primeiro. Ele permaneceu ainda algum tempo a olhar pela janela do quarto o movimento dos carros. Um corsa sedã 98 cinza chumbo como o era o seu passou pequeno lá embaixo, e ele logo sentiu na pele mais uma vez aquela dor que a cada dia que se passava adormecia um pouco, mas que ele não queria que adormecesse, pensava dever respeito a ela por toda a felicidade que ela lhe proporcionara. Mas os romances em nada se parecem com os homens e se surpreendeu ao ver que a lembrança dela se esmaecia e sentiu ainda que o processo fosse se acelerar a cada manhã em que acordasse ao lado de uma mulher diferente.

Na manhã do domingo se despediram após ele pagar a conta do motel, não ligou para ela, nem na segunda-feira, nem na terça-feira. Na quarta então seu telefone tocou.

-Oi, sabe quem tá falando?

-Mariana? – disse surpreso, surpresa essa que não transparecia em seu rosto.

-Ao menos a voz parece que você não esqueceu – ironizou ela.

-Mas eu pensei que você uma mulher independente, alternativa que não se identificava com esse ideal romântico que as mulheres têm normalmente – ele sorria maliciosamente do outro lado da linha – Não achei que precisasse ligar no dia seguinte, não acha isso um tanto clichê?

-Não, pra te falar a verdade – ela não demonstrou qualquer alteração na voz – Você não acredita mesmo que possa haver igualdade entre os sexos, né?

-Acredito, só não acredito que vocês mulheres a queiram de maneira objetiva.

-Como assim?

-Saiamos outra vez, você terá a obrigação de me fazer gozar, quero sexo animal daquele tipo que todo o homem espera ter como num filme pornô, você paga o motel, me liga no outro dia e, detalhe, tem que me fazer sentir especial se não esquece, a gente não vai sair de novo. Daí com muita sorte a gente se casa, você trabalha e eu lavo os pratos, pois filhos nem pensar, e durante todo o tempo que nosso casamento durar você vai ter de ser uma super mulher na qual vai ter de continuar linda após um dia inteiro tomando porrada de um emprego medíocre, tem também de me fazer sentir especial, quero todas as mulheres reunidas em uma só. No final de semana quero seu cartão de crédito para gastá-lo e quero que me dê presentes fora de datas comemorativas somente para que eu me sinta especial. E assim quem sabe a gente seja feliz.

Houve um silêncio de morte no outro lado linha, e quando ele pensou que poderia terminar tudo com um simples “tchau”, ouviu uma voz que parecia estar sorrindo do outro lado.

-Entendi qual é a sua concepção de igualdade entre os sexos de “maneira objetiva”. Bom, se formos levar as coisas dessa maneira então talvez eu deva comprar um vibrador de uns 21cm com cinta e comer seu cu da próxima vez que a gente sair, pois na tua concepção de igualdade entre o sexos há uma contradição que parece ser antítese a si mesma pois, parece que ela visa uma troca de papéis na qual o homem se torna a mulher que tanto recrimino, como o mesmo ideal romântico que detesto. Dessa maneira você prova a mim que você concorda comigo quando digo que o papel da mulher na sociedade hoje é medíocre e que é realmente necessária uma igualdade entre os sexos.

David ficou calado, não esperava nenhuma réplica da parte dela.

-É... – disse por fim – você pensou mesmo nos assunto.

-Vamos sair na sexta pra gente poder discutir melhor até sair nos tapas – satirizou ela, David não pôde conter o sorriso no rosto – hummm, eu acho que tem alguém sorrido do outro lado da linha.

-Então – retomou o ar sério de antes como que despertado de um leve torpor – sexta a gente se vê.

-Legal, EU te ligo.

-Não se eu te ligar antes.

-Então vamos competir como dois machos alfa hahaha.

-Brincadeira, eu te ligo na quinta.

-Então tá bom, beijo, tchau

David desligou o telefone e ficou durante alguns instantes olhando para o movimento do escritório sem atentar para nada, imerso em si com um sorriso nos lábios. A lembrança do porta-retrato esmaecia mais um pouco.

Italo Jorge