Silhuetas de Uma Saudade
A rua de calçamento de paralelos uniformes, ladeada por calçadas de largos meio-fios de pedras trabalhadas, onde os velhos Buick's, Pontiac's e Oldesmobile's avançavam, não muito velozmente, batendo seus pneus balões de largas faixas brancas, num característico som do impacto das borrachas nas reentrâncias calcetadas da antiga artéria.
Não só os automóveis, como também os velhos carroções puxados por burros ou cavalos dos velhos fretadores e aqueles tracionados por homens que vendiam frutas e verduras, numa espécie de balcão sobre rodas, com o anunciante oferecendo seus produtos através de um amplificador cônico de latão: - 'olha a manga, banana e laranja...'
Sigo a passos lentos e, atento a cada emenda do solo até a próxima esquina, e depois de atravessá-la, continuo o vagar de minha caminhada, como que contando meus passos até onde possa chegar e, sem destino prévio, alcanço o pequeno ‘larguinho’ que dá início a duas das mais famosas artérias do Bixiga.
Estou na Rua Santo Antonio, na metade do século passado, e posso ver a íngreme subida da Rua Treze de Maio e o leve aclive da Rua São Domingos. Às minhas costas está a Rua Delegado Everton, pequena ladeira que finda na Avenida Nove de Julho. Estou na esquina da padaria, esquina da Rua Santo Antonio, e observo as pessoas comuns do lugar, reunidas em animada conversa cujo tema gira em todos os assuntos.
Ali estão o Tito, Amadinho, Belém, o velho Campanha (com pinta de mafioso mas, gente boa). Vejo meu pai conversando com Jamil e o seu Benjamin, pai do Amado (o outro Amado) e avô do Ninho. A padaria, neste momento, está com grande movimento de pessoas que compram seus pães para a noite que já vem se aproximando e alguns 'bicadores' estão a postos no balcão do café, tomando seus aperitivos como num 'happy hour' de um dia estafante de trabalho. O comércio local é efervescente, com as pessoas se revezando em suas compras. São mercearias, farmácias, padarias, tinturarias, oficinas e pequenas fábricas de doces, gráficas e bares.
No início da Rua Treze de Maio tem a barbearia do Egydio que a estas horas tem um movimento razoável e, à sua porta, um relojoeiro conserta os relógios 'Cyma' e lubrifica os 'Omegas' para seus clientes mais frequentes. Há alguns relógios aguardando peças de reposição também. Eu avanço por entre as pessoas e vou ter com meus amigos da vizinhança. É hora de esperar pelo Luiz Lambert, que me ensina as primeiras notas e acordes de violão e já tenho em mente uma música do Roberto para treinar. Enquanto o meu professor não chega, reúno-me com os demais de minha turma.
Lá estão Nêgo e seus irmãos Gilmar, Beto, Mizinha, todos da família Avoleta, Genarinho, Eduardinho e o Natal (Zé Mendes para os íntimos). Vez em quando aparecem o Ariovaldo e o seu primo Aristeu (fã do Erasmo até no vestir) e o 'doido' Moacyr, que mora na maloca junto da casa dos Avoleta. O movimento da rua cresce com as pessoas chegando de seus empregos, em busca da tranquilidade de seus lares e, um pouco mais distante, observo o caminhar apressado daquele que viria a ser um dos maiores dramaturgos da televisão brasileira, Vicente Sesso.
Sua casa ficava no quarteirão seguinte ao meu e lá estavam seus pais, o Tenente Sesso e dona 'Mena', senhora muito simpática que sempre me oferecia um bom prato de arroz-doce bem canelado, que eu declinava por não gostar da tal iguaria. Seu filho, o Marcos Paulo, já dava os primeiros passos para o estrelato dos seriados e telenovelas e nunca se deixou enlevar pelos holofotes da vaidade. Manteve-se sempre na originalidade e humildade de bom colega de rua (quando tinha tempo), pois seu pai exigia muito de seus estudos.
Outro que emprestava a sua simpatia contagiante era o Agostinho dos Santos, que naquele tempo já fazia sucesso com musicas de Dolores Duran e composições próprias. Seus pais moravam no mesmo endereço do Vicente e do Marcos Paulo. De bom papo, Agostinho gostava de se reunir (quando por lá estava) com a turma da esquina e, por várias vezes, era surpreendido em animadas conversas versando sobre futebol, política, mulheres e trabalho. Assim era a vida lá na esquina.
Apanho-me agora observando o movimento da avenida Nove de Julho, com o movimento dos automóveis, formando um já quase congestionamento com aqueles que se dirigem para suas casas. Dá até para identificar o Cadillac do Conde Chiquinho Matarazzo, aquele da placa de nº 1, preso entre ‘Itamaraty's’, ‘Sinca's’, ‘Alfa Romeo's’ e ‘Aero Willys’. Há também os ônibus da CMTC e de outras empresas e vários ‘DKW's’, também alguns taxis. De volta à minha turma da rua e já estando a noite a nos cobrir, é a vez dos velhos postes da Ligth mostrarem o seu romantismo ao acenderem suas lâmpadas incandescentes e tenuamente iluminar os vagos trechos das calçadas, clareando o caminhar de alguns alunos dos cursos noturnos que por alí passavam, ou alguns retardatários que para seus lares se dirigiam.
Nossa turma então se envolvia nos folguedos e nas brincadeiras às quais éramos acostumados como cachuleta, pula-carniça, pique-esconde, mãe-da-rua etc. Com a chegada de meu 'professor' de música, o Luiz Lambert, eu abortava das brincadeiras e passava a dedicar-me no dedilhar das cordas de meu violão, buscando o acorde perfeito para tocar o mais recente sucesso do Roberto Carlos ou algo mais difícil como Beatles. O Amadinho, filho do Tito, ensinou-me algumas notas 'dissonantes' para bossa nova. E Jorge Ben foi disparado e exaustivamente treinado em seu 'Mais que nada', até que aprendi.
Enquanto o Vicente Sesso 'arregimentava' alguns garotos para fazerem parte do comercial do 'Ovomaltine' na TV Record (meu irmão ia e gostava de beber aquela coisa - argh!), nós nos dirigíamos para a TV Excelsior - Canal 9, na Rua Nestor Pestana, e participávamos dos programas de auditório. Muitas vezes nos 'trombamos' com o cantor Paulo Sérgio, que sempre chegava em uma Limousine Cadillac 1962, igual à do Roberto; as garotas faziam um verdadeiro carnaval na tentativa de agarrá-lo. Com o passar das horas, dirigíamos-nos, cada um para o recolhimento de seus lares. Tenho a obrigação de levar o Natal até sua casa, onde sua mãe, dona Nair, e suas irmãs, Cristina e Diana, o esperam. Ele mora perto, num edifício conhecido como 'bolo de noiva', na Praça Craveiro Lopes.
Demoro-me um pouco e, despedindo-me de todos, prometemos nos ver no dia seguinte para mais um dia de novas aventuras. Retorno à minha casa observando o vazio da noite que se aproxima ao alto das horas. Agora, somente alguns poucos passantes e um ébrio a cantar velhas músicas de Vicente Celestino e Chico Alves varariam o silêncio da noite que anunciava a chegada, em breve, da madrugada de um novo dia. Em casa, meu pai folheia as páginas do seu jornal e minha mãe ultima as arrumações da cozinha, enquanto meu irmão está ao telefone em namoricos com alguma 'incauta' das redondezas e fora delas.
Meu pai ainda não jantou e quando se prepara para fazê-lo, de pronto me posto ao seu lado para dividir sua lauta refeição e sobremesa, no que era, de imediato, repreendido por minha mãe. Mas, não tem jeito, sempre foi assim. Vantagens de um filho caçula. Terminada a refeição noturna, preparo-me para tomar um banho, o que é feito na base da bacia. Isto porque, em algumas das casas, naquela época, os banheiros eram destacados do interior das casas e ficavam nos quintais; as noites frias desencorajavam qualquer um de efetivar tal 'viagem'. O jeito era tomar banho de água fervida na bacia e na cozinha mesmo.
A noite avançava e a madrugada já se anunciava. Na rua, apenas alguns sussurros e os passos solitários de algum caminhante. Vez por outra um automóvel, e depois, o silêncio.
Ligo o meu pequeno rádio de cabeceira e em volume bem baixinho ouço as músicas calmas e bem orquestradas que me embalam no sono, para acordar na manhã seguinte e retornar às rotinas de um novo dia: café da manhã, escola, atividades diárias etc.
Mas, qual nada. Acordo e deparo-me com a realidade atual. Já não estou mais naquela época. Tudo foi um sonho, um devaneio de minha mente. Estou longe de tudo e de todos. As pessoas, alguma não mais existem. E a velha esquina ainda está por lá, agora com novos participantes e um cenário bem diferente daquele com o qual vivi e sonhei. No turvamento de meus sonhos ficaram tão somente as silhuetas de uma saudade que não voltam mais.