A Greve

O relógio marcava metodicamente os minutos. O “tic tac’ do aparelho, rompia o silêncio do inicio de manhã daquele dia. O velho relógio sinalizava 05h15 min. O mês era junho, o ano 2007, numa cidade qualquer do cerrado brasileiro.O frio cortava a alma daqueles que o ousavam, desafiá-lo. Maria de Lourdes acordara naquele minuto 15, do dia 25 de junho de 2007, como o fazia de segunda a sábado.

No quarto e sala da periferia da cidade, os móveis eram escassos, resumiam-se: a uma velha cama, uma cômoda, onde se ajuntavam as roupas, um velho sofá, uma pequena TV, colorida. Um fogão e uma mesa, nessa se amontoavam algumas panelas, dois pratos, uma faca e alguns garfos; colheres e recipientes de vidro de extrato de tomate vazios, que eram utilizados como copos para beber água e outras bebidas.

Lourdes levantou-se, ao passar pela sala, percebeu que o filho não dormira em casa naquela noite. Estava um pouco atrasada, nem pode dispensar muita importância ao fato. Logo se dirigiu a um canto da sala, que também servia de cozinha, e preparou um café, digerido com algumas fatias de pão adormecido. Preparou a bóia do dia... Fechou a porta e partiu para mais um dia de trabalho.

Maria trabalhava no serviço público de limpeza da cidade, ela era agente de limpeza urbana, popularmente conhecida como: gari. Naquele dia, Lourdes não conseguia se concentrar no trabalho, a cada segundo o fato do filho não ter passado a noite em casa, lhe angustiava.

Aliás, há muito tempo, o menino estudioso e pacato, que tinha o sonho de ser jogador de futebol e tirar a mãe do trabalho, se transformara no garoto problema: as bebedeiras eram constantes, as reclamações idem; o juizado de menores era freqüentador assíduo do barraco de Lourdes. Mas uma desconfiança maior afligia Maria: que o filho Gabriel, fosse usuário de drogas.

Gabriel, como a maioria dos garotos da periferia crescera sem pai. Esse, fora assassinado com 4 tiros no peitos, um crime ser resposta até os dias de hoje. Este fragmento de história era tudo que Gabriel, sabia acerca do pai. A mãe também pouco ou quase nada falava sobre o trágico episódio. E assim Gabriel foi crescendo, já estava com 16 anos, e a vida era dura. O salário que a mãe ganhava a duras penas, mal dava para pagar o aluguel do velho barraco. O que sobrava do dinheiro era usado para alimentação. As roupas de Gabriel eram velhas e as “novas” eram na sua maioria roupas usadas, vinham das doações que a mãe ganhava da igreja.

Gabriel largara o futebol, e também a escola. E isso tudo afligia Lourdes.

Depois de uma manhã de trabalho duro, Maria, sentou-se a sobra de uma mangueira, retirou da mochila uma marmita, uma garrafa com água. De uma sacola, que se encontrava no bolso esquerdo da mochila, desembrulhou uma colher. A refeição estava gélida, seria ingerido, assim mesmo: bóia fria.

Um pouco de arroz, branco, de uma brancura fresca de porcelana. Alguns caroços de feijão que podiam ser contados nos dedos das mãos. Um ovo, e um pouco de macarrão. Estava composto o quadro da ceia de Lourdes.

A comida sempre era saboreada com prazer e alegria, apesar de Maria sentir uma franqueza, durante a tarde, pois não precisa ser nutricionista para saber que aquela refeição não supria a necessidades nutricionais para o árduo labor de Lourdes.

Contudo, naquele dia a refeição, engastalhava-se na garganta da agente de limpeza, um mau pressentimento tomava conta do seu ser. Um pássaro riscou o céu azul do cerrado, grunhindo, em pleno sol do meio-dia. De repente como num presságio: Uma forte dor tomou conta do peito esquerdo de Maria Lourdes. Não tardou mais de 5min, para que o coordenador do turno da limpeza viesse dar a noticia que Maria, já pressentira: O filho fora assassinado. Motivo: divida de drogas.

Quis gritar, faltou-lhe a voz, quis correr, faltaram-lhe as pernas, quis chorar, as lágrimas não vieram. Restou-lhe resignada o silêncio. Um silêncio, assustador e perturbador.

Lourdes deixou a marmita, junto ao tronco da mangueira. Entrou no carro e partiu rumo ao encontro do filho jaz morto.

No caminho, passou em frente à igreja. O relógio implacavelmente marcava 13h, o sino tocou. Da janela do carro Maria Lourdes, olhava a praça, pessoas caminhando apressadas, um homem fumava um cigarro, uma criança corria atrás dos pombos, esses se erguiam espavoridos no meio da água da fonte e em vôo desapareciam. A fonte no centro da praça jogava água para o alto, essa (a água) caia em gotas, como de orvalho e assim a grama ao lado da fonte, ganhava um aspecto de relva molhada ao amanhecer.

O vento soprava sorrateiro, arrastando uma lágrima fria, que corria metodicamente no rosto queimado de Maria. Mas as lagrimas não vieram em abundância, cessaram.

O carro parou, ela desceu, ao tocar com a perna direita no chão, desequilibrou-se. O trágico quadro, pintado pela vida, fez com que ela quisesse voltar para o carro e lá se refugiasse... Hesitou, apenas por este instante. Recompôs-se, passo firme, passadas largas e decididas. O sol castigava naquela hora do dia. O asfalto abrasivo, o cheiro de sangue, a atmosfera causava náusea aos presentes. Maria aproximou-se de Gabriel, ele a fitava com o olhar, perdido. Ajoelhou-se, passou a mão esquerdo no rosto dele. Fechando-lhe os olhos. Sentou-se, colocou a cabeça de seu rebento no meio das pernas. Como se ele estivesse dormindo, cantou uma cançoneta de ninar, bem baixinho no ouvido dele. Despediu-se, desejando-lhe boa noite, como fazia quando ele era pequenino. E ali Maria, esperou, esperou, esperou. A tarde foi-se embora, o sol abrandou-se. O crepúsculo invadia a tarde e contaminava a noite. Nesse ínterim algum tempo se passara. E nada se modificara, a noite já perdera a sua validade, e cheirava a cal úmida. Ninguém veio buscar o corpo, pois o IML estava em greve.

Fim.

Edergênio Vieira
Enviado por Edergênio Vieira em 03/08/2010
Código do texto: T2416500