A MULHER E O MENDIGO

3 - A MULHER E O MENDIGO

29.04.2010

Aclibes Burgarelli.

Pensamento: Na degradação, desconfia-se até da solidariedade humana.

Marcão instalara-se no ramo de compra e venda de livros usados na Rua Conselheiro Furtado, nas proximidades da Praça João Mendes, onde permaneceu durante muitos anos ao curso dos quais conheceu pessoas e outros comerciantes. Comumente via-se Marcão na padaria do português, degustando o cafezinho ao qual se ligara há muito tempo.

Em frente ao Sebo muito conhecido por transeuntes e estudantes da Faculdade próxima, um antigo prédio de fins mistos – comercial e residencial – era considerado um dos melhores edifícios daquele logradouro, pelo porte e por causa da área considerável de cada unidade. Lembra-me que o advogado Dr. Cesar dizia que seu escritório era o mais bem localizado nas proximidades do Forum, o que de fato, correspondia à verdade. Cheguei mesmo a cogitar de adquirir um conjunto comercial, porém, quando me despertara o interesse, o valor imobiliário, relativamente ao prédio, não permitia amealhar dinheiro suficiente para o negócio. Por essa razão, comprei um conjunto em outro prédio, bem próximo do qual o Dr. Cesar mencionara e no qual tinha seu escritório, bem sucedido na época.

Marcão não tinha interesse na aquisição de conjunto comercial, tanto no prédio onde se instalara o Dr. Cesar, quanto em outro qualquer, visto que seu objetivo era a instalação de um Sebo. Seguiu seu desejo e ali está até hoje, bem instalado e com rendimento suficiente para se considerar um profissional bem sucedido no ramo livreiro. Apesar de já ter pensado em deixar o negócio, conforme se verá.

Eu sempre visitava o Sebo, de onde dificilmente saía sem um livro raro. Lembra-me de uma visita, marcada por inusitado acontecimento que, agora, leva-se a esta crônica.

Encontrava-se Marcão na porta de seu estabelecimento a olhar a degradação por que passava o edifício onde advogava o Dr. Cesar. Não se sabe exatamente a razão, mas certo é que houve grande inadimplência quanto ao condomínio, de modo que, por causa da idade do prédio, muitos reparos não puderam ser feito. A pintura do edifício envelheceu; o telhado apresentara defeitos e as águas das chuvas penetraram por entre as telhas com conseqüente infiltração nas paredes. Janelas montadas em estruturas de ferro enferrujaram e soltavam-se dos pontos de fixação, com o que os vidros se partiam.

Um elevador quebrado aqui, torneiras emperradas ali e janelas sem vidros acolá foi o suficiente para se revelar um quadro de abandono e desinteresse do Dr. Cesar; mas, em contrapartida, veio a procura e a manifestação de interesse por pessoas desqualificadas profissionalmente ou de má conduta social.

Dr. Cesar foi obrigado a vender seu escritório por menos da metade do valor de mercado, em se considerando o valor médio de salas da região. E vendeu para a única compradora que, por interposta pessoa, mostrou interesse: uma moça desviada no seu destino e subjugada por um homem sem escrúpulos, em nome de quem figurou a compra da unidade.

Outras mulheres, de mesmo perfil, já haviam mudado para o prédio e, quem do outro lado da rua passasse em frente, bastava olhar para o alto e constatar travestis e senhoritas seminuas na janela, com gestos e sorrisos convidativos para qualquer do povo adentrar ao recinto, ainda que para chegar até elas vários andares devessem ser vencidos na escadaria, dado que os elevadores já não mais funcionavam.

Um cobertor pendurado no parapeito da janela; um cordão atravessado no vão da janela, com roupas íntimas penduras; uma folha de jornal grudada em um vidro quebrado; assim se via a atividade do edifício.

Não bastasse a degradação pelo abandono, voluntariamente ou com propósito de vandalismo, os grafiteiros emporcalhavam de tal forma as pastilhas de revestimento do prédio que não há como se descrever com palavras a aparência do espigão.

Marcão a tudo assistia já há algum tempo, com certa tristeza, pois ele era dotado de sensibilidade estética e arquitetônica, além de, particularmente, ser prejudicado pela projeção da cena diretamente ao seu estabelecimento, do outro lado da rua. Prédio deteriorado, em um lado da rua; loja de livros velhos, de outro lado, mesmo sem querer ficava a impressão de que o lugar era o pior possível. Marcão, aos poucos, sentiu a diminuição de clientes e comentava o fato comigo, sempre que lhe fazia a visita quase que diária.

Num dia frio, o vento cortava o espaço da rua e assoviava a lancetar sua passagem. O lugar parecia estar mais feio. Nesse momento eu seguia em direção ao meu escritório e vi Marcão parado, tentando fechar a porta de vidro da livraria, com o semblante carregado e olhos irados. Perguntei o que lhe ocorria: frio ou vontade de tomar um cafezinho, perguntei. A tentativa de fazê-lo rir falhou. Mudei de estratégia e indaguei se alguma obra rara havia disponível, sem que eu o soubesse; assim dei conta de que pretendia entrar na livraria. Marcão, solícito, convidou-me a entrar e acenou com o desejo de conversar um pouco sobre o prostíbulo – como ele denominava o lugar.

Sentamos: Marcão na cadeira em frente a sua velha e surrada escrivaninha de cedro, colonial, riscada e marcada com cortes de lâmina, dado o uso; eu, em frente, em uma banqueta que servia para quem buscasse algum livro nas partes baixas das prateleiras. Em dado momento, Marcão, enfurecido, asseverou:

- Tá na hora de eu deixar este lugar! Não agüento mais a raça humana!

Surpreso, perguntei o que estava a acontecer e qual o motivo daquela fúria, ao que retorquiu Marcão:

- Acabo de presenciar uma cena surrealista, sem graça, horrível e degradante para a raça humana. - Para mim é demais!

- Que cena...? Perguntei.

- Observe que, em frente ao prostíbulo, há um poste; que nesse poste sujo, as moradoras inconseqüentes depositam sacos de lixo! - Sacos negros e sujos tanto quanto negra e suja é a vida de cada uma!

- Estava eu, na porta da livraria, a meditar sobre a horrível cena. - Até sem surpresa e embora acostumado à degradação, vi um mendigo, sujo, despretensioso, farrapo humano a procurar, nos sacos de lixo, algum alimento para saciar a fome! - Tal qual um animal. Complementou Marcão.

- Quase que concomitantemente, surgiu na janela do 1º andar a moçoila, em trajes pequenos e poidos, segurando um pequeno embrulho! – Imediatamente conclui que era um lanche embrulhado. – Ouvi gritos chamativos: moço, moço, moço, aqui, aqui!

- O mendigo – prosseguiu Marcão - não tomou conhecimento, talvez por não ser moço tampouco parecia ser humano e, para ele, aqui era lugar nenhum! - Prosseguiu (continuou Marcão) na busca de algo sujo para comer. – Surpreendentemente, tendo um lanche à sua disposição, sem o saber ou por displicência, preferia ao lixo. Surrealismo; complementou Marcão. – Horrível para a raça humana – concluiu.

- Pois bem – prosseguiu – a moça, ao sentir que a tentativa de solidariedade não aproveitaria à fome do mendigo, resolveu lançar o sanduiche em direção aos sacos de lixo, talvez para que o indigente percebesse o volume, o abrisse e sentisse o sabor do alimento! Emendou Marcão.

- E a moça lançou o sanduiche?. Perguntei.

- Lançou e esperei um final feliz, talvez para amenizar minha ira sobre o lugar, as mulheres, o prédio e a perda de clientes!

- Aconteceu o final feliz? Perguntei.

- Feliz coisa nenhuma, a coisa ficou mais complicada e perdi a fé na humanidade!

- Agora fiquei interessado! Disse eu. – O que aconteceu?

Sério, Marcão prosseguiu: - O lanche foi lançado, mas não caiu próximo ao sujo e mal cheiroso mendigo, caiu-lhe sobre a cabeça; veja só! - Nesse exato momento, irado, o mendigo olha para cima e, em altos brados, gritou: - Sua vagabunda, vai jogar lixo na mãe!

- Confesso que não entendi e não entendo a natureza humana! Terminou Marcão.

A mim, depois de pensar um pouco, esbocei um sorriso, porque me pareceu a melhor piada do dia, mas convenhamos que o estado emocional de Marcão não me levou a sorrir. Despedi-me e, longe dos olhos de Marcão, dei uma sonora gargalhada com a conclusão de que o acontecimento daria uma boa piada de humor negro.

Contei-o há alguns amigos e estes não acreditaram ser verdadeiro o fato, mas sopesaram que, como piada, foi a melhor que ouviram. Muito boa!.

aclibes
Enviado por aclibes em 09/07/2010
Código do texto: T2367329
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