A MULHER COM AS FRUTAS

“Alguma coisa intranqüila estava sucedendo.

Então ela viu: o cego mascava chicles...

Um homem cego mascava chicles.”

(Amor, Clarice Lispector)

Abriu os olhos, depois de uma noite mal dormida, e sua vontade era a de ficar deitada para sempre. “Essas vontades que nos dão de vez em quando”, diria ela quando encontrasse pessoas amigas. Mas era necessário levantar-se. Então pulou da cama como alguém que estivesse muitíssimo atrasada, ligeira nos gestos, ligeira no andar, ligeira no pensar. Maria Clara era o seu nome. Vivia sozinha. “É tão bom morar sozinha!”, dizia quando indagada pelos outros, pelos curiosos que nunca a deixavam ser sem responder perguntas. Maria Clara estudava, trabalhava, lia muito, lia tudo o que encontrasse pela frente, inclusive bulas de remédio. A seção de encontros nos Classificados a divertia tanto! Deitada no sofá da sala, jornal aberto, xícara de café ao lado, ainda de pijama, pernas para o alto, risadas soltas. Era assim que os domingos começavam. Depois o telefone tocava e nenhuma surpresa em seu rosto ao dizer “Alô, Maria Clara falando”. Bia ligava sempre, todo santo domingo, pela manhã. Clarinha, como era chamada carinhosamente, contava dos classificados, da semana cansativa na loja de eletrodomésticos, dos recursos que lançara mão para esquecer o namorado. Horas e horas ao telefone.

Estava atrasada. Pegou a bolsa em cima da mesa – olhos sonolentos e mente desperta – e fechou a porta atrás de si. O ponto de ônibus ficava numa rua depois da sua. Àquela hora, não se viam tantas pessoas nas ruas. Certa sombra se insinuava entre casas e prédios, quando muito um gato que voltava dos namoros noturnos. Caminhou com os passos de todos os dias, a cabeça baixa, os livros nas mãos, um sapato que começava a apertar o pé. Voltar seria um desastre e continuar... Suplício. “Sapato novo, sabe como é!”, explicaria mais tarde, ao olhar repreensivo da gerente tão bem arrumada e perfumada. Algumas pessoas no ponto do ônibus desejaram-lhe um “Bom Dia”. Com raras exceções, eram as mesmas caras, todas as manhãs. Mas, um minuto apenas de preguiça, e o desencontro aconteceria. E Maria Clara dava-se conta da ausência do homem gordo e sério. “Será que perdeu a hora ou já se foi?” Os demais estavam lá. “Uma novata, vejam só!”, pensou ao ver a mulher alta com cara de esfinge. “Que mistério têm os olhos dela!”

A mulher misteriosa tomou o mesmo ônibus que Maria Clara. Como todos os dias, não havia lugar vago para sentar e ela dirigiu-se para a porta de saída. A mulher misteriosa ficou na entrada e encontrou quem, gentilmente, segurasse seus pertences. Já Maria Clara e uma mulher com uma sacola de frutas não tiveram a mesma sorte. Ambas ficaram de pé. E cada brecada do ônibus, as chacoalhava com violência. A sacola era transparente e lá dentro viam-se laranjas e maçãs. Maria Clara olhava a mulher com atenção e sensibilizava-se pela transparência do embrulho. A mulher com as frutas também era misteriosa: rosto de pedra tão bem construído que nenhuma fresta fora aberta para fazer o vento passar. “Duas mulheres misteriosas num mesmo dia?” De sobrancelhas franzidas, Maria Clara a observava. Esta, em cima de sua estrutura alta, magra, branca e que se viam indícios mínimos de envelhecimento, cristalizara o olhar a sua frente. Ao seguir esse olhar, Maria Clara deu-se com um homem de óculos escuros. Estava sentado. E fitava a mulher do rosto de pedra. “Será que se conhecem?” O homem mascava chicletes e a mulher do rosto de pedra estava hipnotizada pelos movimentos da boca dele. O homem parecia rir. Tal visão perturbou a mulher misteriosa, e perturbou também Maria Clara. Elas agora o olhavam e foi num mesmo momento que compreenderam: o homem de óculos escuros era cego. A bengala meio escondida atrás da perna esquerda. O espanto da mulher foi tanto que esta levou a mão à boca, enquanto o ônibus freava bruscamente.

Ao solavanco, a sacola que estava na outra mão da mulher escorregou, caiu no chão, abriu e laranjas e maçãs rolaram entre os passageiros. A mulher ficara com a sacola vazia na mão e olhos estatelados no cego que começava a levantar-se, enquanto Maria Clara apanhava a maçã que viera parar aos seus pés. Não entendendo nada, sem saber o que fazer, ela, com a fruta na mão, tentava pensar no que dizer para a mulher. Algo precisaria ser dito? O ônibus parado por quase ter batido no carro da frente. E foi quando o cego, tendo a mulher misteriosa em seu encalço e de sacola vazia na mão, saltou do veículo. Maria Clara, mecânica e hipnotizada, desceu logo em seguida e foi atrás dos dois: trazia nos braços, junto aos livros, uma maçã, uma laranja e a incompreensão do que estava sucedendo. Ao procurar com a vista, perdera a concentração por uns instantes ao lembrar-se de que chegaria muito mais atrasada ao trabalho, e viu: o cego estava numa esquina, de óculos escuros, mascando chicletes. O mascar dava-lhe a impressão de sorriso. Um cego rindo ao sol forte, pairando acima do barulho da cidade. Próxima a ele, a mulher da sacola vazia encostara-se à parede, num despojamento aterrador, inquietante. Maria Clara estava cristalizada dentro daquela visão, longe do trabalho, longe de casa, longe de si própria, apenas mais uma mulher com frutas nos braços.

(Narrativa inspirada no conto “Amor”, de Clarice Lispector)

Adriana de Castro - Recife, 2005.

Adriana de Castro
Enviado por Adriana de Castro em 26/07/2010
Código do texto: T2399995
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