Doce infarte
O som característico dos pingos de chuva confundia-se com seus passos ecoando escada abaixo.
Seus olhos calmos pousaram sobre a janela e suas mãos repousaram sobre os vitrais. Olhos azuis profundos como safiras observavam pacientemente o portão, enquanto a névoa pulmonar marcava o gélido vidro.
Meia volta fora dada, mais passos ecoaram através dos corredores, reverberando até a cozinha. Tranqüila, pegou uma taça do armário, levando-a até a mesa de carvalho, serviu-se então de vinho, tão rubro quanto seu vestido.
Parou rente a soleira da porta, levando a taça a sua boca, aquecendo-se com a acidez de seu conteúdo.
O som dos violinos de Vivaldi elevavam sua freqüência até seus ouvidos zumbirem, e sua mente divagar sobre aquele homem de paletó a qual estava esperando. Seus olhos cerraram e um calafrio correu em sua espinha.
No momento em que a porta abriu-se, um chapéu fora depositado sobre um tripé.
— Estás atrasado. Deveríamos ter saído já faz quarenta minutos.
— Não perguntei-lhe nada.
— Ora, ora. É assim que tratas a mãe de seus filhos?
— Filhos adotados! Nem ao menos de engravidares és capaz!
— Seus olhos estremeceram e sua face ruborizou-se enquanto seus sapatos trovejavam em direção aquele homem de paletó.
— Se ao menos fostes mais presente, talvez tivéssemos nossos próprios filhos.
— Se não fostes estéril, talvez tivéssemos filhos...
— Curioso, e suas amantes? Essas usam de anticoncepcionais e abortivos?
As mãos fortes marcaram aquela face ruborizada, e lágrimas ensaiaram correr em seus olhos.
— Não ouses usar desse linguajar para comigo! Lembra-te que se não fosse por mim, tu estaria na sarjeta!
— É! Compraste-me junto com as lojas de meu pai...
— Negócios são negócios. Agora arrume-se de forma decente! Não quero uma “bailarina mexicana” seguindo-me pelo baile, e traga-me meu conhaque.
Assim ela o fez, serviu primeiro o marido de conhaque, após trocou seu vestido por uma vistosa calça jeans, e os sapatos por um par de “All Star”. Abriu seu guarda-roupa, retirando as malas que de véspera estavam prontas.
Desceu as escadas, e antes de sair pela porta, olhou uma ultima vez para o marido, desfalecido ao chão, baba nos lábios e copo quebrado.
Cerrou a porta, e usou seu celular.
— Pronto papai! Agora temos outra rede de supermercado. Sim, foi infarte...