O VELHO
Era velho para a vida e vivo para morte. Trazia o corpo triste e cansado. O rosto pálido com rugas profundas e olhos sem brilho mostravam o desânimo da alma. O mau humor imperava nos segundo, minutos e horas do dia. Reclamava do que tinha razão e do que não tinha. Na rua era motivo de imitações e gracejos. Às vezes alguém mais maldoso insinuava que todas as lamúrias não passavam de preguiça. Mas não a preguiça normal que as pessoas têm, era aquela bem forte que parecia um reumatismo insistente: escondia-se em uma junta do braço e depois, surpreendido em delito, passava para outro ponto do corpo sem a menor vergonha de ser um fugitivo. Na verdade, quase ninguém perdia tempo com o velho. A não ser quando a mania dele causava náuseas. A mais famosa era cuspir excessivamente na presença de várias pessoas.
Bastavam apenas três. Chegava meio de mansinho na roda e pronto, começava o cacoete. Até hoje não se sabe por quê. Ora parecia proposital, ora inocente. O que era claro é que muitos, e talvez todos, tivessem aversão ao velho. Era repugnante! O Sr. Marcolino, dono da padaria, ficava louco, o rosto vermelho qual pimenta malagueta. Porque tudo isso acontecia em sua calçada! E aí não tinha jeito: todo dia ele pegava uma caixa de sabão em pó para esfregar a sujeira que o velho fazia no chão. Chegou inclusive a ganhar o apelido de Vespertino, por executar a tarefa diária sempre às cinco horas da tarde, que era o horário em que o velho vizinho descia de sua fortaleza para colocar o lixo do lado de fora. O boato de que o Sr. Marcolino pagava com as esfregadas umas ofensas destinadas ao velho, anos atrás, corria pelo bairro. Mas esse era o comentário das más línguas e, aliás, elas sempre falam mesmo. A vida em si é feita de línguas. Têm de todo tamanho, cor e umidade. Umas são salgadas, outras velhas e poucos salivadas; algumas amargas como fel; outras recitam poesias e são doces; e ainda há as que falam sem parar e acabam por perder o gosto. É certo que o boato não foi comprovado, tampouco explicada a mania de cuspir.
Passava o dia trancado no apartamento. A iluminação era fraca e o ambiente bastante quente. Para um homem sozinho o espaço era desproporcional. O ar triste e sombrio impedia que o vento entrasse pela única janela aberta. Mesmo em dias de muito calor elas permaneciam cerradas. Sua desculpa era a preservação dos móveis. No entanto, este cuidado era inútil, pois o tempo encarregara-se de esculpir novas formas e escolher outras tonalidades. A empregada que morava com ele já não dizia nada e deixava tudo, ou quase tudo, por sua conta. No começo tentou fazer pequenas mudanças, mas o velho desfazia o trabalho da mulher, compondo a cena de antes.
Então, depois de algumas tentativas, finalmente desistiu. Às vezes ela ainda resmungava do calor, ele primeiro fingia não escutar, em seguida mandava-a descer para tomar ar. E assim, vendo-se sozinho, fechava a janela e vestia um suéter. Ia à biblioteca e sentava-se olhando fixamente para os livros. Erguia-se mais uma vez e começava a andar depressa. Ia aumentando a velocidade até alcançar um ritmo frenético: louco aos olhos de qualquer um. A camisa perdia a cor original com tanto suor, o suéter apertando e apequenando-o como recém-nascido abandonado numa lata de lixo de cidade grande. A testa pingando e ele correndo, correndo, correndo... Era como expelir a vida por meio do suor. E suava.
Sua grande paixão eram os livros. Lia e relia com prazer todos os dias. Quando tinha um livro aberto nas mãos era de causar surpresa. Ficava com ar sereno, quase gentil. Mas bastava fechá-lo para uma brisa obscura tomar seu rosto. Não se poderia duvidar, a biblioteca era uma espécie de santuário. Ninguém entrava lá. Dia de faxina, dona Luz insistia, insistia. Tudo em vão. O velho gritava, insultava e por fim escondia a chave. Pronto, morria o assunto. Um cerrava a cara de cá e o outro virava a cara para lá. A sala então ficava coberta por um pó que vinha da construção da frente. Esse pó, na maioria das vezes, era o grande responsável pelo insistente resfriado que o acompanhava. E se o velho Alves gozando saúde era difícil de se lhe dar, doente então se tornava intragável. Começava a aborrecer a mulher. Não se acostumava com o nome dela e dizia que deveria chamar-se dona Escura. Não pela cor da pele, mas porque considerava a velha rabugenta e infeliz. Na verdade nunca percebeu que ela era a única a se preocupar com ele. Um dia dona Luz não agüentou e disse-lhe isto, mas foi inútil. Ele riu, riu muito.
Vivia sempre para dentro e quando saía incomodava. A vida já não trazia surpresas e acordar todo dia fazia parte dos instintos. Quase sempre abria os olhos e ficava deitado, imóvel. A boca amarga após uma noite de sono. O engolir da saliva causava-lhe ânsia de vômito, mas não saía da cama. Era preciso um sopro de vida, daqueles que ficam escondidos nas trevas de nossas incompreensões, para poder despertá-lo. Levantava sonâmbulo. E após horas de olhos sujos e boca acre caía no automatismo dos gestos, sentimentos e raros sorrisos.
Mas um dia, apenas um dia, levantou-se cedo. Sentia-se vivo, o sangue quente pulsando nas veias arrepiava-lhe a pele áspera. O desejo de sair e viver o cegou por alguns minutos. Cego de tanto ver. Encontrou dona Luz na cozinha e, para espanto da mulher, deu-lhe um leve beijo no rosto. Abriu as janelas e o sol refletiu no espelho de canto, tornando o ambiente intenso e ferindo os olhos estatelados do homem. Abriu também a biblioteca e por alguns instantes contemplou o pedaço de papel que encontrara dentro de um livro, na tarde anterior. Nessa mesma tarde, o Sr. Marcolino não entendeu o atraso do velho: ficou à espera com a caixa de sabão nas mãos e olhos desolados. Mas o velho não fora. E agora contemplava o papel, tranqüilamente desesperado.
Ao fim do dia, morreu cheio de vida, sentado ao fundo de um ônibus que ia em direção ao Jardim Zoológico, despercebido em meio aos passageiros.