Picado de rato
Lembro bem... era uma grande usina de cana, onde nossos pais trabalhavam e onde também brincávamos. Devíamos ter entre 10 e 11 anos e fazíamos a quarta série do primário. Era uma turma grande de moleques. A gente brincava daquelas coisas que toda criança brincava; bola de gude, pipa e uma infinidade de coisas inventadas.
Tinha um menino, filho do chefão lá, que se chamava Paulão. O Paulão era grande e mandava nas brincadeiras. Ele era responsável por alguns olhos roxos e algumas humilhações... E tinha eu, que também brincava e, outras vezes só olhava. Tinha vários meninos, mas tinha um em especial que se chamava ISRAEL. O apelido de Israel era PICADO DE RATO, porque ele era muito pobre e suas roupas eram em farrapos. Éramos todos filhos de gente humilde, mas o Picado de rato ainda conseguia ser mais. A gente achava isso porque a mesma roupa que ele ia à escola ele também usava quando brincava com a gente. Eu mesmo tinha a roupa de brincar, a da escola e a de ir à missa. Na nossa cabecinha de pipa, era assim que a gente media a pobreza.
O que mais me espantava no Picado de rato era que ele não sorria nunca! Paulão judiava dele, batia nele, humilhava. Eu vi Picado de rato chorar algumas vezes, mas nunca o vi sorrir. Eu ficava chateado com aquilo que Paulão fazia, mas o Paulão era grande e eu tinha medo dele.
A gente ia para o catecismo toda quinta feira. A mesma turma de moleques que estudava junto e brincava junto, também ia aprender sobre a substância da fé e moral católica juntos. Eu ia à força, senão apanhava da mãe. Um dia, na igreja, eu vi o Picado de rato sorrir pela primeira vez. Foi quando todos nós estávamos lá, os mais “riquinhos” e os pobres da usina. Então, ouvimos a madre dizer pra gente que “aos olhos de Jesus todos somos iguais”. Não sei por que na mesma hora olhei para o Picado que estava bem do meu lado... Pois é, o Israel sorriu e eu... também.