Hemid Grow no corredor da morte - Trecho 1
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Há três anos seus olhos tentavam se acostumar com o cenário, à palidez de tudo, principalmente a palidez das próprias mãos, a palidez da própria íris, a palidez dos próprios sonhos, no princípio dormir era difícil, as noites eram angustiantes, mas já havia se passado três anos, longos, um martírio, Hemid Grow já não sentia tanta a falta do mundo lá fora como sentiu nos primeiros dias, tudo era pálido, tudo na sua memória tinha cores velhas, a vida, de vez enquanto e cada vez como menor freqüência, passava na frente de seus olhos como se fosse uma velha foto em sépia, um filme antigo, a nostalgia que essa visão lhe trazia já não era tão grande quanto nos primeiros dias, nas primeiras semanas, primeiros meses, o coração estava quieto, batia sem muita força, as emoções estavam todas já contidas, acorrentadas, trancadas como ele mesmo, toda a fúria havia se dissipado ainda antes de completar o primeiro ano naquela cela, toda a raiva, o terror, o medo, todas as sensações haviam se dispersado como fumaça de cigarro, como as nuvens sopradas pela brisa, alguma coisa havia morrido dentro do peito de Hemid Grow.
Há três anos atrás os tablóides haviam berrado seu nome aos quatro cantos, Hemid Grow, o famoso cineasta negro, ganhador do Oscar duas vezes, conhecido por seus filmes sobre a Segunda Guerra, cheios de ódio, vergonha e remorso para o povo americano. Bem, era esse mesmo gênio, guru para muitos, segundo os tablóides que havia matado a mulher e o seu amante branco, o editor grifou essa palavra, em um motel barato nos arredores de Manhatan, dois tiros no amante, que os tablóides deram a ficha, ex-soldado de uma brigada de incêndios já extinta, alto, músculos de estivador, caucasiano, republicano, outro tiro na mulher Sabrina K. Grow, essa conhecida de todos os americanos, cultuada como a mais bela negra da América, no começo da carreira atriz de filmes pornôs, depois uma estrela de primeira grandeza nos filmes vistos pela América puritana.
Nesse momento Hemid olha para as paredes brancas da cela, pensa no que dirá na entrevista, aqueles babacas da CNN queriam o que, afinal de contas? A imprensa já havia chupado todo o seu sangue durante o processo e após a condenação e nos últimos anos de apelação não haviam saído de cima dele, alimentando a besta que mora no homem, essa besta infernal que se alimenta da alma alheia, o vampirismo da imprensa livre o enojava, cuspiu no canto da cela, a primeira emenda era o grande câncer do coração da sociedade estadunidense. As paredes da cela parecem estar cada vez mais claras, mais desbotadas, ou será que Hemid Grow está ficando cada dia que passa com mais dificuldades para enxergar? O cenário é tão estático que ele se sente quase que como uma estátua, uma escultura de pedra sabão, uma fotografia pregada e esquecida para sempre em uma parede qualquer.