JUSTIÇA...
Que o mundo não é justo, isso eu sei.
- Mas não precisava exagerar. Afinal, olha comigo: Tu sai pra uma festa com os amigos, certo? Sabe como é festa: No aquecimento, vinho tinto seco; antes de sair, whisky; antes de entrar na festa: caipira gelada; dentro da festa: cerveja ainda mais gelada. E assim nós vamos... Quem fala que não se deve misturar bebidas, certamente não sabe aproveitar a vida.
O agito ia bem, a mulherada estava louca, nunca vi coisa igual! A comemoração era de final de semestre letivo e início de verão; vai calculando. Tudo indicava que a noite seria épica... entretanto... entretanto. Sempre tem um entretanto: um espertinho metido a valente pisa no meu pé, do nada. Àquela altura eu já estava mais pra lá do que pra cá; nem esperei as desculpas, meti-lhe um bordoasso do lado do ouvido do sujeito que deixou o telefone ocupado por uma semana. Quis revidar... coitado! E eu faço academia três vezes por semana, judô outras três, pra quê? Como ensinam as regras da minha arte marcial, me defendi: Dei-lhe uma gravata no espertinho e arrastei ele pra rua; os guris apareceram não sei de onde e, mal eu tinha saído, eles já começaram a dar socos e chutes no cara que, sozinho, no meio de uma multidão de mãos e pés, tentava revidar com mata-leões perdidos e desorientados. Não sou homem de abandonar os companheiros na hora da dificuldade, então calculei o momento que o cara abriu a guarda e meti-lhe um soco, em cheio, no meio das fuças. Nem precisou de outro. O fracote apagou, e caiu num tombo estranho. Nunca comece uma luta que tu não pode terminar, amigo; primeira lei da vida.
Uma viatura da polícia estava parada na esquina, e os brigadianos chegaram rasgando, metendo o cacete, sem nem querer ouvir a história, sem nem querer ouvir a nossa versão do fato. O Marcelo, meu amigo, estava tão bêbado que meteu frente, quis brigar com os brigadas. Eu e o Pablo demos risada, horas depois. Claro que teríamos arrebentado com eles, nós éramos três e eles dois; mas, por favor, não somos bandidos, temos respeito pela autoridade. Seguramos o Marcelo.
Incrível como algumas pessoas tem o corpo frágil e despreparado. Não é que o tal cara me entra em coma? Quando um brigada veio nos contar, cheio de raiva no olhar, na sala do oficial, enquanto esperávamos nossos pais para prestar depoimento, quase não acreditei. Que é isso, nem foi pra tanto! Ficamos chocados. Se, na festa, eu soubesse que isso ia acontecer, teria dado uma segunda chance a ele.
Bem, na delegacia, a coisa esfriou, nossos pais chegaram com os advogados, metendo a boca em tudo que era brigadiano, prometendo processar Deus e o mundo, se isso é jeito de abordar uns guris, menores de idade, e isso-e-aquilo; lindo de se ver. Fomos embora em meia hora, exceto o Marcelo, que não é filho de ninguém. Passou a noite preso, e foi apontado como o principal agressor do pobre rapaz, que ficou paraplégico, mas não morreu; pelo menos isso. Eu e o Pablo conversamos com nossos pais e concordamos no depoimento: dissemos que o Marcelo se alterou um pouco; ele estava muito bêbado e pegou pesado nas pancadas. Foi preso. Não sei quantos anos. E nós pegamos seis meses de serviços comunitários, cada um. Eu tenho que vir aqui, três vezes por semana, ficar papeando com carinhas estranhos, que nem tu.
Terminei de contar e fiquei observando a figurinha pequena e desajustada, sentada a minha frente, olhos e ouvidos em atenção total, cheio de exclamações e suspiros a cada frase.
- Nossa, que loucura! O tal do Marcelo, esse, parece barra-pesada.
- Não é não! Gente finíssima. Mas, sabe como é, a bebida mexe com as pessoas. Fica longe dela, baixinho.
- Não posso mesmo beber, tomo medicamentos muito fortes, tarja preta. Mas me diz, como é uma festa? Tem muitas gurias bonitas?
- Há! Tu tá brincando! Dependendo da festa, a coisa bomba! Tem cada gata, sarada, que tu nem imagina... Decote, sainha, é tudo que o povo gosta. – o sorriso abriu-se em seu rosto inocente e infantil, louco pra ouvir umas safadezas. Lembrei-me da idade do guri: - Mas isso não é coisa que te interesse! Tu tens é que estudar. – fez um muxoxo:
- Ah, sem-graça! Agora que vinha a parte boa! – baixou a pequena e frágil cabeça e ficou a matutar alguma coisa. Fazia algumas semanas que eu tinha conhecido aquele menino peculiar, e sua presença já começara a tornar-se habitual para mim.
- É tua vez de jogar. – lembrei, mesmo percebendo que ele pouco se importava que a rainha estivesse quase decepada. Estava triste. Queria alguma coisa. Eu, irritado por me importar, odioso por me envolver, não consegui fingir que tudo estava bem: - O que houve, pequeno? Em que estás pensando?
- Não, não é nada, não. É que... eu estava pensando... deve ser bom sair por aí, podendo ir aonde tu quiser, à noite... Deve ser legal.
- Legal!? Que nada, esse mundo tá é perdido! Ninguém se importa com ninguém, ninguém quer saber de nada... Tu estás muito melhor aqui! – falei e ri, feito um idiota. Achei que o menino ia revoltar-se, me dar uma lição de moral por difamar o mundo que pra ele era o Paraíso; fez pior: baixou os olhinhos miúdos e não disse nada, numa careta que era quase de choro; o ofendi.
Ficamos em silêncio por um tempo; o guri, cabisbaixo, pensava, tranqüilo. Eu, inseguro, sem saber o que fazer com as mãos, olhava para os lados, tentando desviar o rosto daquela pequenina forma que tanto me afetava.
- Tu já foi à praia? – perguntou, subitamente, o menino, imprevisível, como qualquer criança.
- Sim, algumas vezes... – respondi, estranhando a pergunta.
- Como era?
- Ué, tu nunca viu uma praia? Nem na TV?
- Já, é claro. Mas a praia na TV é sempre a mesma. É a praia, ensolarada e cheia de gente, só isso. Eu queria saber que a praia existe de verdade, com dias vazios, dias feios, dias frios... Dias normais. Meu pai me disse que alguma coisa só é real quando não é sempre linda e perfeita, como a gente vê na TV, mas quando é normal também... Quando tem altos e baixos. E, pra mim, a praia não existe, ela é só uma imagem que vejo na TV. – O menino ia pensando e falando pausadamente, claramente. Os olhos castanhos derramavam vida. – Eu não sei como a praia está hoje, por exemplo.
Achei graça de tudo aquilo. Obviamente, todos os desejos e sonhos do menino estavam além de meu limitado entendimento.
- Hoje, na praia, deve estar... normal, sem graça nenhuma, ora. Estamos no inverno, é dia de semana... um tédio total.
- Como tu acha que está lá, agora?
- Ué, como eu acabei de dizer: normal! Não deve ter carros no calçadão; não deve ter gente na areia...
- E na água, será que alguém se arrisca? – perguntou, tirando as costas do travesseiro e começando a se animar com suas criativas visões.
- Claro que não. Nem no verão as pessoas tomam banho, mais. Está tudo poluído. Deve ter alguém passeando com o cachorro, alguém correndo no calçadão, mas só. Eu queria estar no Rio ou em Floripa, e não nesse Xilindró.
- Eu me contentaria em sentar na areia. – disse, desta vez sem tristeza, mas com animação, fechando os olhinhos para imaginar melhor. – Conta mais, conta mais!
- Contar mais o quê? Pra eu saber como está a praia, só se eu fosse lá!
- Bah!! Vai lá!! Daí sexta-feira tu me conta tudo! Baita ideia, adorei! Dá pra ti ir agora, tu não tem aula, hoje, né? Que legal! – animava-se o menino, de uma maneira que me fez rir, novamente.
- Ei, ei, ei... Eu não vou a lugar nenhum! O que vou fazer na praia, hoje?
- Me mostrar.
Em um primeiro momento, pensei em responder, explicar-lhe que ir à praia em plena terça-feira de julho, só pra contar ao menino qual é a cor do cocô de um cachorro qualquer, no meio da areia, era loucura. Que as pessoas normais não faziam esse tipo de coisa. Não era normal. Não tive coragem; jamais enfrentei olhos tão ameaçadores como aqueles.
- Tá bom, tá bom... Dou uma passadinha rápida lá, depois, e sexta te conto tudo sobre essa grande emoção...
- Yes!!! Obrigado, amigo.
Amigo.
Incapaz de falar, apontei para o relógio, que mostrava o fim do meu tempo, e saí, fazendo um “tchau” singelo com a mão aberta, abandonando a partida de xadrez e minha torre inconformada, já que estava com o “xeque-mate” pronto.
Dá pra entender este tipo de coisa? Eu, um cara tão seguro e auto-confiante, tendo recaídas sentimentais no auge da vida, e por causa de uma criança boba e sonhadora. “Que graça tem a porcaria da praia?”, pensava, enquanto dirigia para ela, quase solitário em meio à larga pista cinzenta.
O único som que ouvia era o hipnotizante motor de meu Golf, o qual me inseria em uma atmosfera leve e sonolenta, que embalava meus pensamentos. Com cabeça de moço, refletia sobre as injustiças da vida: estar preso em um corpo inerte, como o rapaz que me provocara na festa, não era injusto; era crime e castigo. Ele fora o responsável por sua condição. O mundo funcionava. Mas um menino, alegre e bobo como qualquer guri, preso em uma cama de hospital, em meio a doentes terminais, logo no início da vida... Isso contrariava minha tão elaborada lógica. Sinto muito; era demais pra mim. O pobre ainda era feliz. Nem imagino como isso era possível, estando preso a dores constantes e remédios amargos. Mundo injusto. Vida estranha. Lágrimas rolaram de meu rosto, uma dor tomou conta de meu peito; queria fugir, gritar, chorar copiosamente... Uma náusea tranquila fez meu mundo girar numa cadência desconexa. Era minha consciência regurgitando todos os sentimentos que há muito tempo eu escondera em um porão escuro. Vida dura.
Neste contexto, a praia surgiu diante dos meus olhos como uma visão quase redentora: a água esverdeada, que derramava um grosso limo na areia, dançava calmamente, produzindo um som suave e ao mesmo tempo violento; a areia amarelada, cheia de focos de capim e fezes de animais, descansava sob um céu acinzentado e era varrida por um vento enfurecido...
...Nunca me parecera tão bonita.
Em um ato-reflexo, a compreendi. Na sujeira comum, na feiura própria que contesta a beleza falsa e cínica, residia a vida, pura e simples. “Algo só é real quando não é sempre lindo e perfeito, mas normal também...”, não foi isso que o menino dissera? E foi gratificante perceber que mesmo o podre, mesmo o feio, merece um lugar no espaço, merece o sopro do mesmo vento que sopra no Paraíso.
Meu olhar perdeu-se no horizonte.
Chorei.
Chorei pelo rapaz que, estupidamente, espanquei, roubando um pedaço de sua vida.
Chorei pela estupidez humana, que, mesmo tão podre, finge não possuir imperfeições, em busca de uma beleza perfeita fictícia, falsa.
Odiei-me.
Lentamente, caminhei em direção ao horizonte e, retirando a roupa lentamente até ficar inteiramente nu, entrei na água.
E a água suja me limpou.
Na sexta-feira, acordei cedo. Ainda um tanto chocado com a intensidade das revelações feitas na praia, tal como o sobrevivente de um terrível acidente de carro, fui caminhando lentamente pelas ruas ensolaradas da bela cidade rumo ao hospital. Estava ansioso pelo reencontro com o menino, precisava contar-lhe que ele tinha razão, o mundo real não era apenas o belo e cinematográfico, mas, igualmente, o singelo e feio; o imperfeito, tal como eu. Era reconfortante cruzar por outras pessoas ciente de minhas próprias limitações, minhas próprias falhas; ciente desta minha imperfeição. Logicamente, naquele instante, estes conceitos apenas passavam por minha mente que, inocente, mastigava com dificuldades e tentava insanamente – com pouco êxito – compreender tudo que tinha visto, e por que eventos tão simples insistiam em povoar meus pensamentos. Minha vida não havia mudado, de fato, mas o primeiro passo, com certeza, fora dado.
Ao entrar no hospital, de forma inédita, e ao mesmo tempo súbita, chocante, senti remorsos pela agressão que cometi. E este “sentir remorsos” significava assumir a culpa. E senti remorsos, também, por ser fraco demais para declarar-me culpado e retirar meu amigo Marcelo da cadeia. É verdade que havia parado de me enganar a respeito dos fatos, mas minha mediocridade impedia-me de cometer o ato mais nobre: fazer justiça.
Depois de um mês cruzando os corredores lotados daquela emergência, pela primeira vez olhei para os doentes atirados sobre as macas e cadeiras, ou simplesmente caídos no chão frio e molhado da umidade. Percebi a realidade nua e crua, da qual sempre desviei o olhar ou a qual, simplesmente, fingi não existir. Eu, que sempre busquei a beleza e a diversão pura e simples, descobri no feio, no evitável, o sentido de minha vida.
Caminhei lentamente, fitando cada rosto, cada olhar suplicante vindo de baixo para cima, cada olhar que implorava uma solução daquele desconhecido que, não sabiam, era quem realmente merecia aquele intenso sofrimento. E eu sofria. Não tanto quanto eles – não serei hipócrita –, pois a dor física talvez seja insuperável, mas senti-me equiparado a eles por também sofrer, senti-me no lugar certo, já que eu, agora sabia, merecia este sofrimento.
Parei na frente de uma senhorinha, muito velha, extremamente séria, quieta, silenciosa em meio à agitação tumultuar do corredor. Não reclamava, não se queixava, mas uma mão espalmada sobre o estômago denunciava a dor que sentia. Encarei seus duros e profundos olhos, e ela tampouco evitou os meus. Após um segundo, pedi permissão para sentar a seu lado, no chão. Ela concedeu, sem palavras, apenas esticando a outra mão ao lugar vago.
- A senhora está sozinha? – indaguei.
- Certas pessoas não merecem a companhia de ninguém... – respondeu, após um longo instante.
- Então não se preocupe, somos dois ninguéns.
Não subi ao quarto do menino, aquele dia. Ou melhor, não entrei em seu quarto. Fui até a porta e o espiei, enquanto tentava convencer a mãe que seu amigo viria, sim, estava por chegar, devia ter dado outra passada na praia, para não perder nenhum detalhe, já que hoje eu iria lhe contar tudo. A mãe, talvez concluindo que eu não dava a mínima importância para o guri, tentava desestimulá-lo sutilmente, a fim de não feri-lo. Ele, no entanto, parecia cada vez mais animado, erguendo-se da cama a cada ruído do lado de fora. Não pude suportar. Fui embora, após aquelas longas horas sentado na fila da emergência, compartilhando a dor daquelas simples pessoas. Percebi que o menino esperava de mim mais do que eu podia oferecer-lhe: um amigo de verdade. Mas aquela alma angelical, ainda perfeita, não merecia minha tão imperfeita presença, imperfeição esta que ele próprio fora o responsável por revelar. No dia seguinte, solicitei ao juiz que me propusesse outra função até concluir minha pena. Ver aqueles olhos cheios de vida, cheios de esperança, cheios de beleza infantil, poderia ser o meu fim, ou o meu início; um início que eu não merecia. Minha vida já não era mais o belo, o esperançoso, mas o feio, o resignado. Eu não era merecedor daquela criatura perfeita.
Compreendo que muitos de vocês me odeiam. Alguns me desejam morto, assim como o filho, o amigo de vocês, agora está. Muitos acreditam que os estou insultando, vindo ao enterro desta pessoa tão amada de vocês, mesmo tantos anos depois; desta pessoa a quem tanto feri; a quem deixei em coma; a quem deixei paraplégico. Mas não vim aqui ridicularizá-los; tampouco vim pedir perdão: não o mereço, e bem sei disso.
Vim aqui hoje e contei esta história apenas para tranquilizá-los. Sei que muitos de vocês esperam fazer justiça pelo crime que cometi, mas digo que não se preocupem: minha redenção, minha compreensão de certos aspectos da vida resultou em um ódio eterno por mim mesmo. Aquele menino ensinou-me a verdade sobre a vida. Infelizmente, quando a descobri, já era tarde demais, pois descobri também que o rapaz que me encarava no espelho todas as manhãs era um monstro; um monstro que limitara de forma drástica a vida de um jovem e sonhador rapaz. Nunca me recuperei. Nunca me recuperarei. Nunca me perdoarei...
...A justiça foi feita.
A avó do rapaz morto, enrolada até a cabeça com um xale negro, sentada em uma cadeira bem perto do caixão do neto querido, balançava a cabeça negativamente:
- Tudo errado, tudo errado... Ele entendeu tudo errado... Tudo errado...
- O que foi, vovó?
- Nada, querida, nada...