Um Dia Qualquer Depois do Expediente

Quando o seu dia começa de forma estranha ele perdura de forma estranha até o final.

Acordei cedo para ir trabalhar no emprego que eu odeio e que preciso aturar para livrar a cara do aluguel e o vinho tinto. A primeira coisa que me aconteceu foi que eu estava com prisão de ventre. Tenho aversão quando isso acontece. Tenho hemorróidas que me incomodam há muitos anos. Mas não que eu fique as promovendo publicamente como Nelson Rodrigues promovia suas úlceras. Mas ele tinha razão. Hemorróidas e úlceras já nascem doendo e incomodando, mas isso é assunto para outra história. Quando liguei o chuveiro foi presenteado com um estalo na resistência e banho frio. Belo começo de semana que eu estava tendo. “–Resolvo isso outra hora, pensei.”

Llá fui eu a caminho do abatedouro. De novo, Merda, treze anos no mesmo lugar e não tenho um centavo a mais no banco. Muito pelo contrário. Estou devendo uma grana de um empréstimo que fiz quando estourou de vez o joelho e lá fui eu colocar pino. Tentei pensar em coisas agradáveis para não olhar na cara das pessoas que estavam naquele ônibus. Essa gente é esquisita. Parece que querem demonstrar arrogância e presunção, mas na verdade, o que vejo é apenas medo e desespero. Medo da conta de luz, medo do motorista da condução, medo de chuva e de frio. Medo da morte. Medo do mendigo bêbado que não faz mal a uma mosca, mas que destrói pouco a pouco a si mesmo. Não consigo conceber esse tipo de gente. Não entra na minha cabeça doentia que eles coloquem sua felicidade num microondas, num laptop ou num carro. Trabalho porque tenho que trabalhar. Se não precisasse estaria em casa, com todas as persianas e cortinas fechadas, tomando Bourbon do melhor e mastigando pistaches de cabeça vazia. Vá lá.

Por incrível que possa parecer o dia transcorreu em relativa calma apesar de ter serviço que não se sabe como e nem de onde estava surgindo. Certa hora parou. O sol já estava se pondo. Hora de fumar um cigarro, pegar minha jaqueta do espaldar da cadeira e pensar em tomar um trago. Só para tirar a poeira da goela. Molhar a palavra ou coisa que o valha. Lembrei que tinha trabalhado direto em almoçar. Não tinha nada no estômago - a não ser fumaça e uma enorme dose de cafeína. Talvez um copinho de plástico de leite gelado, se não me falha a memória. Fui caminhando até o meu bar preferido a caminho de casa, mas antes resolvi colocar um sanduíche no bucho. Tomar álcool com a pança vazia é caixão e vela preta para o cidadão. Charles Bukowski é exceção da regra e talvez se ele comesse mais estivesse ainda vivo e escrevendo todos aqueles absurdos. Quem sabe? Vi um lanchonetezinha que parecia limpa e convidativa. Sentei em um banco defronte o balcão e olhei o cardápio. Uma garçonetezinha com cara de manteiga, burra e feia ficou me encarando enquanto eu escolhia. Fiz que nãoa vi. Demorei um pouco para acertar o pedido. Por fim, disse para ela:

- Um X. -Ovo e uma água sem gás, por favor, moça?

Anotou meu pedido com óbvio nojo e se projetou para longe de mim. “Gente doida da porra” pensei com meu botões. “Se não querem trabalhar em empregos medíocres façam faculdade ou assaltem bancos. Ou somente fiquem em casa”, contudo não me detive nesse tipo de pensamento por mais que cinco ou sete milésimos de segundo.

O rango demorou um bom tempo para sair e quando veio notei que o hambúrguer estava simplesmente cru! Puta que o pariu! Vai começar tudo de novo. Conheço bem esse roteiro. Levantei e simplesmente deixei o sanduíche inteiro sobre o balcão e nem destampei a garrafinha de água mineral. Sai de lá sem dizer palavra. E com a barriga

roncando como uma briga de cachorros. Agora aquela garçonete de merda tinha me deixado realmente faminto. Continue caminhando e fumando um cigarro que tinha acendido logo que sai da lanchonete. Não pensava em mais nada naquele momento a não ser em comida. Minhas pernas apenas me levavam para o bar. Resolvi para numa lojinha de R$ 1,99 parar comprar cartões de telefone público.

Outra atendente de balcão com uma careta medonha ficou me encarando enquanto fazia o troco de outro pobre-diabo que estava na minha frente. Logo que ele se foi ela perguntou o que eu queria, visivelmente irritada:

- Você. Foi o que a mulher me disse num tom realmente rude.

- Dois cartões telefônicos de quarenta unidades, senhora. Pedi-lhe com a minha maior calma e polidez.

- Não trabalho. – respondeu com muita rispidez – só de com de dez unidades.

Disse que não, agradeci e zarpei dali.

Agora eu tinha dois problemas. Sem rango e sem cartão de telefone. Teria que esperar até chegar em casa para ligar para um amigo que queria que eu fizesse um free-lance para ele. Era mais uma grana que entrava. Nada mal. Teria que esperar ou achar outra loja. Passei por um sebo e reparei num livro do Aleister Crowley que eu estava procurando a algum tempo na vitrine. Entrei e me interesse logo de cara por alguns títulos que resolvi levar. Cheguei ao caixa com quatro livros. O atendente fez a conta e me deu o valor. Saquei meu cartão do banco para que passar e debitar na minha conta corrente. Ao olhar para cartão o cara fez um semblante – no mínimo – de decepção.

- Não aceitamos cheque e cartão de nenhum tipo. Só dinheiro. Foi o que o escroto falou na minha cara.

Saí praguejando e mostrei o dedo médio, puto da cara porque era uma boa venda para o sebo. Não conseguia compreender aquilo. Em todo o lugar onde eu passava a porra do cartão era aceito. Agora num sebo de livros meia-roda meu dinheiro não valia? Pensei por um momento que estava novamente nos anos 80 ou que tinha ficado louco com tanto trabalho. Continuei caminhando rumo ao bar. Uma cerveja bem gelada e uma vodca congelada para rebater levariam todo aquele dia para bem longe de mim. Ou duas cervejas e duas doses duplas de uísque puro. Ou uma bela garrafa de vinho argentino. Nada que a bebida não alivie.

Vi um bar. Ótimo. Pelo menos um trago é rápido e vai me reanimar. Era só isso que eu desejava naquele momento. Sentei numa banqueta alta no balcão novamente. Tinha três ou quatro tipos mansos lá dentro entretidos com suas doses que nem me notaram quando entrei. O botequineiro era uma figura baixa e atarracada com óculos sem aros e o cabelo começando a ficar da cor de rato. Vestia uma camisa de flanela por baixo do avental sujo de ovo e carne moída ou talvez fosse catchup. Olhou-me por cima e fez um leve meneio de cabeça como quem diz: “como é”.

-Uísque e água, simpatia. Eu lhe disse.

-Hum?! Ele fez.

Repeti o pedido e inclui um cinzeiro.

-Água no uísque?

- Uísque num copo, duas doses. E uma garrafinha de água mineral sem gás, simpatia. Esclareci.

- Vai querer uísque nacional ou importado? Perguntou.

- Existe uísque nacional? Eu não conheço, porque essas marcas para mim não são uísque. Provoquei.

-Então você é chique?

- Escuta xará, ta querendo me gozar?

- Não admito gíria no meu bar, garoto. Quer tomar seu trago sossegado ou veio aqui para arranjar encrenca?

Suspirei e respirei fundo. Acendi um cigarro. Tirei uma tragada que carbonizou quase a metade. Bati a cinza no chão, topando a parada. Porra, assim já é demais!

Tentei manter a calma e argumentar com o cara.

- Escuta simpatia. Sou um cara mais um menos normal. Não fico fazendo ligações obscenas para o convento das irmãs de caridade, nunca tive sonhos eróticos com o Michael Jackson e nem matei meu pai a soco e minha mãe à dentadas para poder ir ao baile dos órfãos, mas caralho, todo filho da puta que me atendeu desde que sai do trampo tá a fim de me gozar? Mas será o Benedito, cidadão? Deu a louca no mundo ou será efeito retardado as boletas dos anos 70! Que coisa! Será que tem um nariz vermelho de bolinha bem no meio da minha cara que hoje todos os atendentes estão no barato de tirar uma na minha cabeça? Puta que o pariu, fui! Disse para o cidadão em questão da forma mais tranqüila que pude.

Merda seca. Sai mais uma vez em direção ao meu bar de sempre dessa vez num estado total sede, fome e sensação de fracasso. Vinho. Cerveja, Vodca, Conhaque era isso que meu cérebro derrotado processava. Uísque puro. Gin. Até um lampião de pinga de alambique naquele momento iria cair como um bálsamo e com certeza soar como uma sinfonia. Apertei o passo. Acendi mais um cigarro. Faltavam apenas três quadras para chegar e aí o pesadelo terminaria. Não via a hora de olhar para a cara do garçom de sempre e pedir nem que fosse o de sempre. E um Rollmop’s bem arregadão para abrir mais ainda a sede. Ou um ovo-rosa com bastante sal. Ou até uma porção de fritas com maionese. Ou até um saquinho de amendoim torrado já estava valendo naquela altura.

Tragava meu cigarro com mais prazer a cada quadra completada. Estava chegando. O mundo todo já devia estar bêbado àquela hora. Já passava da hora de eu tomar a minha e finalmente relaxar.

Cheguei ao bar. Quase chorei como um bebê quando vi todas as portas cerradas. Um ímpeto meti o pé na porta de aço com um grande estrondo. Afixado um cartaz em letras pretas que dizia:

CAROS AMIGOS E CLIENTES

O NOSSO ESTABELECIMENTO ESTARÁ FECHADO NESTA DATA POR MOTIVO DE FALECIMENTO. REABRIREMOS AMANHÃ. GRATOS PELA COMPREENSÃO E CONFORTO RECEBIDOS.

A DIREÇÃO

Sentei nos degraus de uma escadinha que levava ao bar, acendi mais cigarro e pus as mãos no rosto. Que piada de mau gosto estavam fazendo para mim naquele dia maldito.

Tinha sido hostilizado por atendentes dos lugares mais fétidos do universo. Tinha sido gozado e pisoteado por péssimos profissionais. Tinha levado chutes no rabo por onde tinha passado e agora essa. Teria que ir para casa. Nem sabia o que tinha para comer. Fiquei sentado lado uns bons dez minutos para tentar compreender o que estava acontecendo, mas não perdi muito tempo tentando achar explicações plausíveis. Claro que essas não existiam. Caminhei com o passo marcial até meu apartamento de fundos no condomínio Rústico. Passei a chave na porta quando entrei. Lá estava meu lar. Modesto, óbvio. Mas um lar onde esses malucos psicóticos não poderiam chegar a mim. Ou poderiam? Esse pensamento me apavorou por alguns momentos. Abri a geladeira e quase tive um orgasmo ou algo melhor que isso quando vi uma garrafa de vinho pela metade e duas latas de cerveja. Sentei no chão, acendi outro cigarro e virei o vinho garganta abaixo. Tinha o sabor do primeiro trago que tomei em minha vida, aos 13 anos. Continuei sentado e bebendo. Quando o vinho acabou. Avancei nas latinhas. Uma foi de um gole só. A outra degustei com sofreguidão.

Talvez tudo fosse simples. Mas com toda a certeza, a humanidade é que complicava demais a vida da gente.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 20/07/2010
Código do texto: T2389192
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