Hemid Grow no corredor da morte - Trecho 2
John é um babaca, é isso que Milena anota mentalmente, ele dirige o furgão assoviando uma canção antiga, Milena tem a impressão de ser jazz, mas ela sabe que os babacas geralmente não gostam de jaz, talvez soul, analisa, ela está a dois meses na equipe, e já está enojada de tudo aquilo, a imprensa americana já lhe causa uma ojeriza inexplicável, olha para John e o estômago se revolta. John Gasper, o famoso apresentador de Ecos da Sociedade, programa de entrevistas, supostamente polêmicas, ele dessa fez faz questão de dirigir o furgão, vai assoviando uma canção antiga que não sabe o nome, não sabe quem canta, sua mãe cantava quando ele era apenas um jovenzinho medroso e anêmico. No banco do carona está sentado David, o câmera-man, suíças enormes, bigode cheio, barriga redonda, chopp e muita massa, jaqueta jeans desbotada, botas de caçador, óculos Ray-ban pré-históricos, e um humor propenso à ironia. No acento de trás Jorge Field, o faz tudo, olhar perdido para além da paisagem que salta pela janela, camisa aberta, peito atlético, olhos azuis, dentes amarelados pela nicotina, e ao seu lado Milena a estagiária, seios enormes, estereotipo da beldade americana, sexy e inteligente, olhar penetrante rasgando a nuca de John, ela está impaciente, todos estão, ansiosos, na verdade, será a primeira vez que uma equipe de televisão entrevistará Hemid Grow desde que ele foi condenado à morte.
- Três anos enjaulado. O homem deve estar uma fera. Porra, que vontade de fumar. – Diz Jorge.
- Estamos chegando. Agüente mais um pouco, não morrerá por isso. – Retruca David.
- Pode estar certo que morrerei sim.
O enorme portão de ferro da penitenciária do Estado surge brilhando no sol das duas horas, o reflexo se espalha ao redor de todos como se tudo fosse feito de vidro refratável.
- Bem vindos ao inferno na terra, meus companheiros. – Assovia David.
Até mesmo o sorriso de John era idiota, constatou Milena, vendo suas reações pelo retrovisor do furgão, que ainda sentia as vibrações do motor recém desligado. O enorme prédio se estendia até onde os olhos dela conseguiam penetrar, John cofiava o bigode olhando no retrovisor, ela consultou o bloco de anotações, fez as ultimas anotações mentais, respirou fundo, colocou o boné do New York New´s e saiu para o sol. Um guarda fardado caminhou em direção ao portão enorme, John mostrou-lhes as suas credenciais e o portão enorme foi se abrindo lentamente. John olhou em direção a todos, respirou fundo, deixou os ombros caírem e seguiu o guarda, os outros foram atrás dele.
Hemid cuspiu mais uma vez no canto da cela, todos os dias fazia isso pelo menos uma vez, era como um ritual sacrossanto, o guarda espiava, veio caminhando devagar, colocou o nariz enorme dentro da cela e respirou o ar que pertencia a Hemid e isso não o agradou muito.
"Está na hora. Os imbecis da CNN acabaram de chegar.”
Hemid deu com os ombros, as manchetes dos tablóides há três anos atrás surgiram na sua memória, ainda pálida da tonalidade da cela. O guarda, que Hemid sabia se chamar Adolf, sabia também que o homem, como ele tinha pais ou avós que haviam emigrado ilegalmente para a América logo depois da guerra, filhos estudando em escolas particulares que maquiavam a realidade da América que já se deteriorava para além das lentes que Hemid impunha nos velhos tempos, sentiu, por instantes grande pena de Adolf e então o seguiu até chegar a sala onde a equipe de John Gasper já o esperava. Hemid conhecia aquele homem, já havia estado em seu programa, Ecos da sociedade, programa de grande audiência, que tinha como hábito prestigiar os pseudo-intelectuais em evidência, geralmente escritores, produtores, diretores medíocres, John Gasper, sempre a um passo dos grandes industriais do cinema, das produtoras, sugando seus pescoços como um vampiro sedento, o programa tinha como meta expor as chagas da sociedade, desnuda-la, levava as vias de fato, mas John não tinha peito para isso, era um covarde, para tanto, em um país de intelectuais medíocres, pensou Hemid, era preciso que o homem tivesse caráter, e isso era algo, que definitivamente, Hemid não conseguia enxergar na pessoa de John Gasper.
Hemid olhou para os lados da sala, parecia menor que sua própria cela, uma mesa de algum material sintético, cadeiras de encosto baixo feitas da mesma maneira que a mesa, ele olhou para o resto da equipe, seus olhos então pousaram sobre os seios de Milena, ela o olhava de uma maneira diferente dos demais, tinha o mesmo olhar de Adolf, não tinha nojo dele, não sentia o asco que Hemid podia notar nos olhos boçais de John Gasper, os olhos do apresentador eram bovinos e profundos, porem vazios, já os olhos da moça eram redondos e meigos, transpiraram a passividade de quem espera por algo que não sabe bem o que é.
Por um instante Hemid sente ímpetos de cuspir no canto dessa sala, assim como faz em sua própria cela, mas seu impulso é freado pelos olhos de Milena, ela tem os mesmos olhos que Sabrina tinha antes de se tornar uma diva do cinema, os mesmos olhos que tinha quando era apenas uma atriz pornô, por momentos Hemid titubeia, sente vontade de dizer alguma coisa, mas de certa forma está mudo, se senta e olha para John Gasper, está pronto para sua primeira entrevista depois da condenação à morte.