Em nome da causa

Parecia que suas vísceras estavam saltando pela boca quando completou a subida da escadaria da Matriz. Frederico havia apostado com ele como não subiria. Aceitou o desafio e subiu correndo mais de sessenta degraus. Como ganhou a aposta, ele se dispôs a substituí-lo na missa. Eram coroinhas e a cada domingo um ajudava o padre e o outro descansava.

_ Mas onde estava Fred?

O padre José andava de um lado para o outro e começou a esbravejar. Ele sabia quando o velho sacerdote estava nervoso. Conhecia suas feições quando chamaria a atenção dos auxiliares. Ele olhou com olhar de reprovação e com os olhos e braços, perguntou:

_Como é?!

O pobre teve de sair em disparada e trocar de roupa. Sentou-se atrás e começaram a cerimônia. No coração tudo era raiva. Penso que se visse o Frederico entrando na nave sairia correndo e se atracaria com ele.

_ Sacana! Me deixou sozinho.

A missa pareceu mais longa naquele domingo e ainda tinha que esperar as confissões e só depois participar da quermesse. Frederico já deveria estar nas barraquinhas paquerando alguma pequena. Era um sedutor. Tinha todas as qualidades que atraem uma mulher: Olhos verdes, estatura elevada, forte e muito esperto, só deixava a desejar na sua inteligência. Ele era incapaz de falar sobre algum assunto profundamente.

_ “Quem se importa? Mulher gosta de músculos”. Pensava entre sorrisos.

As confissões se arrastaram até as nove horas, mas felizmente terminaram. Correu para a festa e de longe viu o melhor amigo traidor. Estava agarrado com uma garota com tanta empolgação, que daquela distância era impossível saber quem era quem. A princípio pensou em se aproximar. Teve um acesso de raiva e voltou para o lado. Chamou o Diogo, outro coroinha da semana, e foram tomar um suco e comer pipoca. Ficaram ali até as dez da noite e somente depois o Fred chegou.

– Venceu a aposta.

– De que me adiantou vencer? Você não cumpriu sua parte.

– Não esquenta, fico dois domingos para você.

Ele sorriu como sempre fazia e saiu andando. Foi atrás como de costume e bastava ele olhar para ele e sorrir que já mudava seu estado de cólera com Fred. Caminharam lado a lado até o fim do portão de suas casas, era uma ao lado da outra.

Foram criados juntos, nasceram quase na mesma época. Fred era um ano mais velho que ele. A partir de então tornam-se amigos. Amigos daqueles de estarem juntos, dividir provas, doces, aventuras e mulheres. Gostava do Fred, apesar de seu jeito desligado com as obrigações da Igreja. Sabia que a amizade duraria para sempre. Ele sempre teve vontade de ser coroinha, mas Fred queria ser piloto de caça da FAB. Sempre dizia com altivez que iria correr atrás do seu sonho. Ele acreditou que o amigo de infância, e ex-coroinha, tenha ido mesmo. Ele tinha medo de que as profissões os separassem. Um padre isolado em seu calabouço, um piloto isolado da terra, com os pés e o coração nos ares. Sentia vontade de lutar contra aquela ideia, mas por outro lado não se achava no direito e tinha que torcer por Fred, assim como Fred torcia por ele e por sua vocação. Fred era um amigo especial. Alguém a quem se podia contar segredos, confiar sonhos e buscar soluções. Era o seu único e melhor amigo.

Sempre estavam juntos. Fred queria lhe arrumar uma namorada. Ele sempre fui muito tímido, sempre foi muito arredio e, às vezes, fugia dos encontros. Fred ficava irado com o amigo, mas não desistia. Todas as vezes que vinha abraçado a uma garota trazia uma a tira colo para lhe apresentar. Ele ficava horas e horas conversando com a pequena enquanto Fred não perdia tempo. Eram beijos, abraços e bolinações. Às vezes, ficava olhando aquelas cenas e se perguntava:

_“Como esse cara consegue?”.

Cria que não havia nenhuma menina no bairro, com a faixa de idade dos dois, que não tivesse sido namorada ou paquera daquele sedutor. Às vezes, sentia ciúmes, porque quando ele estava acompanhado de uma pequena, a amizade parecia não existir.

Uma vez saíram juntos da escola e foram a uma festa de aniversário. A filha do seu Joaquim estava completando 13 anos. Era linda e muito formosa. Chegaram à casa e todos já estavam cantando parabéns. Quando a menina os viu veio correndo e se abraçou com Fred. Ele a cumprimentou conversou com ela por longos quinze minutos e só depois percebeu que o amigo tímido estava ali. Apertou-lhe a e já foi puxando Fred pelo braço foi para o salão dançar. Ele ficou ali parado a ver todos e a não ver ninguém. Ficou vermelho de vergonha, mas tudo bem. Saiu um pouco e foi tomar um refresco. O Diogo apareceu e ficaram jogando conversa fora. Depois veio o Ananias, a Ana e fizeram uma rodinha e ficaram ali aguardando o fim da festa. Fred, de repente, chegou e o chamou num canto.

– Olavo, a Cristina quer falar com você.

Cristina era a aniversariante. Pensou ele: _ “O que ela quer comigo? Mal me notou”.

– Vai logo, Olavo. Ela está te esperando.

Foi até os fundos da casa e lá a encontrei. Ela então quis saber se ele tinha vontade de beijá-la. Ele disse:

_ Não sei. Não tenho certeza.

– Mas eu acho você muito bonito.

– Acha?! Você nem me notou quando chegamos.

– É que eu fiquei empolgada com a festa, com os convidados.

Olavo quis rir de sua mentira, mas conteve-se. Ficou olhando-a fixamente e quase caiu quando ela o agarrou e sapecou-lhe um beijo na boca. Ficou sem fôlego e desequilibrado. Caíram juntos. O pior foi ele ter caído sobre o corpo da moça. Tentou se erguer rapidinho mas sentiu que alguma coisa o puxava.

– Seu safado. Agarrando minha filhinha.

– Calma, seu Joaquim. Por favor, eu posso explicar.

– Eu vou te capar, seu safado.

Disparou numa desabalada carreira e passou pelo portão gritando por socorro. Ao avistar o Fred rindo e caçoando dele, Olavo gritou com ele sem parar de correr.

– Eu te pego seu sacana!

Aquela foi, talvez, a última aventura dos dois amigos. Aprontaram tantas juntos que quase perderam a conta. Olavo, certa vez, fez com que Fred quebrasse a perna, e ele o jogou numa bananeira repleta de marimbondos. Uma vez empurrou-o no rio e ele quase se afogou, depois disso Fred jogou estrume goela abaixo de Olavo. Fizeram tudo que manda a lei da juventude, tudo que adolescentes e crianças fazem para dar dores de cabeças aos pais e provocar histórias para a velhice. Mas escolheram caminhos opostos e Olavo foi para um seminário.

Talvez nunca mais os veriam um ao outro. Talvez aquelas aventuras fossem esquecidas com o tempo. Mas na verdade, Olavo tinha a certeza de que ao longo dos anos recordaria com amor e prazer daquele tão importante amigo. E nos anos que se estenderam a sua estada na escola de Teologia, no caminho de sua vocação, a única carta de um não parente que recebeu, de tempos em tempos, era dele, Fred.

Olavo tomaria um ônibus e só voltaria àquela pacata cidade dez anos depois.

Quando amanheceu ele ouviu os ruídos vindos da capela. Estava naquele mosteiro há tantos anos e nunca tinha ouvido tanta algazarra. Monsenhor Agripino o chamou na cela. E quando abriu a porta pode ver do que se tratava. Elas eram bonitas, cheirosas e espalhafatosas. Não lembrou, nos seus 24 anos, ter visto tanta mulher junto.

_O que essas mulheres estão fazendo aqui? A pergunta foi tão direta que Monsenhor Agripino se espantou.

– Por que você fez esta pergunta?

– Não sei. Saiu assim sem querer.

– Pois deixe isso para lá e prepare-se para celebrar sua primeira missa.

A voz grossa e ríspida do monsenhor o fez acordar da dormência momentânea. Depois de 10 anos dedicados ao espírito, sem roupas variadas, sem TV, sem rádio, futebol e principalmente mulher, agora estava pronto para celebrar sua primeira missa. Como se sairia? Como será olhar para aqueles fiéis de frente, levar a eles conforto, paz interior? Ele estava nervoso, ansioso. Às vezes, queria que aquilo tudo passasse, outras vezes queria estar no púlpito e fazer tudo com mais calma e perfeição possível. Respirou fundo e entrou na capela. Ficou parado, sem esboçar nenhuma única reação, por menor que fosse.

– O que é isso?

Sebastião, o assistente no altar, olhou-o com ar de surpresa e sem entender nada apenas deu com ombros.

A capela estava tomada por aquelas mulheres que viu no saguão em frente as celas. Todas ali na sua frente, sentadas, comportadas à espera da palavra. Quis sair correndo, quis sumir dali. Segurou firmes as pernas e foi para o púlpito.

– Que Deus seja conosco.

– Amém!!!

Pode ouvir em uma só voz. Iniciou a pregação, os rituais da missa e depois de uma hora e quinze minutos de celebração preparou-se para receber as confissões. As primeiras de sua vida, as verdadeiras verdades que alguém pode entregar a um estranho. Ele ouviria daquelas mulheres todas as suas aventuras, tristezas, decepções e até alegrias. Se é que algumas delas realmente eram alegres de verdade. Enquanto retirava os objetos da mesa, uma voz o chamou.

– Padre.

Olhou e pode notar a mais sublime definição da beleza. Uma mulher de seus 19 anos, corpo bem modelado, rosto delicadamente desenhado. Um misto de beleza, candura e perversidade. Ela estava ali diante dele como uma criança desamparada. Aquela mulher queria algo de Olavo que certamente ele teria que lhe dar. Pensei em conforto, pensei em paz interior.

– Sim. Em que posso ajudá–la?

– Gostaria de me confessar.

– Aguarde junto às demais.

– Não, padre. Tem de ser uma conversa longa e fora do confessionário.

Não entendeu aquele pedido. Também não fez questão de entender. Sem saber se poderia atendê-la acenou positivamente com a cabeça e pediu que o aguardasse no jardim em frente a capela. Viu saindo e notou que sua beleza era realmente por completo.

Certamente ela esperou mais ou menos duas horas para ser atendida, mas no final da peleja de Deus contra o diabo, estava ali diante dele a sua primeira fiel a quem deveria cuidados mais especiais.

– Pois bem, em que posso ajudar?

– Padre, não sei se o senhor percebeu mais não pude deixar de olhá-lo. Durante quase todo o sermão, não pude prestar atenção nas palavras, somente no preletor.

– Isso não foi prudente. Você está aqui para ouvir a palavra de Deus.

– Deus?!

Sentiu o tom irônico de sua palavra.

– Deus se esqueceu de mim, padre.

– Minha filha, Deus te ama e te quer junto dele.

– Sou uma prostituta, padre. Uma mulher de muitos homens. Alguém que se deita e sabe fazer tudo com um homem. Uma mulher que deve ter vivido em outras vidas em Sodoma ou Gomorra.

Ele baixou a cabeça e começou a rezar, pedindo a Deus que não ouvisse aquilo. Aquela mulher certamente estava passando por terríveis necessidades. Sua voz macia e triste era a confirmação de suas palavras.

Durante mais de duas horas ouviu de sua boca todo tipo de depoimento. Aconselhou-a algumas preces, algumas abdicações. Ela saiu de sua presença e, enquanto caminhava, ouviu ainda sua voz macia e profundamente melosa ecoando em seu ouvido.

– Padre, posso vê-lo novamente?

Acenou afirmativamente com a cabeça, sem saber se poderia fazer aquilo.

A porta da cela se abriu e quase de supetão entraram o monsenhor Agripino, o padre Messias e o arcebispo Moacir. Todos o fitavam como se ele fosse um criminoso abominável. Pode imaginar que aquela visita, aquela hora da noite, só poderia ter alguma coisa a ver com a atitude dele com a jovem prostituta pela manhã.

– O que você pensa que está fazendo? Perguntou o monsenhor.

– O que houve? Quis saber fingindo-se inocente.

– Você, depois das confissões, ficou por quase três horas conversando, a sós, com uma das moças.

– Mas, monsenhor...

– Não tem mas, nem meio mas. Você deve falar com elas tão somente em um confessionário. Isso que você fez foi muito grave.

– Não quis ferir os princípios da Igreja. Achei que poderia fazer o que fiz. Perdoem-me.

– Não vamos levar isso adiante. Mas, por favor, até o dia em que você terá a sua própria paróquia, não repita isso.

Concordou em silêncio. Eles saíram e voltou aos seus pensamentos. Não no que fez, mas com quem fez. Aquele rosto não saía da sua cabeça desde que a vira. Seu sorriso triste, sua voz doce, seu corpo. Tudo soava como uma fita de vídeo em câmera lenta. Voltou às suas orações tentando dissipar os pensamentos com aquela mulher.

Dois meses se passaram sem que se visse outra vez. Celebrou outras missas para prostitutas e não a viu. Quis perguntar a alguma de suas amigas, depois recuou. Era melhor que ninguém soubesse o motivo de suas indagações. Ficou aguardando para ver o que aconteceria, se ela viria, se não iria vê-la mais. Mas teve, poucos dias depois, uma surpresa.

– O senhor irá substituir o padre Matias, da capela do Rosário.

– O que houve com ele?

– Está internado. Talvez não resista a mais a uma cirurgia. Está velho demais.

– E onde fica essa capela?

– No centro da cidade. Um lugar perigoso, cheio de tentações.

– Por que estão enviando a mim? Por que não escolhem outro seminarista. Há tantos aqui?

– Fizemos uma eleição. Você foi escolhido.

Fechou a porta atrás de si e o incumbiu de fazer as malas. Partiria no próximo domingo. Pensou consigo: “Mais dois dias e estarei na minha paróquia. Ajude-me, Deus.” Sentou na cama e sequer saiu para o jantar. O pensamento o levava direto para a jovem que o enlouquecera todas as noites, que o deixara confuso entre a fé e a vida. Se perguntavam se estava no caminho certo ou se deveria chutar tudo e ir correndo ao seu encontro.

Ele nunca mais a viu. Agora, talvez, não a veria jamais.

Partiu dali sem muitas despedidas. Poucas palavras, poucas roupas, poucas certezas. Fazia muito tempo que não via o outro lado daqueles muros. Como era bonito ver a vida colorida, os sons, carros novos, gente nova. Aquilo o seduzia, o deixava feliz e ao mesmo tempo triste. É que quanto mais ele admirava aquela cena, menos se convencia de sua fé. “O que estaria acontecendo comigo?”.

Enquanto o carro do seminário deslizava até a cidade foi vendo prédios, placas de propaganda, toda sorte de gente pedindo esmolas, ruas sujas, muros sujos, vidas sujas. Nada daquilo foi dito a ele no seminário. Nunca lhe falaram que o mundo ali fora era cercado de injúrias tão visíveis. Sempre o acostumaram a falar de um plano lindo, sem fome, sem miséria ou injustiças. O que era aquilo então? Que mundo era aquele que tão violentamente lhe mostravam?

De repente um solavanco e voltou para si. Aquele era o mundo onde o evangelho deveria ser pregado. Aquelas pessoas precisavam de uma luz, de um norte. Foi treinado para levar essa luz e ser esse norte. Será?!

– Chegamos. Disse João, motorista do seminário.

Era um lugar simples. Uma igrejinha pequena cercada por meia dúzia de prédios pequenos onde funcionava um bar, uma padaria e uma funerária. Mais adiante algumas casas residenciais e logo abaixo da rua onde estavam ficava o verdadeiro centro da cidade com suas loucuras urbanas. Era como se estivessem num subdistrito do centro da cidade. Um lugarzinho pequeno, rústico, mas que escondia seus mistérios. Era ali a sua morada por longos anos. Ou não.

– João. Obrigado e volte com Deus.

A capela estava fechada há uns quinze dias. Muita teia de aranha, muito pó. Uma escuridão típica do claustro tomava conta do lugar. Abriu a porta da sacristia e o barulho das dobradiças quase o assustaram. Diz quase, porque no seminário o único som externo capaz de os acordar daquela letargia era o ruído das dobradiças. Sorriu meio sem graça de si mesmo e entrou. Uma cama, um armário com as vestimentas sacerdotais, lençóis, algumas fronhas e toalhas. Ali estava a sua riqueza. Um castiçal, velas, tulipas, uma garrafa de vinho e pias batismais, duas bacias e um copo para água. Seu rico tesouro em favor dos oprimidos. Onde estaria o resto da tamanha riqueza de que tanto ouvira falar que detinham? Deixa prá lá. Era melhor começar a trabalhar na limpeza daquele lugar para que se rezasse ali uma missa em favor do padre enfermo. Era preciso que os fiéis voltassem a frequentar a igreja. Era preciso agir.

Já quase não sentia os joelhos. Estava orando desde as primeiras horas da manhã. Tão absorto em preces, não percebeu a presença de alguns fiéis. Voltou-se para eles, cumprimentou-os e foi trocar de roupa. Diante do altar celebrava a missa com entusiasmo. Era a sua primeira missa numa capela. A igreja não estava muito cheia, mas tinha uma quantidade significativa de pessoas. Algumas o procuraram ao final da missa com intenção de se confessarem. Era uma labuta de horas e horas a fio. Era a sua função ouvi-los e dar-lhes o conforto necessário. Fim da missão e Olavo voltou à sacristia a fim de preparar uma refeição, afinal ninguém é de ferro. Pegou o prato e foi para o seu quarto. Abriu a porta e dessa vez o susto foi inevitável. Sentada na sua cama, pernas cruzadas, cabelos soltos e roupa provocante. Ela estava diante dele. Mais linda do que no primeiro dia em que a viu no seminário. Foi no mundo da lua. Rodou por lá uns minutos e voltou. Era ela mesmo.

– Como você entrou aqui?

– Pela porta, padre. Respondeu com um sorriso maroto.

– O que faz aqui? Por onde andou?

Só depois se deu conta da pergunta que fez. Tentou corrigir, mas já era tarde demais. Ela começou a debulhar sua intuição.

– Eu sabia que você não tinha me visto apenas como uma de suas fiéis. Eu tinha certeza de que havia mexido com você.

– Não é nada disso. Perguntei por uma questão de preocupação. Quis saber de você.

– Como? Me viu apenas uma vez. O que poderia ser tão importante em mim para que se preocupasse tanto?

– Preocupo-me com minhas ovelhas.

_ Ah, é?! Então me pergunte das outras? Você não se importa com elas?

_ Claro que sim. Mas me diga o que você quer.

Nesse instante ela se levantou e em passos lentos veio em sua direção. Ficou frente a frente com ele e começou a tocar-lhe no rosto, nos cabelos. Ele segurou firme sua mão e teve ímpetos de beijá-la. Recuou e afastou-se dela como se fosse o diabo diante dele ou se ela tivesse lepra. Ela sorriu e sentindo a sua aflição disse com voz maldosa:

– Calma, padre. Vou deixá-lo a sós com suas dúvidas. Voltarei depois com algo para o senhor comer e lhe ajudarei na arrumação da igreja.

_ Já fiz meu lanche. Não precisa.

_ Vou cuidar de você. Relaxe.

_ Não fale desse jeito. Por favor.

_ De que jeito?!

_ Desse…

Saiu e por pouco não ele correu atrás dela pela igreja implorando que ficasse. Ouviu seus passos sumindo ao longo da nave e voltou ao quarto. Caiu na cama entre lágrimas e medos. Era um padre e aquilo estava lhe consumindo. A quem recorrer? A quem contar minhas loucuras? “Meu Deus, livra-me deste cálice”.

Na missa das seis horas não a viu, e também ela não trouxe a comida. Mandou um garoto entregar. Celebrou a missa e logo em seguida retirou-se para não ouvir confissões. Precisava de confissões, naquele momento. Entrou no seu quarto e deitou-se depressa. O sono parecia não querer vir e girava de um lado para o outro, agonizava em silêncio aquela dor. Via nos umbrais da porta aquela imagem, a silhueta, e sua forma era presente em cada canto do quarto. “Estou ficando louco”. Aquela mulher o perturbava, sem perceber. Desejou seu corpo naquele instante? Quis sua boca, seus seios, sua vida? Masturbou-se compulsivamente, depois caiu desmaiado no chão frio. Um pranto o consumia. Uma ira o dominava. Reconheceu que lhe faltou fé para não trair. Mesmo que em pensamentos.

Já passava das dez horas quando uma mão leve tocou-lhe os ombros. Sentiu um cheiro de café fresco. Assustou-se ao vê-la segurando uma bandeja com café, leite e torradas.

– Bom dia, padre. Dormiu bem?

Era como se soubesse da sua tormenta. Era como se ela tivesse estado com ele durante toda a noite no quarto. Parecia que a masturbação não tinha existido, mas sim que um ato sexual violento e feroz entre os dois tinha acontecido.

– Que horas são?

– Quase onze. O senhor não tinha missa cedo?

– A igreja? Quem fechou as portas?

– Acalme-se. Dona Júlia, a beata, fechou.

Novamente fixou meus olhos naquele corpo. Fitou-o com mais intensidade, pois o dia agora era seu cúmplice naquela dura missão de padre e homem ao mesmo tempo. “Meu Deus, ela é linda, maravilhosa”. Segurou a xícara de café e ainda trêmulo diante daquele corpo, quase a lhe provocar um desejo, saboreou o café com torradas. Ela o olhava com candura, quase constrangendo-o. Jogou de lado a xícara e a tomou nos braços. Sua boca colada à dele, sua respiração lhe fazendo respirar ofegante, seu corpo quente e a pele macia... e o punha deitado em pensamentos.

_ Padre. Padre.

Voltou a si. Aquela mulher de tantos homens estava diante dele e não sabe o padre se seria capaz de saciá-la. Olhou-a por alguns instantes e depois retirou o olhar da presença inquieta da moça.

– Por favor, vá embora. Me deixe só.

– Mas...

– Por favor, não me torture mais. Por favor.

Deixou seu corpo cair sobre a cama, chorou copiosamente e não viu mais nada. Apenas ouvia o silêncio de sua agonia, a dor de sua escolha. “Deus! Deus! Afasta de mim este cálice”.

Quando chegou ao altar a primeira visão que teve foi a de duas pernas a lhe “olharem”. Era como se aquela carne lisa e branca dissesse: “Padre, venha ao meu encontro. Venha ver como sou saborosa.” Buscou olhar para a cruz e a desviar os pensamentos. Começou a celebração.

– Amados irmãos, sejam bem-vindos à casa de Deus.

Ela percebia a angústia nas palavras de Olavo. Vivia a sua dor. Suplicava-lhe com os olhos para que o deixasse em paz. Mas ela insistia. Ela teimava em provocar sentimento de dúvidas no padre. Dividido entre suas escolhas, começou a perder o sentido das palavras, já não mais se ouvia, já não mais se entendia.

– Vá de retro, satanás!

Bradou e percebeu que estava enlouquecendo. “Meu Deus, meu Deus”. Saiu dali numa carreira louca, tentou esconder-se, tentou não existir. Ouvia os rumores das pessoas que, sem entender nada, começaram a comentar. Ficou apreensivo, achou que poderiam levar ao conhecimento do bispo. “Ah, Deus!”. Gritou em alto e bom som. Estava nas últimas. Estava só.

Passou a celebrar a missa somente aos domingos. Precisava não vê-la. Durante o dia a igreja era aberta apenas para as orações dos fiéis. Estava sempre trancado em seu quarto e nunca ouvia ninguém, exceto se fosse para lhe ajudarem com a comida, roupas ou arrumação da igreja. Tinha recebido auxílio de dona Júlia, que agora era sua cozinheira, lavadeira e arrumadeira. Era a única pessoa que sabia onde ele estava. E assim ficou durante trinta ou quarenta dias. Orando muito, buscando se libertar e definir a sua vocação, ou talvez um outro motivo que na sua verdade estava sendo prejudicado.

Estava quase conseguindo, tinha, nesses últimos dias, tido a confirmação do que fazer. Sabia agora o caminho a seguir. Depois de sessenta dias aparecendo somente aos domingos e uma única vez no dia, retornou às atividades normais. E já na segunda-feira abriu a igreja às seis da manhã. Ali estava a tentação sublime a esperar por ele.

– Não aguento mais, padre. Por favor! Decida-se.

– Eu sei o que estou passando. Eu sei da minha dor.

– Padre, vamos nos amar. Vamos nos entregar ao prazer.

– Deus! Deus!

– Padre, eu não entendo. O senhor me deseja, o senhor me quer. Eu sei. Eu sinto.

– Você não entende. Sou um padre. Sou um homem de Deus. Fiz um voto.

– Esqueça esse voto, olhe para mim. Me tire desta vida de lama. Me ame, me ampare.

Saiu dali e foi para o quarto. Ouviu os passos da moça indo ao seu encontro. Ela entrou e se jogou aos seus pés.

– Por favor, padre.

Saiu novamente de sua frente. Ficou em pé de costas para ela e recebeu o carinho, o afago de suas mãos percorrendo o seu corpo. Sua boca deslizava entre seus cabelos, seus dedos acariciavam-lhe o peito, seus lábios o beijavam a nuca, as costas. Foi se entregando, foi se envolvendo. Beijou-lhe a boca e tocou seu corpo como se tocasse uma virgem pura. Abraçou-a com mais força, sentiu seu membro enrijecido a tocar suas intimidades. Foi despindo-a, foi vendo sua pele nua. Estava deliciado com aquela sensação de prazer. Estavam no quase finalmente de suas loucuras quando teve um estampido de lucidez.

– Vá embora! Deixe-me.

– Eu lhe amo, padre. Me salve, me ajude.

– Eu não posso. Vá embora.

Empurrou-a e saiu novamente. Foi aos fundos da igreja e sentado no chão chorou muito e começou a se bater na tentativa de purificar-se do pecado, ou de uma culpa secreta. Não ouvia mais nada. Nem passos, nem vozes, nem soluços. Apenas perambulava pelo seu cérebro a dor e a angústia. “Deus, perdoe-me. Pequei contra ti”. Nessa lamúria triste e solitária permaneceu por longos minutos, longas horas. Adormeceu ao relento.

Chegou à estação de trem às sete horas da manhã. O trem sairia às oito e quis logo se acomodar. Estava muito frio e buscou um café quente para acalantar sua alma. Depois acendeu um cigarro e entrou no vagão. Fitou a janela e passou a se concentrar no nada. Não quis ver ninguém, nem saber quem era o seu parceiro de poltrona.

– É proibido fumar aqui.

Aquela frase despertou no padre uma sensação até então desconhecida. O que não era proibido na sua vida? Fumar? Beber. Um gole de vinho? Beijar uma mulher? O que ele poderia fazer, afinal? O trem começou a sua arrastada viagem e com ele se arrastavam também as suas dúvidas. Na verdade sem nenhuma certeza de coisa alguma rumou para seu lugar preferido. A casa de seus pais, e dali nunca mais sairia por qualquer que fosse a razão. Era o que ele imaginava que aconteceria.

Uma súbita felicidade o tomou naquele instante. Tinha consigo uma convicção de ter tomado a decisão correta. Amar uma mulher seria como amar um forno em chamas. Não era o seu mundo, não tinha nascido para aquilo. O sacerdócio lhe despertou outro sentimento mais forte e mais profundo. Agora estavam maduros os seus ideais. Era só voltar para casa e ir ao encontro deles.

Mas o mais bonito disso tudo era rever seu grande companheiro, a pessoa que durante todos esses anos lhe deu forças para continuar, para permanecer firme na proposta por ele defendida. Reveria Frederico e seriam, de novo, uma dupla inseparável. Desta vez com a maturidade necessária para uma aproximação mais íntima.

Nas suas cartas Fred lhe disse que não conquistou seu sonho de aviador, não se casou, não teve filhos e por lá ficou até montar um negócio pequeno no ramo de peças para motos. Quando soube disso, a princípio ficou triste e depois num momento de puro egoísmo felicitou-se por saber que um dia, se voltasse à sua terra, o veria todos os dias.

_ “Ele estava lá me esperando e aquela mulher quase me furtou esse prazer. Mas fui fiel ao meu sentimento. Fui fiel a Fred”

VALBER DINIZ
Enviado por VALBER DINIZ em 06/08/2010
Reeditado em 12/06/2018
Código do texto: T2422272
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.