ALZIRA
Alzira era filha de Antenor, um negro, morto por ocasião
de uma festa.
Da mãe dela não sei. Se me contaram não me recordo.
Eu me lembro bem de Alzira, era negra, mas a gente
só notava isso olhando nos cabelos, nos lábios
grossos, na forma achatada do nariz. Olhando por
dentro, no fundo dos olhos, Alzira tinha a cor do amor.
Não é branco, não é negro, não é amarelo; é
indescritível.
Cuidava de muitas coisas, a Alzira.
Cuidava até mesmo de mim.
De minhas birras, de minha insistência em irmos ao
riacho onde eu queria ser gente grande e andar sobre
as pedras sentindo a lâmina de água pouco acima de
meus tornozelos.
Quase sempre caia.
Caia e chorava.
Alzira punha-me em seus braços, acariciava, ria e
chorava comigo.
Por ocasião das festas cuidava dos enfeites de mesa,
da disposição das mesas, dos salgados e doces que
iam sobre os tampos guarnecidos de rendas das
mesas.
E Alzira cuidava de mim à mesa, porque eu era guloso
e me lambuzava com as delicias que Alzira preparava
no fogão de lenha.
Havia uma festa cuja preparação punha lágrimas nos
olhos de Alzira.
Quietinha, trabalhando no corte da lenha, ou florindo
as mesas, ou mexendo as massas nas panelas, ou,
ainda, me vestindo para ir à mesa, Alzira tinha os olhos
rasos de água.
Só muitos anos depois minha mãe me contou porque
Alzira chorava preparando aquela festa.
— Aquela incrédula era muito sentimental – disse
minha mãe - chorava preparando a festa de aniversário
de meu casamento porque durante a festa de meu
casamento mataram o pai dela. Ela nunca se
conformou.
Alzira só saiu de nossa casa quando se casou. Minha
mãe a confortou recomendando resignação. Disse a
ela:
— Não seja tola! Casamento por amor é ilusão de
moça. Com o tempo você se acostuma a viver com
esse mesmo, e vai ver que tudo acaba dando certo.
O marido talvez tenha tido uma vida de rei.
Ela trazia no coração a missão e o dom de servir.
(De meu antigo caderno de capa de pano.
Série sombras do casarão.
Iustração com base em imagens da internet)