EXU ZOMBETEIRO

Para os Biólogos 2005/2 da UFRPE

Nossa ligação com a África vai muito além do aspecto abstrato. Temos a carga genética, a religiosidade, a língua e a ligação física cujos testemunhos estão no que hoje, politicamente, são os municípios do Recife, Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca. São rochas cujos encaixes, simetricamente perfeitos, estão no Gabão do outro lado do Atlântico.

Pangea o supercontinente original já havia se dividido em Laurásia e Gondwana e entre eles o mar de Tétis. Há mais de sessenta milhões de anos antes do presente, Vulcano o deus dos infernos, numa crise de fúria provocou um movimento tectônico que fragmentou Gondwana, cujos dois maiores pedaços são chamados hoje de África e América do Sul. Entre eles o Oceano Atlântico. Na linha da ruptura a cordilheira meso-oceânica em torno de quatro quilômetros abaixo da linha d’água é zona de intensa atividade, proporcionando o afastamento dos dois continentes à razão de 2,5 centímetros por ano.

O dia marcado para a excursão começou com aquela chuvinha fina, descompromissada, cuja intermitência em nada prejudicaria o trabalho no campo. O sol, vez em quando, se mostrava radioso. A aula prática estava prevista para durar oito horas e visitaríamos cinco sítios. Além de observar as evidências da ligação América/África, faríamos coleta de rochas ígneas, sedimentares e metamórficas. Ônibus lotado, material de campo conferido, chamada para verificação de presença concluída, seguimos para a primeira parada.

Margem leste da BR 408 na altura da Estação Rodoviária do Recife. Observar rocha granítica com injeções de magma nas fissuras. Descemos do ônibus com os equipamentos, GPS e martelo de geólogo para a coleta de três amostras para o laboratório da Universidade. Amostra deve ter tamanho bastante para que sejam observados a granulometria, densidade, sistema de cristalização, composição e tantos outros parâmetros exigidos pela cadeira de Geologia Geral.

A professora explicou o passo a passo e Tiaguinho foi o voluntário para fazer a primeira coleta. Depois de muita pancada, chega Tiaguinho, vitorioso, com uma amostra de rocha pouco maior que um limão. Depois do exame, a professora explicou em detalhes porque aquele caco de pedra não servia nem poderia ser considerada amostra. No mínimo teria que ser 10 vezes maior.

Esse afloramento tem a forma de ferradura e os adeptos das religiões de raiz afro vêm fazer a entrega de suas oferendas para os Orixás. Os exus são os mensageiros dos orixás e é sabido que essas entidades têm os mesmos comportamentos dos seres humanos. Podem ser brincalhões, raivosos, atrevidos, implicantes e vingativos.

Tiaguinho puto da vida por ver desperdiçado todo seu trabalho, por ouvir que sua “amostra” só servia para atirar em telhado de vidro, além da brincadeira dos colegas, atirou a pedra, com toda força, num alguidar cheio de farofa circundado por velas e fitas vermelhas e pretas. O alguidar se espatifou derramando todo o conteúdo.

Antes que tivéssemos concluído o trabalho, o sol se escondeu e a chuva grossa desabou molhando a todos sem que tivéssemos tempo de chegar ao ônibus. A partir daí começou, entre os colegas, a brincadeira de que o Exu estava se vingando da ofensa. Seguimos em direção ao afloramento que fica na margem oeste da BR 101, no Município de Jaboatão dos Guararapes. O sol bem forte saiu de dentro das nuvens de chuva e nos acompanhou até lá. Ônibus parado, desce todo mundo. A lama pelo tornozelo. A professora explanou sobre o afloramento. Fotografias foram tiradas. Anotadas as direções das rachaduras. Chuva torrencial sobre todos antes que tivéssemos tempo de alcançar o ônibus.

- Por conta do mal tempo eu acho melhor voltarmos e deixar essa aula para outro dia. - disse a professora.

Todos os alunos foram contra. Todos nós queríamos prosseguir. A professora concordou e seguimos para o outro sítio. O sol forte secou rapidamente a estrada. Próxima parada no Município do Cabo de Santo Agostinho, na margem sul da PE 60, para fotografarmos os matacões de rocha metamórfica resultado da decomposição hidrotermal do Feldspato. Talvez 150 metros de caminhada por dentro do mato rasteiro em solo encharcado. Antes de concluída a tomada de fotos, as comportas do céu abriram-se outra vez sobre nós. Voltamos para o ônibus sujos e mais molhados do que nunca. Três quilômetros adiante paramos para o almoço no restaurante do posto de combustível. Contrariando os cânones universitários e sem que a professora visse, tomamos todos, uma rodada dupla de aguardente. Mais uma vez a sugestão de retorno foi voto vencido. Seguimos para a Usina Ipojuca onde visitaríamos o cone do vulcão inativo muito desgastado pela ação do tempo, mas ainda bastante alto.

Pelo sol forte e pelo calor intenso parecia, mas só parecia, que a chuva havia ficado para trás. Subimos todos para observar o que fora a cratera e fomos surpreendidos por mais um aguaceiro daqueles. Em pleno temporal iniciamos a descida. O piso liso e escorregadio como quiabo derrubou, pelo menos oito em cada dez. De nada adiantou a corrente que fizemos com as mãos dadas. Assistíamos sob gargalhadas, os colegas caírem e deslizarem com a bunda no chão até lá em baixo. A essa altura estávamos com lama até os cabelos. Quando nos acomodamos no ônibus, a chuva parou.

Última parada Vila de Nazaré. A beleza do local é de tirar o fôlego. Lá em baixo o Atlântico, cor de esmeralda, bate com força no maciço de rocha cuja metade está muito além do horizonte. À direita, mais de cem metros abaixo de onde nós estávamos, o Porto de Suape repleto de navios. Entre nós e a água, em ruínas, o farol e a casa do faroleiro. Atrás, meio escondido na vegetação, o que sobrou do convento fortaleza do século dezoito. Sob nossos pés as fendas na rocha revelam a força descomunal daquele acontecimento. O encantamento do espetáculo foi quebrado pela chuva que outra vez caia sobre nós agora auxiliada pelo vento forte vindo do mar.

Voltamos para casa cansados, molhados, sujos, mas felizes pelo privilégio de ver de perto, poder pegar e entender mais esse fenômeno grandioso e de fundamental importância para a evolução das espécies e de toda forma de vida na Terra além de bastante assunto, para muitos anos de risos, por conta do exu zombeteiro de Tiaguinho.