E TREM BÃO DEMAIS DA CONTA, SÔ!!!

-Você tem certeza que deseja conversar comigo? Em que um papo entre nós é interessante? Nada tenho para lhe contar... Minha vida nada tem de diferente de milhões de jovens pobres desse país.

-Ah! Você gosta de ouvir sobre a vida dos outros? Se tiver paciência e tempo, não me importo de conversarmos a esse respeito. Hoje estou feliz.

Nasci numa família muito pobre, porem, como fazia questão meu pai de dizer, muito honesta e trabalhadora.

Tínhamos uma rocinha, lá no fundão das Minas Gerais. Papai trabalhava de sol a sol... Mãe cuidava de oito filhos, eu sendo o mais velho. Eu pouco sabia da vida ou de necessidades materiais... Era pouco o que comer, mas tudo era dividido; somente pai recebia um cadiquinho de comida a mais, pois, “precisava de mais sustância, para aguentar na lida”, como dizia minha mãe.

Os dias eram lentos e sempre iguais, mas as noites rápidas passavam num piscar de olhos.

Assim fui crescendo e mãe me colocou no catecismo e na escolinha de Da. Marta. Lá aprendi a desenhar, as belezas das cores, e logo entendi aquelas letrinhas tão bem desenhadas que papai apanhava para entender. Entendi também para quem minha mãe todas as noites ajoelhava e emocionada agradecia nosso dia, nossas vidas e nosso pão.

Fui crescendo, passava agora metade do dia, na lida com pai e depois corria a me lavar para chegar a tempo na escola. Era a melhor parte da minha vida: a escola.

Lamentava quando o fim de semana chegava. Ansiava pela segunda feira, esperando ver a alegria de Da. Marta a nos receber. Tão bonita e perfumada, assim era fácil aprender.

Dos finais de semana, o bom era quando meus pais se arrumavam, e nos levavam no carro de boi, até a Igreja do Largo.

Assim o tempo foi passando lerdo, leso... Eu crescendo e criando fio de barba, meus irmãos mais crescidos também conheceram a escola da professora mais cheirosa da redondeza.

Um dia, pai encasquetou que devia sair da roça e ir para cidade. Por mais que mãe falasse ao contrario, Seu Januário, meu pai vendeu nossa terrinha e com todos os pertences fomos para a cidade, empoleirados no carro de boi.

Eu e meus irmãos estávamos felizes, apesar da saudade que logo ia bater, da dona Marta.

-Aí, moça, o tempo danou a correr. E os acontecimentos em nossas vidas vinham aos borbotões... Pai conseguiu um emprego de jardineiro, mãe de lavadeira e por um ano inteirinho ficamos sem escola. Virei engraxate, aprendendo na marra, para ajudar nas despesas.

Como sempre, partindo de meu pai, veio a noticia que mais uma vez haveria mudança.

Ele ouviu falar muito de uma cidade grande, onde trabalho tinha de monte, escolas, e todos se davam bem.

Viemos então para São Paulo.

-Moça, eu arregalava os olhos e não cansava de admirar... Quanta gente, gente bonita. Meu coração vivia disparado, encantado com tudo que via. Quase esquecia as recomendações de mãe, para não me descuidar dos outros.

Mas, eu sabia... O que nos esperava, não era o lado bonito da cidade.

Fomos para um bairro feio, triste... Mas nossa casinha era bem arrumadinha. A rua cheia de barro, causado pelas chuvas constantes. As casas eram bem perto uma das outras.

Logo fomos bem aceitos pela comunidade... Meu pai batalhou por uns dias, mas não desanimou e Deus logo o premiou com um emprego. Mãe se pôs a costurar para nossas barrigas alimentar.

A comida era escassa, a divisão ficava cada vez mais difícil. Mas meus pais, sempre rezando e sempre contando estórias para justificar nossas necessidades injustificáveis.

O pior das nossas vidas ainda estava por vir... Meus irmãozinhos mais novos, gêmeos, novinhos ainda, adoeceram juntos e juntos partiram para ver nosso Deus.

Tempos difíceis, enfrentamos todos juntos, pai e mãe envelheceram muito; mas não perderam a fé e confiança.

-Não está cansada, de ouvir coisas tão corriqueiras e simples?... Tudo bem... Vou continuar.

Mas vou resumir, dizendo , que também batalhei um emprego de lavador de pratos em uma lanchonete.

O salário não era lá grandes coisas, mas eu comia o que quisesse... Bebia também. E com permissão do patrão, quando sobrava comida , podia levar pra casa.

Moça! A alegria de minha mãe e pai, quando cheguei com as quentinhas em casa... Foi emocionante. Eles ajoelharam e com lágrimas a escorrer, agradeceram ao nosso Senhor. E nós também.

Mas a pergunta não faltou... Seu patrão autorizou a trazer tudo isso? Sabe que jamais aceitarei que traga algo que não seja realmente seu.

Fiquei nesse emprego por um bom tempo. Até que tudo entrou nos eixos e na rotina.

Pai e mãe sempre nos reunia a noite, para conversarmos e saber o que fazíamos... Eles viviam apreensivos, pois, pela comunidade rondavam os traficantes e vez ou outra se aproximava de nós. Nesses momentos pai virava um gigante. Somente os olhava firme como a passar um recado. Eles entendiam e passaram a respeitá-lo.

Aos poucos nossa vida na cidade grande foi tomando rumo.. Pai melhorava muito em seu trabalho, mãe agora cozinhava e fazia faxina para um casal que muito a apreciava. Minha irmã abaixo de mim cuidava da casa e dos pequenos e frequentávamos a mesma escola à noite.

E como já disse moça, a vida correu, e muita coisa mudou, para melhor é claro. Mas não foi fácil. Acompanhei de perto as dificuldades dos meus pais; mas sempre assisti a perseverança, a força de caráter e a confiança no futuro e em Deus que eles possuíam.

Infelizmente, meu pai não viveu o suficiente, para saborear o fruto de sua colheita mais importante. Ele arou, regou, semeou, cuidou... Mas não ficou para colher. Mas foi feliz.

-E hoje moça, estamos aqui nessa tranquilidade tendo essa prosa... Ah! Percebeu que estou ansioso, feliz... Ah! Sentiu orgulho também....Você é observadora, Srta.

Estou nesse banco da praça, moça, esperando minha mãe e irmã, com o coração exultando de alegria... É porque hoje é minha colação de grau... Moça, você está falando com um jovem que acaba de se formar em Arquitetura.

De repente uma brisa quente e suave com cheiro de campo, nos atingiu...

Ao nosso lado um homem de feições rude, trajes simples, sorriu mostrando os dentes gastos, enchendo o peito de orgulho resmungou: E trem bão demais da conta sô.!!

E como a brisa, sumiu...

KOKRANNE
Enviado por KOKRANNE em 22/07/2010
Reeditado em 22/07/2010
Código do texto: T2392739
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