AS TRÊS MARIAS

Era todo dia assim, Maria Clara, Maria Eduarda e Mariana, um verdadeiro trio de Marias.

Houve um tempo em nosso país, praticamente todo Católico Apostólico Romano, em que nomear as meninas com o nome da mãe de Jesus Cristo era quase que uma obrigação.

Fortíssima a tradição, lembro-me muito bem que em minha infância, poucos eram os estabelecimentos comercias que não levavam os nomes dos mais variados santos.

Quantos Empórios Nossa Senhora de Aparecida não existiam até meados da década de 1980?

E os Armazéns São José, as panificadoras Santa Maria, os secos e molhados Nossa Senhora de Fátima, as vendinhas e quitandas do Sagrado Coração do Menino Jesus, as aviculturas São Sebastião, os mercadinhos São Cosme e Damião e mais tantos e tantos santos quanto existirem nesse enorme panteão católico romano.

Pensar hoje nessas coisas parece até mesmo uma ingenuidade. Um tempo em que o comércio submetia-se à fé, bem ao contrário do cenário atual em que está última é apenas uma empregada de chão de fábrica do primeiro; este que regula e penetra em tudo quanto for imaginável.

Contudo, falando-se novamente em nomes, Maria e José, com certeza, eram os que prevaleciam. João, Paulo, Marcos eram também muito comuns em nossa tradição católica. Os evangelistas Mateus e Lucas começaram a fazer sucesso agora nessa primeira década do século corrente e na última do século passado.

Fiquei sabendo, lendo Clarisse Lispector, que o nome Jesus era comumente dado às crianças sem paternidade reconhecida. Assim entendi o porquê de não haver muitas pessoas com o primeiro nome Jesus, já que este era extremamente usado nas milhares e milhares de crianças que são renegadas pelos seus genitores.

Coisas do Brasil.

Certo é que as Marias estão de volta, e com toda a força. Influência de personalidades midiáticas que influem por demais nos comportamentos da população.

E era todo dia assim, Maria Clara, Maria Eduarda e Mariana, um verdadeiro trio de Marias.

Era todo dia assim o que? Perguntará o leitor apressado.

Maria Clara, Maria Eduarda e Mariana trabalhavam juntas no mesmo departamento na mesma repartição pública de um município importante de nosso país.

Cada qual com sua história e características, cada uma com suas virtudes e vícios.

Maria Clara era uma mulher alta, magra, com os cabelos tingidos de loiros, na casa dos cinqüenta anos de idade. Não era bela, acredito que pouquíssimos homens se interessariam por ela como mulher, dadas as suas características pouco atraentes.

Tímida, de personalidade frágil, mas ao mesmo tempo era inteligente e aprendia com rapidez. Era de fácil relacionamento, dificilmente ficava zangada e parecia ter bom coração. Era casada já há muitos anos com um professor secundário e tinha dois filhos, um rapaz e uma moça já formados.

Já Maria Eduarda era mais baixa e menos magra, não chegava a ser gorda, mais também não ostentava um corpo de medidas perfeitas. Também pudera, a senhora Maria Eduarda era já uma sexagenária e para as suas seis décadas ela até que estava ainda bem conservada.

Sempre bem vestida, sempre com uma postura e um tom de voz imponente, mas de uma imponência natural, uma imponência derivada de sua grande elegância.

A nossa sexagenária possuía o gesticular das últimas damas do século passado, um léxico elegante e também uma fina arrogância. Digo fina, porque tudo nesta mulher cheirava à aristocracia.

Penso que ela possuía o direito de possuir sua pequena parcela de arrogância dado o fato de ser uma lady em meio a tantas suburbanas.

Ela possuía uma personalidade forte, marcante, de difícil relacionamento.

Era preciso medir muito bem o que falar para ela, era necessário ser mestre em relações humanas para conseguir conquistar a confiança desta senhora desconfiada.

Gostava de política, de cervejas encorpadas, de conversas sobre o mundo jurídico e, depois de conquistada a sua amizade, era possível rir com ela e lhe dizer até mesmo algumas pequenas bobagens.

Vamos a mais jovem, a quarentona Mariana.

Esta carregava ainda um pouco de beleza e um pouco de graça. Um homem de mesma idade poderia interessar-se por Mariana sem grande dificuldade. Era uma mulher aparentemente alegre e bem humorada.

Ria fácil e dizia muitas tolices, mas era perceptível sua frustração e amargura. Largada do marido e com uma casa e dois filhos para dar conta, sem a ajuda deste último, via-se forçada a trabalhar até mesmo com 40° de febre.

Mariana possuía uma personalidade forte também, extrovertida, às vezes frívola e sem grandes perspectivas na vida. Ela levava a vida, a vida a levava.

Não, leitor querido(a), não pense que vou descrever como sou, imagine, apenas imagine. Espero que não pense bobagem.

Cheguei em meio a essas flores de nome Maria quando o que estava acontecendo ao nosso redor não tinha nada haver com um jardim.

Uma repartição pública no calor infernal de janeiro, sem ar condicionado, com um monte de gente chata, brava e fedida para ser atendida, fora os nove aparelhos de telefone tocando ao mesmo tempo.

Se o inferno existir de verdade essa repartição naquela época era uma miniatura dele.

Era assim que funcionavam as coisas por lá, Maria Clara conversava com Mariana. Maria Eduarda conversava com Mariana. Maria Clara conversava com Maria Eduarda, enfim, elas todas conversavam mutuamente.

Conversa daqui, conversa de lá, Mariana dizia que Maria Eduarda era chata e ranzinza, mas que era suportável e inteligível, pois se tratava de uma velha.

Maria Eduarda dizia que Maria Clara era fresca e que fugia do trabalho nas piores horas e que sobrava tudo para ela.

Mariana ora falava mal de Maria Clara para Maria Eduarda, ora fazia o contrário. Sempre no começo, é claro, discretamente, sem muito alarde e de forma sussurrada.

Maria Eduarda também tricotava com Mariana sobre Maria Clara. Esta última, justiça seja feita, nunca a vi a falar diretamente de nenhuma colega. Via-se por seus olhares e abanares de cabeça que não concordava com muitas coisas, mas prevalecia nela a discrição.

E a repartição seguia seu ritmo, em meio aos mexericos das Marias, em meio ao soar interminável das campainhas dos telefones, em meio aos estressados munícipes, seguia-se o trabalho na repartição, o enfadonho e interminável trabalho da repartição.

A esta altura, o leitor(a) deverá estar se perguntando: e esse narrador cara-de-pau? Ele não participava das fofocas? O virtuoso não é dado aos mexericos também?

Devo-te confessar, petulante leitor, que vontade não me faltou.

Contudo, mais que a vontade de entregar-me aos mexericos prevaleceu a sabedoria. Não ia eu minar o meu próprio chão. Claro, percebi antes de começar a me envolver que, em verdade, todas falavam mal uma das outras reciprocamente.

Eu não ia ser tolo de me envolver nos tricotares das Marias. Uma delas certa vez até interrogou o meu agir, disse que eu era “político”. Eu de minha parte digo o que aprendi com Buda: “Se não você não tiver nada de bom para falar, que fique calado. Não crie intrigas”.

Mas, deixando Buda e sua sabedoria de lado e voltando às pouco sábias Marias, o mês de julho chegaria logo, e com ele um novo acúmulo de trabalho.

As Marias já estavam todas aflitas com a perspectiva do mês vindouro que segundo elas seria terrível, e cada uma começou a seu modo espetar as outras e bolarem planos para fugir da labuta mais pesada.

Maria Clara, a mais virtuosinha das três, marcou, numa bobeada incrível da chefe, suas férias para o mês de julho. Eu cheguei até a ver em seu rosto, mesmo sereno, mesmo sem sorrir, o sorriso escondido por ter conseguido lograr de forma tão fácil as suas outras companheiras.

Era uma vitória saber que aquilo que ela teria que fazer iria acumular para as outras, enquanto ela descansava tranquilamente em alguma praia do país. Claro, ela, sempre discreta, não falava nada.

Sentava-se em frente ao seu computador e acho que somente eu percebia o quanto de vontade de rir que ela estava o tempo todo.

Então, quando Maria Clara saia da sala para ir ao banheiro ou qualquer outra coisa, as outras Marias começavam a reclamar e dizer mil impropérios contra a colega.

- Filha da puta! Tira férias bem no mês de julho, que sacanagem!

- E a gente é que vai se ferrar aqui nessa merda de novo!

Maria Clara entrava e tudo ficava quieto novamente. Mas o sorriso que ela não mostrava explicitamente parecia que queria saltar de sua cara. Tamanha era sua expressão contida de contentamento.

- Vou almoçar! Disse Maria Clara.

Ninguém respondeu nada. Ela pegou sua bolsa e saiu enquanto ficamos.

Nisso, as duas Marias começaram a xingar e dizer um monte de palavrões. Sentiam-se injustiçadas, traídas, contudo ninguém verbalizava nada com Maria Clara.

Tudo entre elas ficava nas entrelinhas, nos subentendidos.

Depois de muito tricotarem, ouvi Mariana dizer a Maria Eduarda:

- Isso não vai ficar assim, não! Ah, não vai mesmo! Disse rindo.

Maria Clara, esqueci de contar, sofria bastante com uma ardência constante nos olhos.

Ela possuía, descobriu depois de um tempo, inflamação na córnea, o que a fazia sofrer por demais e ter que constantemente pingar em suas vistas algumas gotas de caros colírios.

Nesse dia, contudo, percebi que Maria Clara, ao sair para o almoço, havia esquecido o frasco de colírio em cima de sua mesa. Mas ela não voltou para pegá-lo.

Eu que sentava ao seu lado notava que o seu sofrimento era verdadeiro, que não era fingimento como dizia Maria Eduarda. Não, não podia ser fingimento.

Até eu mesmo parecia sentir a dor que ela sentia quando pingava aquele colírio nos olhos. Não podia ser uma expressão mentirosa aquela que ela trazia na face todas e todas aquelas vezes.

Tinha certeza disso, como tinha também de sua felicidade por ter conseguido as suas férias para o nefasto e temido mês de julho.

Saí para almoçar logo após Maria Clara, enquanto Maria Eduarda e Mariana ficaram na sessão aguardando nosso retorno.

Fui para o almoço e esqueci, como de costume, os problemas da repartição. A hora do almoço é a minha hora, hora de tratar das coisas de meu interesse.

As Marias? Nem lembrei que existiam, ainda mais naquele dia em que eu comia um delicioso risoto de camarões e bobó deste mesmo crustáceo. Preparados com esmero pela minha querida vovó.

Comi também como sobremesa um delicioso sorvete de massa: chocolate com avelãs, uma maravilha gelada. Mas tudo é impermanente, já dizia o Buda.

Tive que voltar para a repartição e para as três Marias.

Eu e Maria Clara chegamos praticamente juntos e logo sentamos. Comecei a fazer o que tinha para ser feito e a minha colega também. Nisso as outras Marias saíram para almoçar. Fazíamos dessa maneira para que a repartição não ficasse desguarnecida.

Passaram-se alguns minutos e Maria Clara reclamou novamente de sua ardência nas vistas, de que já não aguentava mais aquela vida de ficar pingando colírio nos olhos a toda hora. Então pegou o frasquinho de colírio e pingou nos dois olhos rapidamente.

Não passou trinta segundos e ela me disse que seus olhos estavam ardendo mais do que o normal. Piscava e piscava os olhos e nada. Passou mais colírio e a dor piorou.

- Ai, ai está ardendo muito, me acuda colega! Disse Maria Clara desesperada.

Os olhos dela estavam extremamente vermelhos e inchados e, vendo o sofrimento de minha colega, peguei-a pela mão e fomos até o banheiro. Jogamos água e mais água sem parar em seus olhos, mas ela reclamava cada vez mais e mais da ardência insuportável.

Gritei para que chamassem uma ambulância, o que foi feito prontamente por outros colegas, e Maria Clara a essa altura já estava aos berros, sem aguentar a imensa dor que latejava seus olhos.

Toda a repartição parou para ver o sofrimento de Maria Clara.

Eu fiquei segurando ela pelo braço até que a ambulância chegou. Eu já chorava por vê-la naquele estado. Para se ter uma ideia do sofrimento dela, a minha colega chegou a desmaiar em meus braços e havia sangue em suas pálpebras.

Liguei para a família dela e foram para o hospital.

As noticias não eram boas, Maria Clara havia ficado cega em decorrência do uso do colírio. Este havia corroído as estruturas do seu olho, tudo, córneas, retina, íris...

Os olhos dela haviam derretido como se ela tivesse jogado ácido nas vistas.

Depois da poeira ter baixado por lá, é claro, foram apurar o que havia acontecido e se havia responsáveis pelo ocorrido. O frasco de colírio foi enviado para análise, mas não havia nada de errado com o conteúdo.

Era o produto ativo normal, dentro de sua validade e que seria impossível causar algum dano ao que quer que seja, segundo o laboratório contratado para a análise.

Fui levado à delegacia e interrogado. Mariana e Maria Eduarda também foram ouvidas pelo delegado, mas não havia nada que incriminasse ninguém. Uma pessoa tinha ficado cega e ninguém sabia o porquê nem como isso ocorreu.

Bem, sem conseguir esclarecer o caso fomos liberados pela polícia que não tinha como nos segurar na delegacia. A família pensou até mesmo em processar o laboratório fabricante do colírio. Mas baseado em quê? Essa era a questão.

Então o jeito era tocar a vida.

No dia seguinte, fomos para a repartição trabalhar. Logicamente, Maria Clara não iria mais trabalhar dali para frente conosco e necessariamente outra pessoa deveria vir no seu lugar.

Uma semana se passou e veio para repartição uma moça muito bonita, para ascender a rivalidade natural entre as mulheres, chamada Maria Isabel.

Na idade das balzaquianas, ela já veio com fama de que era pouco afeita ao trabalho e que costumava simular doenças frequentemente.

E, além disso, as más línguas também diziam que ela sumia nas piores horas, nas horas de maior necessidade a nossa nova colega dava um “perdido” deixando o acúmulo para os colegas de serviço.

Essa era a fama de Maria Isabel.

Pensei comigo que a estada de Maria Isabel ali seria rápida, bem efêmera.

Percebi isso pelas referências que ela trazia, e por um frasco de solução de cloreto de sódio que pingava a todo momento no nariz.

A moça dizia que sofria de sinusite.

Frederico Guilherme
Enviado por Frederico Guilherme em 11/07/2010
Código do texto: T2371540
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