APENAS UM MILAGRE

O sol entrava lentamente pela janela da sala, a qual trazia as cortinas abertas. Iluminava uma pequena xícara e um livro aberto que, esquecidos, ficaram no chão. Também a pouca mobília era banhada pela intensa claridade. E tudo era tão simples. Na sala apenas um pequeno sofá azul-marinho, uma pequena mesa ao lado com um abajur amarelo e uma também pequena estante de livros. Apesar do tamanho, a sala era bastante arejada. Se fechássemos os olhos e o vento batesse em cheio no rosto, a janela tomaria proporções gigantescas. Embora tivesse grades. Mas, no entanto, de olhos abertos pareceria uma cela? Uma alcova onde se esconde da sociedade uma infinidade de medos; ou um singelo santuário para o perdão de culpas não cometidas?

Era domingo e Ana entrou na sala. O dia já ia adiantado e, na verdade, desejava intimamente permanecer na cama para sempre. Mas não tinha coragem, pois pessoas a procurariam, talvez arrombassem a porta, e ela morreria de vergonha por ter desistido. O melhor era ir em frente. Então desceu do prédio em que morava há anos e foi à banca de jornais que ficava na esquina da rua. Desceu de boné e óculos escuros para não ser reconhecida caso encontrasse alguém. Quanto mais se escondia... Na portaria mesmo encontrou o vizinho que a olhava com olhos de quem olha um bichinho de estimação. Ficou desconsertada. O sangue subiu ao rosto. Cega por instantes eternos, sentia as chamas em seu corpo enquanto o devaneio a embriagava. Era como se o corpo nu estivesse exposto ao mundo em plena luz do dia. No entanto, esta sensação passou e logo recuperou a razão.

__Bom dia, Ana! – disse o rapaz sorrindo.

__Bom dia. Mas hoje não posso porque estou doente!

O vizinho chamava-se Bruno. Um doce de rapaz, sempre educado e atencioso, embora a deixasse enjoada. Ela não gostava de doce. E também não entendia porque ele repetia a mesma conversa todo santo domingo. Além do mais, falava pelos cotovelos. Nas vezes em que a visitava, após ter insistido a semana inteira, chegava quase ao ponto de enlouquecê-la. Andava de um lado para o outro perguntando sobre sua saúde, família, trabalho e, é claro, amores. Sempre discursava sobre o amor: amor disso, amor daquilo, amor daquilo outro... E era só chegar no “amor daquilo outro” que enfatizava com veemência e apaixonadamente, fazendo com que Ana se encolhesse toda no sofá. De fôlego recuperado, ela dizia que amor só o de Jesus Cristo e oferecia-lhe mais café. E assim eram as visitas: ele saindo cabisbaixo pela porta e ela fechando a porta nauseada.

Aquele não era mesmo seu dia, pois assim que fugiu de Bruno na portaria, o jornaleiro da banca também a reconheceu. “Que horror!”, pensou e ficou aguardando o troco de cabeça baixa.

Ao chegar ao apartamento, abriu o jornal no chão e estava ávida. Procurou, e procurou e procurou. Nada de milagres. Sempre esperava algo do jornal de domingo: talvez um emprego no qual pudesse crescer profissionalmente; talvez um curso que realizasse uma transformação radical em sua vida pessoal; talvez, quem sabe, um amor perfeito. Mas nada. Folheou página por página e finalmente desistiu. Começou então a andar pela casa. Precisava de alguém para conversar, mas acabara de ficar só: sem milagres e sem as companheiras que dividiam as despesas do apartamento. Chamavam-se Vandelma e Juliana. Conheceram-se por meio de um anúncio nos classificados. Marcaram de almoçar juntas e ouviu durante horas um discorrer das qualidades pessoais de cada uma. Ficou fascinada e nem acreditava na própria sorte, logo ela que de sorte sabia tão pouco, só chegando a ter contato com esta quando ganhou num bingo um par de sapatos de salto alto, os quais nunca chegou a usar porque não combinavam com as roupas que possuía. Então, feliz da vida, fechou o trato de irem morar juntas. Um mês depois, desconfiou que as qualidades relatadas naquele dia pertenciam a outras pessoas. Elas eram simplesmente o oposto. Mas como já era tarde demais para fazer algo, ficou a recolher os objetos que Vandelma espalhava pela casa e a pagar os excedentes telefônicos de Juliana. Entretanto, tudo durou pouco. Com um ano, elas resolveram ir embora porque necessitavam de ar, muito ar. Partiram sem despedidas e levaram de recordação a televisão de Ana. Esta ainda ficou um pouco deprimida, mas logo recuperou-se e deu uma festa para comemorar a liberdade; uma festa dela para ela mesma.

Gostaria de dizer “sim”, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Mas intimamente adivinhava que isso não seria possível. Havia aprendido que na tristeza e na doença os sonhos morrem; que alguém só suporta alguém na alegria e que a alegria de outro alguém separa dois “alguéns”. Por isso tentou várias vezes ter bom humor. Falhou. Não que fosse carrancuda, mas vivia preocupada com tudo. E aquela chama que as pessoas diziam existir em cada um não estava dentro dela. Porque sempre buscava e buscava mas nada era grande o suficiente para alegrá-la. E ela tentava. Toda segunda-feira, por exemplo, lutava para executar os projetos idealizados nos domingos. A vida parecia recomeçar neste dia: o grande renascer. O Deus, para o qual ela não rezava, dava-lhe uma nova chance. Mas Ana acabava renascendo velha e vivia a semana como uma sonâmbula. E no domingo seguinte a esperança gritava planos e sonhos: talvez fazer caminhadas; talvez ligar para os amigos antigos da escola; talvez, talvez, talvez... A segunda-feira chegava e ela pulava da cama na hora de sempre e com o desânimo de sempre. Um dia meditou sobre este assunto e jogou a culpa em cima do “talvez”. “Ah palavrinha agourenta!”, disse para si mesma batendo na madeira três vezes. E aí refez os projetos e se preparou muito, mas continuou acordando velha e cada vez mais velha.

Desejava ardentemente o futuro. Era como se a salvação estivesse ali em frente, a um passo apenas. Esquecia que o futuro acontecia num momento bem próximo: no agora. E era a desordem em preto e branco. Algo estava parado no presente e, de repente, se mexia quebrando a ordem para ser o futuro. Ou seria o contrário? A desordem do momento saindo para a estabilidade futura? Ria, ria muito. Pensava nisto e sentia alívio por saber que os físicos jamais saberiam de seus secretos pensamentos. E continuava com o bálsamo do futuro para o caso de vir a perder a esperança. Embora esta morresse todo dia e, teimosa que era, renascesse logo em seguida. Mas renascia cada vez menos verde.

Estava deitada pensando nisso, quando se lembrou de ir à caixa de correspondência na portaria. Talvez... E tinha mesmo! Era uma carta de sua amiga Arlete. Dizia que estava noiva de um professor de gramática chamado Anselmo. Estava feliz. Por esse motivo escrevia para Ana: ela não sabia o que fazer da felicidade. Porque quando se está triste o desejo de ser feliz sempre aflora, é um objetivo de vida. E agora que estava feliz sentia-se vazia por não ter o que desejar. “No estado de felicidade a pessoa é capaz de evoluir como ser humano?”, Arlete queria saber. “Ou daí nasceria uma espécie de egoísmo, uma nuvem vinda da felicidade que tapava olhos e ouvidos e poros?” Ela tinha medo do egoísmo. Não saberia como lidar com ele ou mesmo como se salvar dele. Arlete queria compreender. Por isso precisava da ajuda de Ana, mas Ana não saberia responder porque ainda estava no estágio do desejo. Limitava-se a desejar com um desejo desesperado e suado. Mas precisava ajudar a amiga. Então escreveu: “ ‘Não entender’ era tão vasto que ultrapassava qualquer entender_ entender era sempre limitado. Mas não–entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao Deus. Não era um não–entender como um simples de espírito. O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma bênção estranha como a de ter loucura sem ser doida.” Escreveu isto e não colocou o nome do autor porque não se lembrava. Não era boa nisto. No entanto a amiga Arlete certamente lembraria, pois era professora de literatura e tinha boa memória: era detalhista.

Quando a noite chegou, encontrou Ana na sala. Tinha os longos cabelos molhados e o ar cheirava a sabonete. Seria de erva-doce? Já estava também com roupa de dormir; um pijama delicado de cor azul, sua preferida, mas que tinha uma mancha escura entre os seios que, de tão tímidos, não ousavam aparecer. Era café, a mancha. Provavelmente acabara de derramar. E sem notar de tão distraída que estava. Tinha o pensamento longe revirando baús empoeirados e páginas envelhecidas. Às vezes apertava os olhos para tentar enxergar melhor: estava lendo na memória as minúsculas letras encobertas pela poeira. As velhas lembranças. Eram tantas, ah como eram tantas. Mas todas imaginadas ou lidas, nunca vividas. Algumas vistas à distância. Sabia também que logo cedo receberia um choque: a realidade pela manhã. Tinha bastante medo porque passara o fim de semana protegida em casa e seria obrigada a encarar ônibus e pessoas apressadas, também ela se apressando atrás de um tempo que já alcançava atrasada. Todos estavam atrasados em relação ao tempo e às mudanças.

Mas existia um prazer. Gostava de observar a vida das pessoas pela janela. O que não era por maldade. Fazia porque morria de medo e fascinação por gente, toda gente. Queria saber como elas tocavam na vida. E passava suas horas vagas com um binóculo e um caderninho de anotações. Anotava cada passo e cada emoção imaginada. Envolvia-se tanto e tão profundamente que chegava a chorar suas decepções. E tão intensamente que esquecia a própria dor. Às vezes chegava mesmo a seguir o rapaz da padaria. Ela achava-o tão indefeso com aquele brinco no nariz. E seguia também a empregada do segundo andar até o ponto de ônibus: queria ter certeza de que nada de mal aconteceria a ela. Mas se interessava realmente era pela menina do papagaio. Dava boas risadas com a gritaria do louro, aquela ave espalhafatosa de tanta alegria. Ah como se divertiam os três! E a garotinha de cabelos encaracolados escorregava sem frio na barriga pela realidade. E Ana, de espanto, sorria. Enquanto o louro dizia: “Acuncá, acuncá!”

Mas era domingo. Foi então para cama às 22 horas, em ponto. A cabeça pesava com os pensamentos que morriam e renasciam rapidamente. Não sabia nada e, naquele momento, não queria saber de nada. No entanto o coração transbordava: “Amanhã é segunda-feira e talvez o começo ou o fim de!” De quê? Mas não queria entender, queria o não-entender que, para ela, era o sim-viver. E deitou-se com o pijama manchado de café. E esquecia também de rezar: “Me faz bem, mas eu sempre esqueço!” Antes de fechar os olhos estremeceu. Era isto, havia lembrado. O nome da autora do verso que escrevera a Arlete era Clarice; Clarice de alguma coisa. Precisaria de tempo e noites para o que faltava, tudo o que faltava. Mas no momento não tinha importância, o sorriso em seu rosto valia muito mais. Estava também feliz. Acuncá, acuncá!

Recife, 28 de agosto de 1999.

Adriana de Castro
Enviado por Adriana de Castro em 27/07/2010
Código do texto: T2401767